Vai,
vez, um fim de tarde, saía eu com o Sung, para nosso passeio, que
era o de não querer ir longe nem perto, mas buscar o certo no
incerto, a tão bom esmo. Só me esquece a data. Cumprindo-nos,
também, conferir as amendoeiras.
Seria
em março — as frutinhas do verde já boladas? Pode que em abril:
as folhas birutas, com lustro sem murcho, dando ponto às sanguíneas
e às amarelinhas de esmalte. Se em maio, aí que, por entre,
frequentam e se beliscam um isto de borboletas, quase límpidas, e
amadurecem as frutas, cheirando a pêssego e de que os morcegos são
ávidos? Talvez em junho, que as drupas caídas machucam-se de
ilegíveis roxos. Também julho, quando se colorem ainda mais as
folhas, caducas, no enrolar-se, vistosas que nem as dos plátanos de
Neuilly-sur-Seine ou de San Miniato al Monte, e as amêndoas no chão
são tantas? Seja em agosto — despojadas. Ou em setembro, a
desfolha espalhando nas calçadas amena sarapueira, em que feerem
ainda árduos rubros. Sei não, sempre é tempo de amendoeira.
Mas,
pois, descíamos rua nossa vizinha e simpática, eu a considerar na
mudável imutabilidade das coisas, o Sung a puxar-me pela trela,
quando, eis senão, passávamos rente a uma casa, inusual, tão
colocada, suposta para recordar as da outra idade da gente, no
Belorizonte. Dita que era uma aparição, conforme se ocultava, às
escuras, o que dela se abrindo sendo só uma varanda de arco,
perfeita para o escuro, e que se trazia de estórias — a casa na
floresta, da feiticeira. Sob cujo efeito, sorte de adivinhamento,
refiz-me fiel ao que, por onde ando, muito me aconselho: com um olho
na via, o outro na poesia.
De
de-dentro, porém, e reta para a varanda, pressentia-se tensa
presença. Súbito, com elástico pé-ante-pé, alguém avançara de
lá, a furto. Já de noite, às pardas, à primeira não se
distinguia: sombra ou resumo de vulto. Se bem que entre luz e fusco o
vulto avultasse, permanecendo, para espreita; apenas lobrigável, não
visório. Até que por viva alma decifrei-o — ao bruxo de outras
artes. Drummond. E só então deve de ter-me reconhecido. Ele morava,
ali, à beira da amendoeira.
Sabia-o
adicto e professo nessa espécie de árvores, seu mestre de fala.
Mas, a que se via que havia, entre calçada e varanda e o fementido
asfalto, e que era o objeto que ele cocava, não passasse de uma
varinha recém-fincada, simples débil caule, e por isso amparada,
necessitando uma estaca de tutela. Drummond de tudo me instruiu, e de
como não fora de mero recreio, agora, aquela sua tocaia. E, como eu
não pudesse aceitar de entrar, que o Sung discordava, confabulamos
mesmo assim, ele no âmbito de seu rincão, semilunar, eu à sombra
futura da menos que amendoeira.
Era:
que, no lugar, falhara uma, sucumbida ao azar ou aos anos, e ele
arranjara que plantassem outro pé, no desfalcado. Mais de uma vez.
Porque vinham os vadios e malinos, a criançada ingrata, e destruíam
demais, sendo indispensável acautelá-la contra essa gente de ralo
juízo ou de iníqua índole. Para o mister, Drummond já requerera a
prestança de um guarda. Por enquanto, porém, velava-a ele mesmo, às
horas, dali de seu promontório de Sagres.
Sendo
que falávamos, um pouco sempiternamente, unidos pelo apropósito de
tão estimável circunstância, isto é, da amendoeira-da-índia ou
molucana, transplantada da Malásia ou de Sequimeca, quer dizer,
árvore aventurada, e, pois, de praia e areia, de marinha e restinga,
do Posto 6.
Elas
pintam bem, têm outono. Dão-se com frente e perfil. Abrem-se a
estórias e hamadríadas. Convêm, sem sombra de dúvida, com as
beira-atlânticas cigarras. Despeito das folhas graúdas, compõem-se
copas amabilíssimas, de donaire. Prezam-se de folhagem sempre a
eldorar-se, em alegria e aquarela. E também ensinam acenos. São de
sólita serventia.
Ultra
que a amendoeira é a que melhor resiste aos ventos, mesmo os de mais
rojo, sob o tiro de qualquer tufão ela sustenta o pairo. Nem se
dizendo que seja uma árvore castigada. Sua forma se afez a isso,
desde a fibra, e no engalhamento, forçoso flexível, e nos ramos que
se entregam com eficaz contravontade. Se ao vendaval, as grandes
amendoeiras se entornam, desgrenham, deploradoras, ele roda-as,
rodopia-se, contra o céu, baço, baço. Mas há uma técnica nesse
renhimento, decerto de aquisição milenar: no que temperam o quanto
de sustentação de choque com a cessão esquiva ou o dobrar-se
submisso, o volver os eixos para furtar-se ao abalo. E fingem a
mímica convulsiva, como quando cada uma se estira, vai, volta, voa;
isto, sim: a amendoeira procelária.
Bem,
a nossa conversa não se copiando talvez precisamente esta, pode
mesmo ser que falássemos de outras coisas; mas o substrato de
silêncio, que insiste por detrás de todo palavreado. Só a fim de
recordar. Eu com o Sung à tira, conforme ele já se estendera chato
no chão, desistente. E Drummond de constantes olhos em seu fiozinho
de amendoeira-infante. O amor é passo de contemplação; e é sempre
causa.
Afinal,
a vigilância da amendoeira se exerce indefinida, e volve-se sem
intervalos sua desconfiança. Veja-se como responde, pendulativa, à
aragem mais fina, só zéfiro. Toque o primeiro leve e ligeiro sopro,
e já as folhas estremecem, apalpando o que haja, o tronco ensaia um
balanço preventivo, os ramos a sacudir-se, diversamente, para o
equilíbrio: e fazendo face. Nada apanha-as de surpresa. Fio, e me
argumentei, que devem de trocar sinais entre si, e manter uma sempre
de sentinela, contra o ar e o mar. Drummond concordaria comigo. Ou
vice-versa, pois. Era uma célebre noite. E, se esmorecíamos, era
pelos inadiáveis deveres do introvertimento.
Mas,
de longe, ainda as amendoeiras, que mútuas são, e pertinentes. Isto
é, Drummond não ficara sabendo que moro também entre elas,
íntimas, de janela; no verão suas sombras comovem-se nas venezianas
do quarto, conforme jogam, de manhã. Vejo uma, principalmente, a um
tempo muda e loquaz. Ela faz oito anos. Digo: que ele morreu, uma
noite fria, de um julho, ali debaixo dela o enterramos, muito, muito.
Um gato. Apenas. Chamava-se Tout-Petit , e era só um gato, só um
gato, um gato... Além. Ah, as amendoeiras. A de Drummond,
amendoeirinha de mama, ainda sem nem sussurros. A minha, a quem,
então, às vezes peço: — Cala, amendoeira…
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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