domingo, 24 de dezembro de 2017

O subsolo - 3

Como é que procedem as pessoas que sabem se vingar e, de maneira geral, fazer prevalecer seus direitos? Quando elas são tomadas, digamos, pelo sentimento de vingança, não permanece mais nada no seu ser além desse sentimento. Um cavalheiro desse tipo lança-se diretamente ao seu objetivo, como um touro enfurecido, abaixando os chifres, e talvez só um muro possa detê-lo. (Aliás, diante de um muro, tais cavalheiros, ou seja, os indivíduos e homens de ação “diretos”, se dão por vencidos e nisso são sinceros. Para eles, o muro não significa desvio, como, por exemplo, para nós, seres pensantes e, consequentemente, inertes; não é um pretexto para voltar atrás, pretexto em que pessoas como nós geralmente não acreditam, mas que sempre ficam muito felizes quando o encontram. Não, é com toda sinceridade que eles se dão por vencidos. O muro possui para eles algo que acalma, que soluciona a situação do ponto de vista moral, e é definitivo; talvez até possua algo místico... Mas, sobre o muro, falarei mais tarde.) Bem, senhores, é esse homem direto que eu considero o homem normal, verdadeiro, do jeito que sua terna mãe – a natureza – gostaria de vê-lo quando carinhosamente o criou na Terra. Invejo tal homem até a minha última gota de fel. Ele é um imbecil, indiscutivelmente, mas pode ser que o homem normal deva ser mesmo imbecil, quem sabe? Pode ser que isso seja até muito bonito. E estou tanto mais convencido dessa, por assim dizer, suposição, que se, por exemplo, tomarmos a antítese do homem normal, ou seja, um homem de consciência amplificada, que naturalmente não surgiu no seio da natureza, mas numa proveta (isso já é quase misticismo, senhores, mas suspeito disso também), esse homem de proveta às vezes vai dobrar-se tanto diante de sua antítese que, com toda a sua consciência amplificada, honestamente vai se considerar um camundongo, e não um homem. Um camundongo de consciência intensificada, que seja, mas de qualquer forma um camundongo; porém, temos aí também um homem e, consequentemente, tudo o mais. E o principal é que é ele mesmo que se considera um camundongo, ninguém lhe pede que o faça; esse é um ponto importante. Vamos dar uma olhada nesse camundongo em ação. Suponhamos, por exemplo, que ele se sinta também ofendido (e quase sempre se sente) e que também deseje se vingar. Vai acumular em si mais ódio do que l’homme de la nature et de la verité. A vontadezinha repugnante, vil, de causar ao ofensor um mal equivalente à ofensa recebida, talvez fique corroendo dentro dele mais do que no homme de la nature et de la verité, porque este, com sua estupidez inata, acha que sua vingança é simplesmente justiça. Já o camundongo, devido à consciência intensificada, não reconhece justiça nesse caso. E chega, finalmente, à coisa em si, ao próprio ato de vingança. O infeliz camundongo, além da sujeira inicial, já conseguiu mergulhar em um monte de outras sujeiras na forma de perguntas e dúvidas; a uma única questão acrescentou tantas outras não respondidas que, independentemente de sua vontade, vai juntando-se ao seu redor uma gosma repugnante e fatal, uma lama fétida, formada por suas dúvidas, preocupações e, finalmente, de cusparadas que ele recebe dos homens de ação, postados solenemente em torno dele na qualidade de juízes e ditadores, e que, com suas possantes goelas, riem dele às gargalhadas. É evidente que só lhe resta fazer um gesto de pouco caso com a patinha e desistir e, com um sorriso falso de desprezo, que não convence nem a ele próprio, esgueirar-se vergonhosamente para o seu buraquinho. Lá no seu subsolo abjeto, fétido, nosso camundongo, humilhado, abatido e ridicularizado, rapidamente mergulha num rancor frio, peçonhento e, principalmente, perpétuo. No decorrer de quarenta anos ele vai ficar lembrando a ofensa sofrida, até nos últimos e mais vergonhosos detalhes, cada vez acrescentando por conta própria pormenores ainda mais vergonhosos, caçoando perversamente de si mesmo e provocando-se com a própria fantasia. Ele mesmo se envergonhará da sua fantasia, mas, mesmo assim, de tudo se lembrará, passará tudo em revista, inventará um monte de histórias fantásticas sobre si mesmo, com a desculpa de que elas poderiam também ter acontecido, e não perdoará coisa alguma. Talvez dê início à sua vingança, mas esporadicamente, com bobaginhas, escondido atrás do fogão, incógnito, sem acreditar nem no seu direito de vingar-se, nem no êxito de sua vingança, e sabendo de antemão que, em todas as suas tentativas de vingar-se, ele mesmo vai sofrer cem vezes mais do que aquele que pretende atingir, e este provavelmente nem se coçará. No seu leito de morte irá lembrar-se de tudo novamente, com os juros que se acumularam todo esse tempo e... Mas é precisamente nesse frio e asqueroso estado de semidesespero e semicrença, nesse consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no subsolo durante quarenta anos, nessa falta de saída de sua situação, que ele mesmo se empenhara em criar e que é, contudo, duvidosa, em todo esse veneno de desejos não satisfeitos que ele engoliu, em toda essa febre de vacilações, de resoluções tomadas para toda a vida e dos arrependimentos que sobrevêm novamente um minuto depois – é aí que se encerra a essência daquele estranho deleite de que eu falava anteriormente. É tão sutil esse deleite, é tão impossível às vezes de se perceber, que pessoas um pouquinho limitadas, ou até mesmo pessoas simplesmente com nervos fortes, não entenderão nada dele. “É possível que também não vão entender”, os senhores acrescentarão por sua conta, abrindo um sorriso, “aqueles que nunca levaram uma bofetada” e, desse modo, delicadamente insinuarão que na minha vida eu talvez tenha tido essa experiência e é por isso que falo como conhecedor. Aposto que pensam assim. Mas tranquilizem-se, senhores, não recebi bofetadas, embora me seja totalmente indiferente o que os senhores pensem sobre isso. Eu mesmo, possivelmente, ainda me arrependo de ter distribuído poucas bofetadas na minha vida. Mas basta, não vou dizer mais nem uma palavra sobre esse assunto que tanto interessa aos senhores!
Vou prosseguir, falando calmamente das pessoas com nervos fortes que não compreendem a tal sutileza dos deleites. Esses senhores, em alguns casos, por exemplo, embora berrem como touros a plenos pulmões, embora, admitamos, isso até lhes traga imensa honra, o fato é que, como eu já disse, diante da impossibilidade eles imediatamente ficam resignados. A impossibilidade é o mesmo que um muro de pedra? Mas que tipo de muro de pedra? Bem, evidentemente, são as leis da natureza, as conclusões das ciências naturais, a matemática. Se alguém lhe prova, por exemplo, que você descende do macaco, não adianta fazer caretas, aceite-o. Se lhe provam que, na realidade, uma gotinha de sua própria gordura deve ser-lhe mais cara do que cem mil semelhantes seus, e que nesse resultado serão resolvidos finalmente todos os assim chamados deveres e virtudes, bem como os demais delírios e preconceitos, aceite também, não há o que se possa fazer, pois dois mais dois são quatro – isso é matemática. Tente objetar!
Perdão, senhores”, hão de lhes gritar, “é impossível rebelar-se: trata-se de dois e dois são quatro! A natureza não lhes pede licença, não se importa com seus desejos e nem se suas leis lhes agradam ou não. Os senhores devem aceitá-la tal como é e, consequentemente, todos os seus resultados também. Um muro, portanto, é mesmo um muro... etc. etc.” Ó meu Deus! Que tenho a ver com as leis da natureza e com a aritmética, se essas leis e dois e dois são quatro, por alguma razão, não me agradam? Evidentemente, não quebrarei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças para isso, mas nem assim vou resignar-me somente porque encontrei um muro e não tive forças para rompê-lo.
Como se tal muro de pedra fosse de fato um alívio e contivesse uma palavra que fosse para o mundo, unicamente por ele ser dois mais dois são quatro. Ó, cúmulo do absurdo! Muito melhor é compreender tudo, perceber tudo, todas as impossibilidades e muros de pedra; não se resignar diante de nenhuma dessas impossibilidades e muros de pedra, se isso lhe repugna; através das mais inevitáveis combinações lógicas, chegar às conclusões mais abomináveis sobre o eterno tema de que até desse muro de pedra você de certa forma é o próprio culpado, embora esteja perfeitamente claro e evidente que você não é culpado, e, em consequência disso, rangendo os dentes impotente e calado, ficar paralisado numa inércia voluptuosa, vendo em seus devaneios que na realidade você nem tem alguém de quem possa ter raiva; que não se encontra o objeto e que talvez nunca seja encontrado, que aqui existe uma fraude, um embuste, uma trapaça, existe simplesmente algo intragável – não se sabe o que, não se sabe quem, mas que, apesar de todas essas incógnitas e embustes, é doloroso para você, e quanto mais desconhecido, mais doloroso é!
Dostoievski, in Notas do subsolo

Nenhum comentário:

Postar um comentário