A
viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se
atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando
acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter
casa. Mwadia Malunga sentiu que realmente viajava quando perdeu de
vista o único casebre de Antigamente. Nunca ela pensara regressar a
Vila Longe, sua terra natal. Não fosse o aparecimento da Santa e ela
permaneceria enclausurada na solidão.
Quando
chegou ao rio Mussenguezi ela procurou pelo barco. Era uma canoa
feita de um tronco de mbawa e estava ocultada entre os caniços da
margem. O lugar era-lhe familiar. Era ali que Mwadia vinha na
companhia de Lázaro, todos os três meses, trazer os cabritos e
receber, em troca, mantimentos e os bens para a sua sobrevivência.
Nunca ela vira o comerciante com quem trocava mercadorias.
Limitava-se a deixar os bichos na sombra de uma msassa onde já
haviam sido depositados os alimentos, o sal, os fósforos, o petróleo
e alguma roupa.
Desta
vez, tudo era diferente. Era ela que se trocava em nome da salvação
de Zero e do seu mundo solitário. Mwadia olhou para o burro Mbongolo
e mediu a tarefa de o meter dentro da canoa. Não seria o peso que
constituiria atrapalhação. O bicho estava magro, a pele sobrando no
cabide dos ossos. Zero dizia que era assim que os seus jumentos
morriam: emagreciam até levantar voo, mais ligeiros que o
beija-flor.
Não
tarda que este também vá, pensou Mwadia enquanto empurrava o
animal pelos quadris. Todavia, Mbongolo tinha uma testa maior que o
corpo e recusava tirar os cascos do chão. Felizmente, devido à
seca, o caudal se tornara superficial. O jumento atravessou a
preguiçosa corrente, caminhando ao lado da canoa, sem tirar os olhos
de Mwadia. Sobre o seu lombo, Nossa Senhora balançava e parecia que
um sorriso lhe aflorava o esculpido rosto. Junto dela se equilibrava
o baú dos manuscritos.
Chegada
à outra margem, a mulher encheu o peito medindo forças com o
horizonte. As árvores que ela vislumbrara frondosas junto ao rio
eram aqui uma ossatura vegetal, ramos indigentes raspando os céus.
Árvores de rapina.
***
O
sol queimava e Mwadia abriu o velho guarda-sol sobre o jumento. Não
era o bicho que ela protegia. A sombra pousava, sim, sobre a sagrada
imagem.
— Não
quero que adoeça, Santinha, com essa pele tão branca...
Nossa
Senhora caísse em doença e a desgraça desceria em Antigamente. O
marido pagaria com a própria vida, consoante o mau agoiro traduzido
por Lázaro Vivo. Foi então, e só então, que Mwadia reparou que um
lenço branco estava amarrado ao único pé da Santa. Era um desses
panos que se enrolam nos troncos das árvores sagradas e que lembram
os espíritos dos antepassados. Ainda lhe ocorreu desamarrar o lenço,
devolvendo a pureza cristã ao ícone. Mas uma dor lhe prendeu o
braço e paralisou a sua intenção.
O
burro fitou a mulher, fremiu as narinas e desceu as orelhas. Parecia
pedir-lhe uma pausa, um brevíssimo repouso. Mwadia não condescendeu
e deu ordem para reiniciar a marcha solar, cada passo pesando como
pedra que se rasgasse do chão. A mulher sentia o soprar das ventas
do jumento como uma compassada acusação nas suas costas.
— Não
me chateie, burrito. Não me venha amolecer o coração.
Não
era insensibilidade. Mwadia sabia que o burro a si mesmo se bastava.
Os olhos dele, tão cheios de água, davam-lhe a sombra de que
carecia. E as borboletas, sedentas, continuavam bebendo nos seus
olhos.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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