Para
Susana Scramim
I
No
romance Paradiso, o grande escritor cubano José Lezama Lima
diz que um ser humano só começa a envelhecer depois da morte do
pai. Freud atribui a essa morte um dos grandes traumas de um filho.
Quem
já perdeu um pai sabe disso e sente essa ausência com pesar. Aos
poucos surgem lembranças de imagens e vozes que a língua portuguesa
resume numa palavra intraduzível: saudade.
A
amizade e a cumplicidade prevalecem sobre as discussões, discórdias
e outras asperezas de uma relação às vezes complicada, mas sempre
profunda. Às vezes você lamenta não ter conversado mais com o seu
pai, não ter convivido mais tempo com ele. E essas lacunas jamais
serão preenchidas, nem mesmo no divã das demoradas sessões de
análise. No outro lado do espelho não há mais nada, apenas
silêncio e lembranças.
II
Mas
há também pais terríveis, opressores e tirânicos na vida e na
literatura. Carta ao pai, de Franz Kafka, é um dos exemplos
notáveis do pai castrador, que interfere nas relações amorosas e
na profissão do filho. Um pai que não se conforma com um grão de
felicidade do jovem Franz. A Carta é o inventário de uma vida
infernal. É difícil saber até que ponto o pai de Kafka na Carta é
totalmente verdadeiro. Pode ser uma construção ficcional ou um pai
figurado, mais ou menos próximo do verdadeiro. Mas isso atenua o
sofrimento do narrador? O leitor acredita na figuração desse pai.
Em cada página, o que prevalece é uma alternância de sofrimento e
humilhação, imposta por um homem prepotente e autoritário.
III
Na
minha juventude conheci alguns pais demoníacos, que oprimiam seus
filhos, pensando que os educavam. Quando eu terminava o curso de
arquitetura e urbanismo na USP, o pai de um amigo me chamou para uma
conversa formal. Perguntei qual era o assunto.
“Meu
filho”, respondeu.
Ele
queria que eu convencesse o filho a abandonar a música para se
tornar um grande arquiteto.
Argumentei
que o meu amigo nunca ia ser arquiteto, nem talentoso nem medíocre.
Ele tinha talento para música, ia abandonar a faculdade para ser
violinista. Acrescentei que o meu caso era semelhante: eu estudava
arquitetura, já trabalhava no escritório de um arquiteto, mas esta
não seria minha profissão.
“Dois
idiotas, você e meu filho”, disse o pai. “Vão morrer de fome.”
Um
artista da fome é o título de outro grande relato de Kafka.
Ainda vejo aquele pai enfurecido e atormentado que tentou por todos
os meios sufocar o desejo e o talento de seu filho.
Lembro
que meu amigo rompeu com o seu pai e viajou para a Alemanha, onde
tentou aprofundar seus estudos em música instrumental. Naquela época
eu morava na França, e, quando soube que ele estava doente, fui
visitá-lo. Para sobreviver, havia trabalhado com instalação
hidráulica, pois era cobra nessa disciplina ministrada por um
professor da Escola Politécnica que apavorava os estudantes da FAU.
“Ganho
dinheiro como operário”, ele me disse. “Mas tive que parar de
trabalhar. Não tenho mais força…”
“E
o teu pai?”, perguntei.
“Não
fala comigo há quatro anos.”
Estava
fraco e deprimido. Parecia a pessoa mais triste do mundo. Ele me deu
a impressão de que não era um expatriado, e sim um exilado, um ser
banido de seu país e de sua família. Falou no desejo de
reconciliar-se com o pai e perguntou se eu poderia ajudá-lo.
Telefonei
para São Paulo, ouvi um sermão e desliguei.
Meu
amigo morreu ainda jovem, sem realizar o desejo de reconciliação
com um homem que podia ser tudo, menos generoso.
IV
A
vida é sempre mais complexa e imprevisível do que a literatura. O
encontro aconteceu numa praça de São Paulo. Por ironia, eu passeava
com o meu filho, que se afastou de mim e parou diante de um velho
sentado num banco de madeira. Sozinho, entre uma estátua e um
cachorro. Eu me aproximei e reconheci o pai do meu amigo. Já não
era — nem podia ser — o homem intransigente e ríspido que eu
havia conhecido. Ele pôs a mão na cabeça da criança que o
observava e demorou um ou dois minutos para reconhecer o pai do
menino. Eu me lembrei da nossa conversa em algum dia de 1976. Quase
ao mesmo tempo me lembrei do meu amigo, o violinista. Não sei o que
aquele homem velho e abatido pensou enquanto me olhava. Nem soube
decifrar no olhar o sentimento dele. Parecia um estranho.
De
fato, éramos estranhos.
Fui
embora de mãos dadas com a criança, pensando como a incompreensão
ou a loucura de um pai pode abismar o destino de um filho.
Nunca
mais vi aquele pai.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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