quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O subsolo - 2

Agora desejo lhes contar, queiram ou não ouvir, por que não consegui me tornar nem ao menos um inseto. Afirmo-lhes solenemente que muitas vezes quis tornar-me um inseto. Mas nem isso mereci. Asseguro-lhes que ter uma consciência exagerada é uma doença, verdadeira e completa doença. Para o dia-a-dia do ser humano seria mais do que suficiente a consciência do homem comum, ou seja, a metade ou um quarto menor do que a porção que toca a cada pessoa evoluída do nosso infeliz século XIX que, ainda por cima, tem a infelicidade excepcional de morar em Petersburgo, a cidade mais abstrata e premeditada de todo o globo terrestre. (Há cidades premeditadas e não-premeditadas.) Seria inteiramente suficiente, por exemplo, uma consciência igual à dos assim chamados indivíduos e homens de ação “diretos”. Aposto que os senhores estão pensando que estou escrevendo tudo isso por gabolice, para fazer graça às custas dos homens de ação, e estão pensando ainda que, num gracejo de péssimo gosto, faço tinir meu sabre, como o meu oficial. Mas, senhores, quem pode se gabar de suas próprias doenças e ainda usá-las para fazer pilhéria?
Aliás, que estou dizendo? É isso que todos fazem: vangloriar-se de suas doenças, e faço-o, talvez, mais do que todo mundo. Não vamos discutir; minha objeção é absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só a consciência em alto grau é uma doença, como também o é qualquer consciência. Insisto nisso. Deixemos isso de lado por um minuto. Respondam-me o seguinte: por que motivo, nos exatos minutos em que eu era mais capaz de perceber todas as sutilezas “de tudo o que é belo e sublime”, como se costumava dizer aqui numa certa época, como que propositalmente eu não as percebia e cometia atos tão indecorosos, atos tais que... bem, resumindo, atos que talvez todos pratiquem, mas que, como que de propósito, aconteciam comigo exatamente no momento em que eu mais tinha consciência de que não se deve absolutamente praticá-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de todo esse “belo e sublime”, mais afundava no meu lodo e mais capaz me tornava de atolar-me nele completamente. Mas a característica mais importante era que parecia que não era por acaso que isso acontecia comigo, que era para ser assim mesmo. Como se isso fosse o meu estado mais normal e de maneira nenhuma uma doença ou avaria, o que, finalmente, tirou-me a vontade de lutar contra esse defeito. O resultado disso foi que por pouco não acreditei (ou talvez tenha mesmo acreditado) que esse seria meu estado normal. E, no início, bem no comecinho, quanto sofrimento passei nessa luta! Não acreditava que o mesmo acontecia com as outras pessoas e por isso escondi isso comigo, como um segredo, durante toda a vida. Sentia vergonha (é até possível que ainda sinta); chegava ao ponto de sentir uma satisfaçãozinha secreta, anormal, sordidazinha, ao voltar para o meu canto, numa daquelas noites repugnantes de Petersburgo, e insistentemente perceber que naquele dia novamente fizera uma canalhice, que novamente o que tinha sido feito não poderia ser desfeito. E lá dentro, secretamente, me remoer, me retalhar e me sugar, até que a amargura se transformava, finalmente, numa doçura infame e maldita e, finalmente, num deleite sério e decisivo! Sim, num deleite, num deleite! Insisto nisso. Foi por isso que toquei nesse assunto e ainda quero saber com certeza: outras pessoas costumam ter tais deleites? Explico-lhes: o deleite aqui derivava precisamente da consciência excessivamente clara de minha humilhação; de que você sente que já chegou ao derradeiro limite; que isso é detestável, mas também, que outra coisa é impossível; que você já não tem saída, já não pode mudar. Mesmo se ainda restasse tempo e fé para se transformar em algo diferente, provavelmente você mesmo não iria querer se transformar; e, se quisesse, ainda assim não faria nada, porque talvez não houvesse no que se transformar. Mas o principal e o fim derradeiro é que tudo isso transcorre de acordo com as leis normais e básicas da consciência amplificada e pela inércia derivada diretamente dessas leis e, consequentemente, nesse caso não só não é possível transformar-se, como simplesmente não se pode fazer nada. Por exemplo, resulta o seguinte em consequência da consciência amplificada: você está certo em ser um patife, como se fosse consolo para um patife se ele mesmo já percebe que é realmente um patife. Mas basta de... Ora, falei pelos cotovelos e o que expliquei? Como se explica o deleite nesse caso? Mas hei de explicar-me! Irei até o fim! Foi para isso que peguei a pena...
Sou, por exemplo, uma pessoa com um amor-próprio exagerado. Sou desconfiado e ressentido, como um corcunda ou um anão, embora, verdade seja dita, houvesse momentos em que, se me dessem uma bofetada, eu talvez ficasse alegre até com isso. Estou falando sério: provavelmente eu conseguiria, aí também, achar um certo tipo de prazer; sem dúvida, o prazer do desespero, mas é no desespero que acontecem os prazeres mais intensos, especialmente quando você já percebe muito fortemente que sua situação não tem saída. E quando ocorre a bofetada, aí então você fica esmagado pela percepção de que o trituraram até virar pasta. O mais importante é que, por mais que se reflita a respeito, de qualquer maneira resulta que eu sempre sou o principal culpado de tudo e, o que é mais lastimável, sou culpado sem culpa e de acordo com as leis da natureza, por assim dizer. Sou culpado, em primeiro lugar, porque sou mais inteligente do que todos os que me rodeiam. (Sempre me considerei mais inteligente do que todos os que me rodeiam e, às vezes – podem crer? – até disso me envergonhava. Pelo menos, toda a vida eu andei olhando para o lado e nunca conseguia olhar diretamente nos olhos das pessoas.) Sou, finalmente, culpado porque, mesmo se houvesse em mim generosidade, meus tormentos seriam maiores por perceber toda a sua inutilidade. Pois eu provavelmente não conseguiria usar minha generosidade para nada: nem para perdoar, porque o ofensor pode ter-me golpeado de acordo com as leis da natureza, e as leis da natureza não podem ser perdoadas; nem para esquecer, porque, mesmo que seja pelas leis da natureza, é insultuoso do mesmo jeito. Finalmente, até se eu não quisesse ser de maneira alguma generoso e, ao contrário, desejasse me vingar do meu ofensor, eu não conseguiria me vingar de nada e de ninguém, porque provavelmente não me decidiria a fazer o que quer que fosse, mesmo se pudesse. E por que não me decidiria? Sobre isso quero dizer duas palavras em separado.
Dostoievski, in Notas do subsolo

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