sábado, 23 de dezembro de 2017

A travessia do tempo (trecho)

A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa. Mwadia Malunga sentiu que realmente viajava quando perdeu de vista o único casebre de Antigamente. Nunca ela pensara regressar a Vila Longe, sua terra natal. Não fosse o aparecimento da Santa e ela permaneceria enclausurada na solidão.
Quando chegou ao rio Mussenguezi ela procurou pelo barco. Era uma canoa feita de um tronco de mbawa e estava ocultada entre os caniços da margem. O lugar era-lhe familiar. Era ali que Mwadia vinha na companhia de Lázaro, todos os três meses, trazer os cabritos e receber, em troca, mantimentos e os bens para a sua sobrevivência. Nunca ela vira o comerciante com quem trocava mercadorias. Limitava-se a deixar os bichos na sombra de uma msassa onde já haviam sido depositados os alimentos, o sal, os fósforos, o petróleo e alguma roupa.
Desta vez, tudo era diferente. Era ela que se trocava em nome da salvação de Zero e do seu mundo solitário. Mwadia olhou para o burro Mbongolo e mediu a tarefa de o meter dentro da canoa. Não seria o peso que constituiria atrapalhação. O bicho estava magro, a pele sobrando no cabide dos ossos. Zero dizia que era assim que os seus jumentos morriam: emagreciam até levantar voo, mais ligeiros que o beija-flor.
Não tarda que este também vá, pensou Mwadia enquanto empurrava o animal pelos quadris. Todavia, Mbongolo tinha uma testa maior que o corpo e recusava tirar os cascos do chão. Felizmente, devido à seca, o caudal se tornara superficial. O jumento atravessou a preguiçosa corrente, caminhando ao lado da canoa, sem tirar os olhos de Mwadia. Sobre o seu lombo, Nossa Senhora balançava e parecia que um sorriso lhe aflorava o esculpido rosto. Junto dela se equilibrava o baú dos manuscritos.
Chegada à outra margem, a mulher encheu o peito medindo forças com o horizonte. As árvores que ela vislumbrara frondosas junto ao rio eram aqui uma ossatura vegetal, ramos indigentes raspando os céus. Árvores de rapina.

***
O sol queimava e Mwadia abriu o velho guarda-sol sobre o jumento. Não era o bicho que ela protegia. A sombra pousava, sim, sobre a sagrada imagem.
Não quero que adoeça, Santinha, com essa pele tão branca...
Nossa Senhora caísse em doença e a desgraça desceria em Antigamente. O marido pagaria com a própria vida, consoante o mau agoiro traduzido por Lázaro Vivo. Foi então, e só então, que Mwadia reparou que um lenço branco estava amarrado ao único pé da Santa. Era um desses panos que se enrolam nos troncos das árvores sagradas e que lembram os espíritos dos antepassados. Ainda lhe ocorreu desamarrar o lenço, devolvendo a pureza cristã ao ícone. Mas uma dor lhe prendeu o braço e paralisou a sua intenção.
O burro fitou a mulher, fremiu as narinas e desceu as orelhas. Parecia pedir-lhe uma pausa, um brevíssimo repouso. Mwadia não condescendeu e deu ordem para reiniciar a marcha solar, cada passo pesando como pedra que se rasgasse do chão. A mulher sentia o soprar das ventas do jumento como uma compassada acusação nas suas costas.
Não me chateie, burrito. Não me venha amolecer o coração.
Não era insensibilidade. Mwadia sabia que o burro a si mesmo se bastava. Os olhos dele, tão cheios de água, davam-lhe a sombra de que carecia. E as borboletas, sedentas, continuavam bebendo nos seus olhos.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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