sábado, 12 de agosto de 2017

Um garoto metido em encrencas


Cogitei essa possibilidade. A ideia de voar através do Nebraska e do Wyoming noite adentro, amanhecer no ar abafado do deserto de Utah, ver as cores do fim de tarde esparramando-se no deserto de Nevada, e chegar a Los Angeles num prazo bastante previsível, quase me fez mudar de planos. Mas eu tinha que ir para Denver. Por Isso, também teria de saltar em Cheyenne, e dali pagar uma carona para o sul, uns cento e cinqüenta quilômetros mais ou menos. Fiquei contente quando os dois colonos de Minnesota, que eram donos do caminhão, decidiram dar uma parada em North Platte para comer. Queria saber qual era a deles. Saltaram da cabina e sorriram para todos nós: — Hora de dar uma mijadinha — disse um. — Hora de comer — disse o outro. Só que eles eram os únicos na festa com dinheiro suficiente para comprar comida. Todo mundo se arrastou atrás deles para dentro de um restaurante, dirigido por um bando de mulheres, e nos sentamos entre hambúrgueres e xícaras fumegantes de café, enquanto eles devoravam enormes pratos-feitos como se tivessem retornado à cozinha de sua mãe. Eram irmãos, transportavam máquinas agrícolas de Los Angeles para Minnesota e faziam um bom dinheiro com isso. Por isso, em sua viagem para a costa, quando estavam sem carga, davam carona a todos os que iam encontrando pela estrada. Já tinham feito umas cinco viagens, era trabalho pesado. Mas eles gostavam de tudo, jamais desmanchavam aquele sorriso luminoso. Tentei puxar conversa, era uma ideia estúpida de minha parte querer fazer amizade com os capitães do nosso navio — e as únicas respostas que recebi foram dois sorrisos ensolarados, adornados por largos dentes radiantes, criados a milho.
Todos os seguiram ao restaurante, menos os dois jovens vagabundos, Gene e seu garoto. Quando retornamos, eles ainda estavam sentados no caminhão, solitários e soturnos. A noite estava caindo. Os dois garotos do caminhão fumavam; decidi aproveitar a chance para comprar uma garrafa de uísque e me manter aquecido no gélido e ventoso ar noturno. Eles sorriram quando lhes falei sobre isso.
Vá em frente, não perca tempo.
Na volta dou uns goles para vocês — tranquilizei-os.
Oh, não. A gente não bebe jamais. Vá firme.
Montana Slim e os dois atletas escolares perambularam comigo pelas ruas de North Platte, até que encontrei um boteco qualquer. Eles contribuíram com um pouco, Slim outro pouco, e eu pude comprar quase um litro. Homens altos e taciturnos nos observavam passar, plantados em frente a pequenos edifícios de fachada postiça; na rua principal se alinhavam uns chalés retilíneos e empertigados. Para além de cada rua melancólica, descortinavam-se vistas imensas das planícies. Senti algo estranho no ar de North Platte, e não sabia bem o que era. Em cinco minutos eu saberia. Voltamos para o caminhão e caímos fora. Escureceu num instante. Todos tomaram um trago e, de repente, olhei para os lados, os campos verdejantes das fazendas do Platte começaram a desaparecer, e no lugar surgiram achatados e amplos desertos de areia e arbustos ressequidos, que se esparramavam tão longe quanto os olhos pudessem alcançar. Fiquei estarrecido.
Que porra é isso, homem? — perguntei a Slim.
Este é o começo das pradarias, garoto. Me passe outro trago.
Iuuúpii! — gritaram os colegiais. — Tchau, Columbus! O que Sparkie e os garotos diriam se estivessem aqui! Uau!
Os motoristas tinham se revezado, e o irmão mais moço acelerava o caminhão até a velocidade máxima. A estrada mudou também: calombos na pista, acostamentos estreitos com valões de um metro e meio de fundura de ambos os lados, e o caminhão corcoveava de um lado para o outro da estrada — milagrosamente, apenas quando não havia nenhum carro vindo na direção oposta —, e eu pensei que iríamos acabar dando um salto mortal. Mas eles eram exímios motoristas. E sabiam fazer aquele caminhão se desviar dos calombos do Nebraska — calombos que se prolongavam até o Colorado. Então, percebi que finalmente eu já estava em Colorado, ainda não oficialmente, mas podia pressentir Denver a apenas algumas centenas de quilômetros a sudoeste dali. Gritei de tanta felicidade. A garrafa circulava. O céu se povoou de magníficas estrelas resplandecentes. As distantes colinas arenosas se obscureceram. Sentia-me veloz como uma flecha, capaz de vencer todas as distâncias.
De repente, Mississipi Gene se virou para mim interrompendo seu transe contemplativo de pernas cruzadas, moveu os lábios, se aproximou e disse: — Essas planícies me fazem lembrar o Texas.
Você é do Texas?
Não, senhor, sou de Green-vell, Muzz-sippy. — E foi bem assim que ele falou.
E o menino, de onde é?
Ele se meteu em encrencas lá no Mississipi, então me ofereci para ajudá-lo. Jamais rodou sozinho por aí. Tomo conta dele da melhor forma que posso. É apenas uma criança. — Embora Gene fosse branco, havia nele algo da sabedoria de um velho negro experiente, e algo que lembrava demais Elmer Hassel, o viciado de Nova York, mas era como se fosse um Hassel das estradas de ferro, um épico Hassel andarilho, que cruzasse e tornasse a cruzar a nação anualmente, curtindo o sul no inverno, imigrando para o norte no verão, apenas porque não havia nenhum lugar onde pudesse permanecer sem cair no tédio, e também porque não havia lugar algum para ir senão todos os lugares, rodando sempre sob as estrelas, especialmente as estrelas do oeste.
Jack Kerouac, in On the road – Pé na estrada

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