Esta
é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de
Jacó. (Salmos, XXIII, 6)
Cansado
eu vim, cansado eu volto.
A
nossa primeira desavença conjugal surgiu quando a fera ameaçou
descer ao vale. Joaquina, a exemplo da maioria dos habitantes do
povoado, estava preocupada com os estranhos rumores que vinham da
serra.
Inicialmente
pretendeu incutir-me uma tola superstição. Ri-me da sua crendice:
um lobisomem?! Era só o que faltava!
Ao
verificar que ela não gracejava e se punha impaciente com o meu
sarcasmo, quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia. Os meus
argumentos não foram levados a sério: ambos tínhamos pontos de
vista bastante definidos e irremediavelmente antagônicos.
Com
o passar dos dias, os gemidos do animal tornaram-se mais nítidos e
minha mulher, indignada com o meu ceticismo, praguejava.
Silencioso,
eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinha
uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas.
Esperei,
por algum tempo, que a fera abandonasse o seu refúgio e viesse ao
nosso encontro. Como tardasse, saí à sua procura, ignorando os
protestos de minha esposa e as ameaças de romper definitivamente
comigo, caso eu persistisse nos meus propósitos.
Iniciara
a excursão ao amanhecer. Pela tarde, depois de estafante caminhada,
encontrei o animal.
Nenhum
receio me veio ao defrontá-lo. Ao contrário, fiquei comovido,
sentindo a ternura que emanava dos seus olhos infantis.
Sem
fazer qualquer movimento agressivo, de vez em quando levantava a
cabeça — pequenina e ridícula — e gemia. Quase achei graça no
seu corpo desajeitado de dromedário.
O
riso brincou frouxo dentro de mim e não aflorou aos lábios, que se
retorceram de pena.
Com
muito cuidado para não assustá-lo, fui me aproximando. Uma pequena
distância nos separava e, tímido, perguntei o que desejava de nós
e a quem dirigia a sua desalentadora mensagem. Nada respondeu.
Não
me dei por vencido ante o seu silêncio. Insisti com mais vigor:
— De
onde veio? Por que não desceu ao povoado? Eu o esperava tanto!
O
meu constrangimento aumentava à medida que renovava inutilmente as
perguntas.
Em
dado momento, vendo que falava em vão, perdi a paciência:
— E
o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta montanha?
Parou
de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade. Em seguida, sem
tirar o chapéu, murmurou:
— Bebo
água.
A
frase, pronunciada com dificuldade, numa voz cansada, cheia de tédio,
desvendou-me o sentido da mensagem.
Na
minha frente estava o meu irmão Alfredo, que ficara para trás,
quando procurei em outros lugares a tranquilidade que a planície não
me dera.
Tampouco
eu viria a encontrá-la no vale. Por isso vinha buscar-me.
Depois
de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pescoço magro,
enlacei-o com uma corda. Fomos descendo, a passos lentos, em direção
à aldeia.
Atravessamos
a rua principal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a
chegada do meu irmão fosse um acontecimento banal. Ocultei a revolta
e levei-o pela ruazinha mal calçada que nos conduziria à minha
residência.
Joaquina
nos aguardava no portão. Sem trocarmos sequer uma palavra, afastei-a
com o braço. Contudo, ela voltou ao mesmo lugar. Deu-me um empurrão
e disse não consentir em hospedar em nossa casa semelhante animal.
—
Animal é a vó. Este é meu irmão
Alfredo. Não admito que o insulte assim.
— Já
que não admite, sumam daqui os dois!
Alfredo,
que assistia à nossa discussão com total desinteresse, entrou na
conversa, dando um aparte fora de hora:
— Muito
interessante. Esta senhora tem dois olhos: um verde e outro azul.
Irritada
com a observação, Joaquina deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele,
humilhado, abaixava a cabeça.
Tive
ímpetos de espancar minha mulher, mas meu irmão se pôs a caminhar
vagarosamente, arrastando-me pela corda que eu segurava nas mãos.
Ao
anoitecer, encontramo-nos novamente no alto da serra. Lá embaixo,
pequenas luzes indicavam a existência do povoado. A fome e o cansaço
me oprimiam: todavia, não pude evitar que o meu passado se
desenrolasse, penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal.
(—
Joaquim Boaventura, filho de uma égua! — As mãos grossas,
enormes, avançaram para o meu pescoço. Deixei cair o pedaço de mão
que roubara e esperei, apavorado, o castigo.)
Filho
de uma égua. Como tinha sido ilusória a minha fuga da planície,
pensando encontrar a felicidade do outro lado das montanhas. Filho de
uma égua!
*
* *
Alfredo
pediu-me que descansássemos um pouco. Sentou-se sobre as pernas e
deixou que eu lhe acariciasse a cabeça.
Também
ele caminhara muito e inutilmente. Porém, na sua fuga, fora
demasiado longe, tentando isolar-se, escapar aos homens, ao passo que
eu apenas buscara no vale uma serenidade impossível de ser
encontrada.
De
início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num
porco, convencido da impossibilidade de conviver com seus
semelhantes, a se entredevorarem no ódio. Tentou apaziguá-los e
voltaram-se contra ele.
Transformado
em porco, perdeu o sossego. Levava o tempo fossando o chão
lamacento. E ainda tinha que lutar com os companheiros, sem que, para
isso, houvesse um motivo relevante.
Imaginou,
então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê?
Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu
transmudar-se no verbo resolver.
E
o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável.
Entretanto,
o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o
remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo
assuntos, deixando de solucionar a maioria deles. Mas, quando lhe
pediram que desse um jeito em mais uma briga familiar, recusou-se:
— Isso
é que não!
E
transformou-se em dromedário, esperando que beber água o resto da
vida seria um ofício menos extenuante.
A
madrugada ainda nos encontrou no alto da serra. Espiei pela última
vez o povoado, sob a névoa da garoa que caía. Perdera mais uma
jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do
passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas.
Atravessaria outras cordilheiras, azuis como todas elas. Alcançaria
vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das
manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro.
Alfredo,
enternecido com a melancolia que machucava os meus olhos, passou de
leve na minha face a sua áspera língua. Levantando-me, puxei-o pela
corda e fomos descendo lentamente a serra. Sim.
Cansado
eu vim, cansado eu volto.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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