Cogitei
essa possibilidade. A ideia de voar através do Nebraska e do Wyoming
noite adentro, amanhecer no ar abafado do deserto de Utah, ver as
cores do fim de tarde esparramando-se no deserto de Nevada, e chegar
a Los Angeles num prazo bastante previsível, quase me fez mudar de
planos. Mas eu tinha que ir para Denver. Por Isso, também teria de
saltar em Cheyenne, e dali pagar uma carona para o sul, uns cento e
cinqüenta quilômetros mais ou menos. Fiquei contente quando os dois
colonos de Minnesota, que eram donos do caminhão, decidiram dar uma
parada em North Platte para comer. Queria saber qual era a deles.
Saltaram da cabina e sorriram para todos nós: — Hora de dar uma
mijadinha — disse um. — Hora de comer — disse o outro. Só que
eles eram os únicos na festa com dinheiro suficiente para comprar
comida. Todo mundo se arrastou atrás deles para dentro de um
restaurante, dirigido por um bando de mulheres, e nos sentamos entre
hambúrgueres e xícaras fumegantes de café, enquanto eles devoravam
enormes pratos-feitos como se tivessem retornado à cozinha de sua
mãe. Eram irmãos, transportavam máquinas agrícolas de Los Angeles
para Minnesota e faziam um bom dinheiro com isso. Por isso, em sua
viagem para a costa, quando estavam sem carga, davam carona a todos
os que iam encontrando pela estrada. Já tinham feito umas cinco
viagens, era trabalho pesado. Mas eles gostavam de tudo, jamais
desmanchavam aquele sorriso luminoso. Tentei puxar conversa, era uma
ideia estúpida de minha parte querer fazer amizade com os capitães
do nosso navio — e as únicas respostas que recebi foram dois
sorrisos ensolarados, adornados por largos dentes radiantes, criados
a milho.
Todos
os seguiram ao restaurante, menos os dois jovens vagabundos, Gene e
seu garoto. Quando retornamos, eles ainda estavam sentados no
caminhão, solitários e soturnos. A noite estava caindo. Os dois
garotos do caminhão fumavam; decidi aproveitar a chance para comprar
uma garrafa de uísque e me manter aquecido no gélido e ventoso ar
noturno. Eles sorriram quando lhes falei sobre isso.
— Vá
em frente, não perca tempo.
— Na
volta dou uns goles para vocês — tranquilizei-os.
— Oh,
não. A gente não bebe jamais. Vá firme.
Montana
Slim e os dois atletas escolares perambularam comigo pelas ruas de
North Platte, até que encontrei um boteco qualquer. Eles
contribuíram com um pouco, Slim outro pouco, e eu pude comprar quase
um litro. Homens altos e taciturnos nos observavam passar, plantados
em frente a pequenos edifícios de fachada postiça; na rua principal
se alinhavam uns chalés retilíneos e empertigados. Para além de
cada rua melancólica, descortinavam-se vistas imensas das planícies.
Senti algo estranho no ar de North Platte, e não sabia bem o que
era. Em cinco minutos eu saberia. Voltamos para o caminhão e caímos
fora. Escureceu num instante. Todos tomaram um trago e, de repente,
olhei para os lados, os campos verdejantes das fazendas do Platte
começaram a desaparecer, e no lugar surgiram achatados e amplos
desertos de areia e arbustos ressequidos, que se esparramavam tão
longe quanto os olhos pudessem alcançar. Fiquei estarrecido.
— Que
porra é isso, homem? — perguntei a Slim.
— Este
é o começo das pradarias, garoto. Me passe outro trago.
—
Iuuúpii! — gritaram os colegiais. —
Tchau, Columbus! O que Sparkie e os garotos diriam se estivessem
aqui! Uau!
Os
motoristas tinham se revezado, e o irmão mais moço acelerava o
caminhão até a velocidade máxima. A estrada mudou também:
calombos na pista, acostamentos estreitos com valões de um metro e
meio de fundura de ambos os lados, e o caminhão corcoveava de um
lado para o outro da estrada — milagrosamente, apenas quando não
havia nenhum carro vindo na direção oposta —, e eu pensei que
iríamos acabar dando um salto mortal. Mas eles eram exímios
motoristas. E sabiam fazer aquele caminhão se desviar dos calombos
do Nebraska — calombos que se prolongavam até o Colorado. Então,
percebi que finalmente eu já estava em Colorado, ainda não
oficialmente, mas podia pressentir Denver a apenas algumas centenas
de quilômetros a sudoeste dali. Gritei de tanta felicidade. A
garrafa circulava. O céu se povoou de magníficas estrelas
resplandecentes. As distantes colinas arenosas se obscureceram.
Sentia-me veloz como uma flecha, capaz de vencer todas as distâncias.
De
repente, Mississipi Gene se virou para mim interrompendo seu transe
contemplativo de pernas cruzadas, moveu os lábios, se aproximou e
disse: — Essas planícies me fazem lembrar o Texas.
— Você
é do Texas?
— Não,
senhor, sou de Green-vell, Muzz-sippy. — E foi bem assim que ele
falou.
— E
o menino, de onde é?
— Ele
se meteu em encrencas lá no Mississipi, então me ofereci para
ajudá-lo. Jamais rodou sozinho por aí. Tomo conta dele da melhor
forma que posso. É apenas uma criança. — Embora Gene fosse
branco, havia nele algo da sabedoria de um velho negro experiente, e
algo que lembrava demais Elmer Hassel, o viciado de Nova York, mas
era como se fosse um Hassel das estradas de ferro, um épico Hassel
andarilho, que cruzasse e tornasse a cruzar a nação anualmente,
curtindo o sul no inverno, imigrando para o norte no verão, apenas
porque não havia nenhum lugar onde pudesse permanecer sem cair no
tédio, e também porque não havia lugar algum para ir senão todos
os lugares, rodando sempre sob as estrelas, especialmente as estrelas
do oeste.
Jack
Kerouac, in On the road – Pé na estrada
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