Na
noite seguinte, o burriqueiro Madzero não levou os animais a pastar.
O que fez foi desenterrar a estrela que tinha tombado na véspera.
Amontoou os restos metálicos do astro e depositou-os sobre o lombo
de Mbongolo, o mais velho dos burros. Mwadia saiu em defesa do
animal:
— Vai
levar o Mbongolo, marido? Não será peso de mais para a idade dele?
— Esta
viagem exige um burro da máxima confiança.
Há
bichos que, para escapar, se fazem de mortos. O burro Mbongolo
fazia-se de vivo. Não se recusava: furtava-se, sem afronta. Hasteava
o olhar em poente, exibia o andar de quem perdeu regresso. Assim, o
dono, condoído, mantinha a decisão de nunca o vender. E o conduzia
sempre sem demasiados carregos. Por isso, o jumento agora estranhava,
batendo os cascos em protesto contra a carga. O pastor deu-lhe uma
palmada e proclamou:
— Não
refila, Mbongolo. Você até me devia agradecer. Afinal, você é o
primeiro burro terrestre a carregar uma estrela.
E
lá partiram, em silêncio. À frente, o pastor, depois, o burro e,
por fim, a mulher. Todo o cortejo é fúnebre, pensou Mwadia enquanto
apressava o passo para não se deixar afastar. Foram-se distanciando
de casa, atravessando a fronteira daquele lugar feito de areias,
miragens e ausências.
Há
anos que o casal se refugiara nesse além mundo. Mwadia perdera a
conta ao tempo naquele exílio de tudo, naquela desistência de
todos. No início, Mwadia acreditou que eles buscassem refúgio para
escapar da guerra. Mas não era isso que Zero procurava. O que ele
pretendia, nessa tresloucada fuga, era um lugar agreste em que mais
ninguém fizesse morada. Quando se instalaram naquele nada, nesse
remoto dia, o burriqueiro olhou a paisagem inóspita e declarou:
— Este
lugar vai ser batizado de Antigamente!
—
Antigamente? Gosto, é bonito,
anuiu a esposa.
Não
era, contudo, nome de terra. Era um nome para uma saudade. O apelido
nascera dos suspiros, desses lamentos em que Zero Madzero se tinha
tornado useiro e vezeiro:
—
Antigamente, ai, antigamente!
Antigamente
tudo era mais ordenado: o chão chamava e as sombras obedeciam. As
rezas subiam, a chuva descia. Foi para reinstalar essa antiga ordem
que ele nomeara aquela aridez. O casal estava tão longe de tudo e de
todos, que Madzero repetidamente pedia à esposa:
— Não
me chame sempre de “marido”.
— E
como lhe hei-de chamar?
— De
vez em quando, me chame por Zero Madzero. Que é para eu não
esquecer o meu próprio nome.
Tudo
isso acontecia quando Zero ainda suspirava. Depois, ele deixou de se
lamentar, poupando fôlego para descansar. Até porque fora por culpa
dele que ambos se internaram naquela desolação. A mulher apenas o
seguira, em silenciosa fidelidade. Para afastar a solidão, Mwadia
pendurava os lençóis e ficava olhando-os a agitarem-se ao sabor do
vento, enfunados como se fossem criaturas de alma. Refazia a
lembrança da roupa no estendal da sua casa de infância. Os lençóis
brancos eram, às vezes, garças cegas, outras vezes, tontas
labaredas de luz.
Nestes
tristonhos assuntos ia pensando Mwadia enquanto seguia, atrasada, o
cinzento cortejo. Calada, não silenciosa. Porque havia uma canção
que alvoroçava o seu peito.
— Posso
cantar, marido?
— Já
sabe que não.
—
Cantarei baixinho, você nem vai
notar.
— Nada,
aqui não se canta. Você já sabe, por que é que insiste?
— É
que me estava a dar uma vontade tão grande...
Cantar:
não havia o que o pastor mais temesse. O simples riso, nos lábios
de Mwadia, o assustava. A vida, para ele, era um rio comportado. A
felicidade era o prenúncio da inundação. Quando essa enchente
chegasse, o pastor não saberia o que fazer. Para além disso, se
Mwadia desatasse a rir, cedo começaria a cantarolar e, mais grave
ainda, não tardaria a pensar em regressar ao outro lado do mundo.
—
Escute bem, mulher. Nós, agora, só
vamos até à montanha. Depois voltamos para Antigamente. É pé para
lá, pegada para cá, está a perceber?
A
mulher anuiu, engolindo o canto. Permaneceu calada até que, ao fim
da tarde, chegaram ao rio Mussengueze. Contemplava o marido
caminhando como uma queimada na extensão da savana. De repente, ela
se alvoroçou. Porque lhe pareceu que Zero não deixava pegada atrás
de si.
— Zero?
— Diga?
— Nada,
era só para escutar a sua voz.
À
medida que desciam o vale, a vegetação ganhava mais substância e o
verde se afinava em tons e matizes. O olhar do burriqueiro foi
atraído para as alturas: aves de rapina voavam em círculos, atentas
à chegada da expedição. O pastor foi vigiando os céus enquanto
soltava a carga do burro.
Um
arrepio o fez vacilar quando se recordou do cantochão da sua
infância:
Uyo
kaluangane
Chenjera
kaluangane
Apatha
nkuku kaluangane
Há
um abutre!
Tem
cuidado, há um abutre
Que
te vai roubar as galinhas.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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