A
canoa se fez ao mar, um cisco entrou nos olhos de Deus.
(Dito
do avô Celestiano)
Não
sei por que Dona Luarmina chorou, quando lhe contei a história de
meu velho. Se foi ela que me pediu! Eu lhe tinha avisado da tristeza
dessa memória, mas ela insistiu. Foi só por isso que desatei as
lembranças.
Meu
pai se chamava Agualberto Salvo-Erro. Em tudo ele seria pessoa. Só
um senão atrapalhava sua humanidade: meu velho tinha olhos de
tubarão. Não que fossem olhos de nascença. Aconteceu-se quando,
certa vez, ele saltou do barco para salvar sua amada. Era uma moça
muito nova que ele encontrara em outras terras. Trazia-a sempre no
barco, em companhia das pescas. Fim do dia, antes de trazer o peixe à
praia, meu pai encaminhava o barco para além do horizonte para ir
deixar a moça. Quem seria tal rapariga, de onde era? Mistério que
ficou e há-de ficar com Agualberto.
Nessa
tarde, meu pai pescava próximo da nossa praia. O tempo estava
encabrinhado. Eu apurava as vistas, tentando espreitar a figura dessa
que acompanhava meu pai.
Minha
mãe virava as costas ao oceano.
— Já
viu o pai, lá?
Minha
mãe nada não respondia. Estava ocupada nas lenhas, no fogo, no
jantar. Fiquei assim na berma da praia, olhando o concho
alternando-se com o mar, visão e desaparência.
Até
que, de repente, notei um vulto tombando no mar. Era a moça. Meu
pai, em aflição, saltou em socorro dela. Mergulhou na fundura das
águas e ficou dentro do mar mais tempo que um peito autoriza. Saíram
os restantes barcos, em salvação. Contaram-se segundos, minutos,
lágrimas, suspiros. Só ao fim do dia, meu velho reapareceu na
superfície. Já ninguém esperava que ele ressurgisse. Mas, para
espantação e reza, meu pai golfinhou-se entre as ondas e gritou
como se o céu inteiro lhe entrasse no peito. O povo clamava:
— Está
vivo! Está vivo!
Os
pescadores acorreram a recolher o ressurgido companheiro. Festejaram,
dançando e cantando enquanto os barcos se faziam à praia. As
mulheres xiculunguelavam. Minha mãe avançou e se perfilou perante o
homem. Que se passaria por detrás daquela aparência dela? Afinal,
essa mulher que meu pai tentara salvar era uma outra, rival e
ilegítima. Mesmo assim ela enfrentou meu velho. Seus olhos subiram
do chão até se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou,
tapando o rosto com as mãos. Os restantes se aproximaram de meu pai
e um rumor se espalhou como nuvem fria.
— Os
olhos dele!
Sim,
os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar
meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do
mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade estava lavada a
modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado tempo debaixo do
mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto tinha os olhos de
tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos.
A
partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado
na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe
para espreitar de longe o preto com olhos da cor do mar. Minha mãe,
certa vez, me afastou por um braço, e sussurrou uma angústia:
— Essa
mulher, outra, será mesmo que morreu de vez?
Todos
sabíamos que sim, que ela se irremediara nos fundos, lá onde os
corais florescem em peixes. Todos sabíamos menos o velho Agualberto,
desguarnecido de noção. Todas as tardes ele levava para dentro do
mar cestos com comida e rações de água doce. Mergulhava e se
deixava em permanência alongada. Depois, regressava à superfície,
satisfeito de tudo, medidas as contas com a saudade. De cada vez que
vinha à tona, porém, seus olhos se exibiam mais azuis.
Um
dia se lavariam de toda a cor, como as conchas que esbranquiçam.
Aquilo parecia aplicação de um presságio, um mapa de seu
pensamento: perder as vistas como perdera seu amor. E assim
aconteceu: Agualberto ficou de olhos deslavados e nunca mais visitou
as profundezas das águas.
Quando
o azul lhe saiu dos olhos também meu pai se emboreou de casa.
Foi-se. Eu era menino, acreditava que tudo tinha remédio. A saída
de meu velho foi a primeira crença de que certas coisas, nessa vida,
não têm reparo. No mesmo tempo, tive que atender também o desjuízo
de minha mãe. Ela não se conformou com aquele abandono.
Porque
já meu velho se retirara há muito e ainda ela me dizia: — Espera,
Zeca. Primeiro vou pedir as licenças a seu pai! Houvesse injúria ou
lágrima ela sempre me consolava:
— Deixe
que eu vou queixar a seu pai!
Como
se a partida dele fosse simples atraso de pescaria. Faz parte dos
mandos: nunca se diz a um menino que ele é órfão. Assim, minha mãe
vestia ausência com panos de mentira.
— Esta
semana já escreveu cartinha para ele?
Eu
sorria, triste. Mas ela nem me dava tempo.
— Seu
pai haveria de ficar contente em ler um papelinho seu. Ele havia
ficar contente a pontos de lágrima.
— Mas,
mãe...
— Sabe:
um dia, uma lágrima dele caiu lá no mar. Ali mesmo, naquela onda
onde tombou, a lágrima mudou-se num coral e foi ao fundo. Escreva a
seu pai...
— Mas
eu mãe... eu nem sei as letras como são.
— Por
isso, você vai ter com o padre, frequentar na missão. Seu pai,
depois, lhe há-de mandar uns dinheiros.
— Está
bem, mãe.
Depois,
ela entrava na casinha, parecia atravessar a fogueira bem pelo meio
das chamas. Fazia lembrar Maria Bailarinha, modos como ela se
antigamentou dançando com o fogo. Mas minha mãe caminhava sobre as
fogueiras e nada lhe acontecia. Sem vontade do tempo, eu ficava na
praia a passear os olhos pela noite. Minha mãe voltava, tempos
depois, e me dizia:
— Vê
as estrelas, Zeca? Sabe o que elas dizem?
— Não,
mãe.
— Sabe,
filho, a noite é uma carta que Deus escreve em letrinhas miuditas.
Quando voltar da cidade você me há-de ler essa carta?
— Sim,
mãe.
Mia
Couto, in Mar me quer
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