domingo, 10 de janeiro de 2016

O cinema e eu


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O Goida [Hiron Goidanich, crítico de cinema de Porto Alegre] se lembra não apenas do primeiro filme que viu na vida como do cinema em que viu, da fila em que sentou e das calças curtas que usava. Eu, infelizmente, não tenho a mesma memória embora não perca, em paixão pelo cinema, nem para o Goida. Falei em paixão e aí está: me vejo com quatro ou cinco anos no colo de uma empregada assistindo à Paixão de Cristo no velho Cine-Theatro Petrópolis, ao lado da igreja. Teria sido o meu primeiro filme? Que marcas terá deixado no espírito do autor aquela conjunção de apelos, o martírio do Senhor e o colo da empregada? Enfim, não existe mais o cinema nem a igreja, desconfio que nem a empregada e eu já não estou bem aqui, a questão é acadêmica.
Eu sei que não perdia filme do Tarzan. Sou Johnny Weissmuller contra qualquer outro, e não posso deixar de encarar esses Tarzans modernos e coloridos como impostores, e maus impostores. Hoje, numa revisão crítica, reconheço que Weissmuller tinha mais barriga do que era admissível, desempenhava bem contra jacaré, mas se deixava aprisionar com inquietante freqüência e, se não fosse a Chita vir soltá-lo, não sei não. Mas naquela época eu não fazia perguntas, só queria não perder nenhuma cena. Faz parte do anedotário da família a vez em que — para não ter que procurar o banheiro do Imperial e perder o melhor do filme — simplesmente fiquei em pé e urinei ali mesmo, no chão. Devo esclarecer que isto foi há muito tempo e não tem nada a ver com os atuais odores do Imperial, que devem ser creditados a outra geração.
Os filmes que eu vi mais vezes foram Gunga Din e, bem mais tarde, A doce vida. Há uma relação entre os dois exageros. Quando vi Gunga Din pela primeira vez a gente torcia pelos brancos contra os escuros sem qualquer escrúpulo, e a aventura militar — seja contra os fanáticos seguidores da deusa Kali ou contra os traiçoeiros peles-vermelhas no Oeste — proporcionava o roteiro para a vida imaginária que nos servia, o companheirismo de heróis, a violência ritualizada e o massacre consumido antes da hora de dormir. Contra os japoneses, a mesma coisa. Os alemães eram brancos, mas não eram democráticos como nós americanos, bala neles. Já Mastroianni e sua angústia fotogênica correspondiam a outros anseios juvenis, embora já passássemos quase todos dos 20 anos quando o filme apareceu aqui. Nada na amarga crônica de Fellini correspondia exatamente a nossa experiência provinciana, mas o seu desencanto era o nosso. Sabíamos exatamente o que ele queria dizer. O suicídio de Steiner também nos liberava de todos os compromissos cristãos, estávamos deliciosamente perdidos. Se era um filme tão inquietante, por que revê-lo tantas vezes e com tanto prazer? Como nos filmes de Tarzan, nós não fazíamos perguntas. Gunga Din me fez herói sem arriscar a pele, A doce vida me deu uma estética do desespero que dispensava o desespero. Viva o cinema.
Também há a fase em que filme bom é filme difícil. Filme que todo mundo compreende não pode ser bom. Isto passa. Vem uma fase de gostar de filmes que todo mundo gosta, mas por razões diferentes. E a fase nostálgica: filme bom, só de 1953 para trás. Finalmente, a rendição. A paixão continua, mas você já não tem o mesmo entusiasmo de antigamente. Antes você tinha na ponta da língua seus três diretores preferidos, hoje confunde um pouco, é tanta gente, que fim levou o Laslo Benedeck? Teve sábado em sua vida em que você foi à sessão das oito, das dez e da meia-noite, depois pegou o último bonde no abrigo, lamentando que só vira três filmes. Hoje é difícil estacionar o carro, os cinemas não têm conforto, tem sempre o mesmo casal na fila de trás que não pára de falar, e ainda por cima vão passar um antigo com o Humphrey Bogart na TV... E você trai o cinema. Calhordamente, você esquece tudo o que ele fez por você e o abandona.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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