terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O pai e um violinista

Para Susana Scramim

I
No romance Paradiso, o grande escritor cubano José Lezama Lima diz que um ser humano só começa a envelhecer depois da morte do pai. Freud atribui a essa morte um dos grandes traumas de um filho.
Quem já perdeu um pai sabe disso e sente essa ausência com pesar. Aos poucos surgem lembranças de imagens e vozes que a língua portuguesa resume numa palavra intraduzível: saudade.
A amizade e a cumplicidade prevalecem sobre as discussões, discórdias e outras asperezas de uma relação às vezes complicada, mas sempre profunda. Às vezes você lamenta não ter conversado mais com o seu pai, não ter convivido mais tempo com ele. E essas lacunas jamais serão preenchidas, nem mesmo no divã das demoradas sessões de análise. No outro lado do espelho não há mais nada, apenas silêncio e lembranças.

II
Mas há também pais terríveis, opressores e tirânicos na vida e na literatura. Carta ao pai, de Franz Kafka, é um dos exemplos notáveis do pai castrador, que interfere nas relações amorosas e na profissão do filho. Um pai que não se conforma com um grão de felicidade do jovem Franz. A Carta é o inventário de uma vida infernal. É difícil saber até que ponto o pai de Kafka na Carta é totalmente verdadeiro. Pode ser uma construção ficcional ou um pai figurado, mais ou menos próximo do verdadeiro. Mas isso atenua o sofrimento do narrador? O leitor acredita na figuração desse pai. Em cada página, o que prevalece é uma alternância de sofrimento e humilhação, imposta por um homem prepotente e autoritário.

III
Na minha juventude conheci alguns pais demoníacos, que oprimiam seus filhos, pensando que os educavam. Quando eu terminava o curso de arquitetura e urbanismo na USP, o pai de um amigo me chamou para uma conversa formal. Perguntei qual era o assunto.
Meu filho”, respondeu.
Ele queria que eu convencesse o filho a abandonar a música para se tornar um grande arquiteto.
Argumentei que o meu amigo nunca ia ser arquiteto, nem talentoso nem medíocre. Ele tinha talento para música, ia abandonar a faculdade para ser violinista. Acrescentei que o meu caso era semelhante: eu estudava arquitetura, já trabalhava no escritório de um arquiteto, mas esta não seria minha profissão.
Dois idiotas, você e meu filho”, disse o pai. “Vão morrer de fome.”
Um artista da fome é o título de outro grande relato de Kafka. Ainda vejo aquele pai enfurecido e atormentado que tentou por todos os meios sufocar o desejo e o talento de seu filho.
Lembro que meu amigo rompeu com o seu pai e viajou para a Alemanha, onde tentou aprofundar seus estudos em música instrumental. Naquela época eu morava na França, e, quando soube que ele estava doente, fui visitá-lo. Para sobreviver, havia trabalhado com instalação hidráulica, pois era cobra nessa disciplina ministrada por um professor da Escola Politécnica que apavorava os estudantes da FAU.
Ganho dinheiro como operário”, ele me disse. “Mas tive que parar de trabalhar. Não tenho mais força…”
E o teu pai?”, perguntei.
Não fala comigo há quatro anos.”
Estava fraco e deprimido. Parecia a pessoa mais triste do mundo. Ele me deu a impressão de que não era um expatriado, e sim um exilado, um ser banido de seu país e de sua família. Falou no desejo de reconciliar-se com o pai e perguntou se eu poderia ajudá-lo.
Telefonei para São Paulo, ouvi um sermão e desliguei.
Meu amigo morreu ainda jovem, sem realizar o desejo de reconciliação com um homem que podia ser tudo, menos generoso.

IV
A vida é sempre mais complexa e imprevisível do que a literatura. O encontro aconteceu numa praça de São Paulo. Por ironia, eu passeava com o meu filho, que se afastou de mim e parou diante de um velho sentado num banco de madeira. Sozinho, entre uma estátua e um cachorro. Eu me aproximei e reconheci o pai do meu amigo. Já não era — nem podia ser — o homem intransigente e ríspido que eu havia conhecido. Ele pôs a mão na cabeça da criança que o observava e demorou um ou dois minutos para reconhecer o pai do menino. Eu me lembrei da nossa conversa em algum dia de 1976. Quase ao mesmo tempo me lembrei do meu amigo, o violinista. Não sei o que aquele homem velho e abatido pensou enquanto me olhava. Nem soube decifrar no olhar o sentimento dele. Parecia um estranho.
De fato, éramos estranhos.
Fui embora de mãos dadas com a criança, pensando como a incompreensão ou a loucura de um pai pode abismar o destino de um filho.
Nunca mais vi aquele pai.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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