O
bloco passava lá fora, “experimentando” o Carnaval. Minha amiga
foi atender o telefone, e ao voltar viu que sumira o relógio de
pulso, deixado sobre a mesinha de cabeceira. Abriu a gaveta e
examinou a caixa de joias: vazia. Nada de preço, mas de estimação:
colar de pérolas cultivadas, anéis, broches, essas coisas. Cada
peça lhe viera de uma pessoa querida, e era como se os ofertantes
vivessem ali, disfarçados e condensados pelo ourives. Minha amiga
ficou aborrecida. Não que participasse do horror capitalista a
ladrões. Sem capital, achava exagerado esse sentimento. Nas vezes em
que discutira o problema, opinara quase favoravelmente aos gatunos.
Coitados, não tiveram boa formação familial; a miséria é grande
e espalhada, o corpo social se caracteriza pelo egoísmo. Erraram,
apenas. E depois, tanto ladrão gordo por aí, recebido em sociedade,
incólume, benemérito!
Por
isso mesmo, sentia-se chocada com o acontecimento. Por que lhe faziam
uma dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, daria. Se não tinham
coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem
objetos caseiros, sem história. É certo que ladrão não pode saber
se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o
compra.
Foi
ao andar de cima conferenciar com o vizinho. Ele nada percebera, mas
armou-se de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto
descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se esse
acidente geográfico retivesse propriedades maléficas, extensíveis
aos indivíduos que o habitam. Mas enfrentar o morro, àquela hora da
noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho
decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os
suspeitos que passassem, e não passaram.
Na
noite seguinte, passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que,
inteirada do fato, pensou logo em Curió.
— Curió
hoje de tarde estava querendo vender uns troços de ouro, umas
correntinhas.
— Então
me tragam o Curió que eu quero conversar com ele. Mas por favor, não
o maltratem, hem — pediu minha amiga.
Curió
apareceu pela manhã, encalistrado, com os policiais. Pequeno,
modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. “Não
faça isso — ordenou-lhe minha amiga. Vamos conversar sentados no
chão, que é melhor.” Cosme e Damião preferiram ficar de pé,
Curió não se fez de rogado, e o vizinho adotou o figurino.
—
Curió, foi você quem levou minhas joias
de estimação?
De
cabeça baixa, Curió admitiu que sim. Passara por ali, à hora em
que o bloco descia, viu luz acesa, nenhum movimento, janela baixa, e
tal, ficou tentado. Conhecia de vista a moradora, até simpatizava
com ela. Mas praquê deixar tudo aberto, exposto, provocando a gente?
Lealmente,
ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara.
— Você
fuma, Curió?
—
Aceito, madame.
Cigarro
ajuda a resolver. Cheio de boa vontade, Curió não podia restituir
tudo. Parte dos objetos fora vendida, os brincos ele dera a uma
senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se
madame quebrasse o galho — e apontou para Cosme e Damião.
— Estão
aí com você?
— Não,
madame, mas pode fiar do meu compromisso.
O
vizinho ia exclamar: “Essa não”, porém minha amiga pediu-lhe
que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando
amigavelmente. Aquela fora a primeira vez, Curió vive de biscates,
vida apertada, madame compreende. No outro dia voltou com as joias,
menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha
amiga achou que não valia a pena magoar a moça, e louvou o
desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa,
encerador, bombeiro e cão de guarda, procurados há muito. O vizinho
é que, indignado, e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
Nenhum comentário:
Postar um comentário