[…]
E então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece
que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo
na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado
de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo
muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu
ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome
sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente
estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e
essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a
qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou
vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja
acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de
uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca
enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo
menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não
sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada
com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo
de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não
fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas,
se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que
temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não
perguntar mais nada.
Pois
tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma
risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço
de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e
bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão
Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e
Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos,
recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou
versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo
de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver
com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados,
a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de
beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que
tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho
mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de
ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim
belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca
convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que
Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica
e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a
andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de
muleiros, essa é que é a verdade.
É
assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou
sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho
mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e
decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já
estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado
para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa
parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando
para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que
era Deus e tal e coisa.
Ah,
para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para
Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que
provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que
era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse
de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade,
embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande
logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só
preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se
aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta
hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo,
que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse
daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por
cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois
foram andando para fora, num particular e, de repente, se
desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos,
meio dispersados pelo vento.
— Você
tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. — Faz-se de
besta! — dizia Quinca.
E
só quebrando portada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não
ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na portada, eu já conhecia.
Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas
quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale
essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas
mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela
ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e
para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã
e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém
não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o
cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo. — Muito bem —
disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que
já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu
volto aqui outra vez.
—
Voltar, pode voltar, terá comida e
bebida — disse Quinca. — Mas não vai me convencer!
—
Rapaz, deixe de ser que nem suas mulas!
— Posso
ser mula, mas não tenho cara de jegue!
E
aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis
ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para
Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na
missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na
hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos
esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e
disse: fracasso nada, rapaz. Não falei nada, disse eu. Mas sentiu,
disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes.
E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu.
João
Ubaldo Ribeiro, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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