Google Imagens
O
Goida [Hiron Goidanich, crítico de cinema de Porto Alegre] se lembra
não apenas do primeiro filme que viu na vida como do cinema em que
viu, da fila em que sentou e das calças curtas que usava. Eu,
infelizmente, não tenho a mesma memória embora não perca, em
paixão pelo cinema, nem para o Goida. Falei em paixão e aí está:
me vejo com quatro ou cinco anos no colo de uma empregada assistindo
à Paixão de Cristo no velho Cine-Theatro Petrópolis, ao
lado da igreja. Teria sido o meu primeiro filme? Que marcas terá
deixado no espírito do autor aquela conjunção de apelos, o
martírio do Senhor e o colo da empregada? Enfim, não existe mais o
cinema nem a igreja, desconfio que nem a empregada e eu já não
estou bem aqui, a questão é acadêmica.
Eu
sei que não perdia filme do Tarzan. Sou Johnny Weissmuller contra
qualquer outro, e não posso deixar de encarar esses Tarzans modernos
e coloridos como impostores, e maus impostores. Hoje, numa revisão
crítica, reconheço que Weissmuller tinha mais barriga do que era
admissível, desempenhava bem contra jacaré, mas se deixava
aprisionar com inquietante freqüência e, se não fosse a Chita vir
soltá-lo, não sei não. Mas naquela época eu não fazia perguntas,
só queria não perder nenhuma cena. Faz parte do anedotário da
família a vez em que — para não ter que procurar o banheiro do
Imperial e perder o melhor do filme — simplesmente fiquei em pé e
urinei ali mesmo, no chão. Devo esclarecer que isto foi há muito
tempo e não tem nada a ver com os atuais odores do Imperial, que
devem ser creditados a outra geração.
Os
filmes que eu vi mais vezes foram Gunga Din e, bem mais tarde,
A doce vida. Há uma relação entre os dois exageros. Quando
vi Gunga Din pela primeira vez a gente torcia pelos brancos
contra os escuros sem qualquer escrúpulo, e a aventura militar —
seja contra os fanáticos seguidores da deusa Kali ou contra os
traiçoeiros peles-vermelhas no Oeste — proporcionava o roteiro
para a vida imaginária que nos servia, o companheirismo de heróis,
a violência ritualizada e o massacre consumido antes da hora de
dormir. Contra os japoneses, a mesma coisa. Os alemães eram brancos,
mas não eram democráticos como nós americanos, bala neles. Já
Mastroianni e sua angústia fotogênica correspondiam a outros
anseios juvenis, embora já passássemos quase todos dos 20 anos
quando o filme apareceu aqui. Nada na amarga crônica de Fellini
correspondia exatamente a nossa experiência provinciana, mas o seu
desencanto era o nosso. Sabíamos exatamente o que ele queria dizer.
O suicídio de Steiner também nos liberava de todos os compromissos
cristãos, estávamos deliciosamente perdidos. Se era um filme tão
inquietante, por que revê-lo tantas vezes e com tanto prazer? Como
nos filmes de Tarzan, nós não fazíamos perguntas. Gunga Din
me fez herói sem arriscar a pele, A doce vida me deu uma
estética do desespero que dispensava o desespero. Viva o cinema.
Também
há a fase em que filme bom é filme difícil. Filme que todo mundo
compreende não pode ser bom. Isto passa. Vem uma fase de gostar de
filmes que todo mundo gosta, mas por razões diferentes. E a fase
nostálgica: filme bom, só de 1953 para trás. Finalmente, a
rendição. A paixão continua, mas você já não tem o mesmo
entusiasmo de antigamente. Antes você tinha na ponta da língua seus
três diretores preferidos, hoje confunde um pouco, é tanta gente,
que fim levou o Laslo Benedeck? Teve sábado em sua vida em que você
foi à sessão das oito, das dez e da meia-noite, depois pegou o
último bonde no abrigo, lamentando que só vira três filmes. Hoje é
difícil estacionar o carro, os cinemas não têm conforto, tem
sempre o mesmo casal na fila de trás que não pára de falar, e
ainda por cima vão passar um antigo com o Humphrey Bogart na TV... E
você trai o cinema. Calhordamente, você esquece tudo o que ele fez
por você e o abandona.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário