As
pessoas que defendem o pastoral e a volta ao primitivo nunca se
lembram, nas suas rapsódias à vida rústica, dos insetos. Sempre
que ouço alguém descrever, extasiado, as delícias de um
acampamento - ah, dormir no chão, fazer fogo com gravetos e ir ao
banheiro atrás do arbusto - me espanto um pouco mais com a variedade
humana.
Somos
todos da mesma espécie, mas o que encanta uns horroriza outros. Sou
dos horrorizados com a privação deliberada. Muitas gerações
contribuíram com seu sacrifício e seu engenho para que eu não
precisasse fazer mais nada atrás do arbusto. Me sentiria um ingrato
fazendo. E a verdade é que, mesmo para quem não tem os meus
preconceitos, as delícias do primitivo nunca são exatamente como as
descrevem. Aquela legendária casa à beira de uma praia escondida
onde a civilização ainda não chegou, ou chegou mas foi corrida
pelo vento, e onde tudo é bom e puro, não existe. E se existe,
nunca é bem assim.
-
Um paraíso! Não há nem um armazém por perto.
Quer
dizer, não há acesso à aspirina, fósforos ou qualquer tipo de
leitura salvo, talvez, metade de uma revista Cigarra de 1948, deixada
pelos últimos ocupantes da casa quando foram carregados pelos
mosquitos.
-
A gente dorme ouvindo o barulho do mar...
E
de animais terrestres e anfíbios tentando entrar na casa para morder
o seu pé. E, se morder, você morre. O antibiótico mais próximo
fica a 100 quilômetros e está com a data vencida.
Não.
Fico na cidade. A máxima concessão que faço à vida natural, no
verão, são as bermudas. E, assim mesmo, longas. Muito curtas e já
é um começo de volta à selva.
Não
sei como se chamaria o medo de não ter o que ler. Existem as
conhecidas claustrofobia (medo de lugares fechados), agorafobia (medo
de espaços abertos), acrofobia (medo de altura), collorfobia (medo
do que ele vai nos aprontar agora) e as menos conhecidas ailurofobia
(medo de gatos), iatrofobia (medo de médicos) e até
treiskaidekafobia (medo do número treze), mas o pânpco de estar,
por exemplo, num quarto de hotel, com insônia, sem nada para ler não
sei que nome tem. É uma das minhas neuroses.
O
vício que lhe dá origem e a gutembergomania, uma dependência
patológica na palavra impressa. Na falta dela, qualquer palavra
serve. Já saí de cama de hotel no meio da noite e entrei no
banheiro para ver se as torneiras tinham “Frio” e “Quente”
escritos por extenso, para saciar minha sede de letras. Já ajeitei o
travesseiro, ajustei a luz e abri a lista telefônica, tentando me
convencer que, pelo menos no número de personagens, seria um
razoável substituto para um romance russo. Já revirei cobertores e
lençóis, à procura de uma etiqueta, qualquer coisa.
Alguns
hotéis brasileiros imitam os americanos e deixam uma Bíblia no
quarto, e ela tem sido a minha salvação, embora não no modo
pretendido.
Nada
como um best-seller numa hora dessas. A Bíblia tem tudo para
acompanhar uma insônia: enredo fantástico, grandes personagens,
romance, o sexo em todas as suas formas, ação, paixão, violência
- e uma mensagem positiva. Recomendo “Gênesis” pelo ímpeto
narrativo, “O cântico dos cânticos” pela poesia e “Isafas”
e “João” pela força dramática, mesmo que seja difícil dormir
depois do Apocalipse.
Mas,
e quando não tem nem a Bíblia? Uma vez liguei para a telefonista de
madrugada e pedi uma Amiga.
-
Desculpe, cavalheiro, mas o hotel não fornece companhia feminina...
-
Você não entendeu! Eu quero uma revista Amiga. Capricho, Vida
Rotariana, qualquer coisa.
-
Infelizmente, não tenho nenhuma revista.
-
Não é possível! O que você faz durante a noite?
-
Tricô.
Uma
esperança!
-
Com manual?
-
Não.
Danação.
-
Você não tem nada para ler? Na bolsa, sei lá.
-
Bem... Tem uma carta da mamãe.
-
Manda!
Luís
Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola
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