terça-feira, 8 de agosto de 2017

Pegadas no rio, sombras no tempo (trecho)

Na noite seguinte, o burriqueiro Madzero não levou os animais a pastar. O que fez foi desenterrar a estrela que tinha tombado na véspera. Amontoou os restos metálicos do astro e depositou-os sobre o lombo de Mbongolo, o mais velho dos burros. Mwadia saiu em defesa do animal:
Vai levar o Mbongolo, marido? Não será peso de mais para a idade dele?
Esta viagem exige um burro da máxima confiança.
Há bichos que, para escapar, se fazem de mortos. O burro Mbongolo fazia-se de vivo. Não se recusava: furtava-se, sem afronta. Hasteava o olhar em poente, exibia o andar de quem perdeu regresso. Assim, o dono, condoído, mantinha a decisão de nunca o vender. E o conduzia sempre sem demasiados carregos. Por isso, o jumento agora estranhava, batendo os cascos em protesto contra a carga. O pastor deu-lhe uma palmada e proclamou:
Não refila, Mbongolo. Você até me devia agradecer. Afinal, você é o primeiro burro terrestre a carregar uma estrela.
E lá partiram, em silêncio. À frente, o pastor, depois, o burro e, por fim, a mulher. Todo o cortejo é fúnebre, pensou Mwadia enquanto apressava o passo para não se deixar afastar. Foram-se distanciando de casa, atravessando a fronteira daquele lugar feito de areias, miragens e ausências.
Há anos que o casal se refugiara nesse além mundo. Mwadia perdera a conta ao tempo naquele exílio de tudo, naquela desistência de todos. No início, Mwadia acreditou que eles buscassem refúgio para escapar da guerra. Mas não era isso que Zero procurava. O que ele pretendia, nessa tresloucada fuga, era um lugar agreste em que mais ninguém fizesse morada. Quando se instalaram naquele nada, nesse remoto dia, o burriqueiro olhou a paisagem inóspita e declarou:
Este lugar vai ser batizado de Antigamente!
Antigamente? Gosto, é bonito, anuiu a esposa.
Não era, contudo, nome de terra. Era um nome para uma saudade. O apelido nascera dos suspiros, desses lamentos em que Zero Madzero se tinha tornado useiro e vezeiro:
Antigamente, ai, antigamente!
Antigamente tudo era mais ordenado: o chão chamava e as sombras obedeciam. As rezas subiam, a chuva descia. Foi para reinstalar essa antiga ordem que ele nomeara aquela aridez. O casal estava tão longe de tudo e de todos, que Madzero repetidamente pedia à esposa:
Não me chame sempre de “marido”.
E como lhe hei-de chamar?
De vez em quando, me chame por Zero Madzero. Que é para eu não esquecer o meu próprio nome.
Tudo isso acontecia quando Zero ainda suspirava. Depois, ele deixou de se lamentar, poupando fôlego para descansar. Até porque fora por culpa dele que ambos se internaram naquela desolação. A mulher apenas o seguira, em silenciosa fidelidade. Para afastar a solidão, Mwadia pendurava os lençóis e ficava olhando-os a agitarem-se ao sabor do vento, enfunados como se fossem criaturas de alma. Refazia a lembrança da roupa no estendal da sua casa de infância. Os lençóis brancos eram, às vezes, garças cegas, outras vezes, tontas labaredas de luz.
Nestes tristonhos assuntos ia pensando Mwadia enquanto seguia, atrasada, o cinzento cortejo. Calada, não silenciosa. Porque havia uma canção que alvoroçava o seu peito.
Posso cantar, marido?
Já sabe que não.
Cantarei baixinho, você nem vai notar.
Nada, aqui não se canta. Você já sabe, por que é que insiste?
É que me estava a dar uma vontade tão grande...
Cantar: não havia o que o pastor mais temesse. O simples riso, nos lábios de Mwadia, o assustava. A vida, para ele, era um rio comportado. A felicidade era o prenúncio da inundação. Quando essa enchente chegasse, o pastor não saberia o que fazer. Para além disso, se Mwadia desatasse a rir, cedo começaria a cantarolar e, mais grave ainda, não tardaria a pensar em regressar ao outro lado do mundo.
Escute bem, mulher. Nós, agora, só vamos até à montanha. Depois voltamos para Antigamente. É pé para lá, pegada para cá, está a perceber?
A mulher anuiu, engolindo o canto. Permaneceu calada até que, ao fim da tarde, chegaram ao rio Mussengueze. Contemplava o marido caminhando como uma queimada na extensão da savana. De repente, ela se alvoroçou. Porque lhe pareceu que Zero não deixava pegada atrás de si.
Zero?
Diga?
Nada, era só para escutar a sua voz.
À medida que desciam o vale, a vegetação ganhava mais substância e o verde se afinava em tons e matizes. O olhar do burriqueiro foi atraído para as alturas: aves de rapina voavam em círculos, atentas à chegada da expedição. O pastor foi vigiando os céus enquanto soltava a carga do burro.
Um arrepio o fez vacilar quando se recordou do cantochão da sua infância:

Uyo kaluangane
Chenjera kaluangane
Apatha nkuku kaluangane

Há um abutre!
Tem cuidado, há um abutre
Que te vai roubar as galinhas.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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