terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Notícia da morte de Quincas

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzm-Q-pC3ua3BTr64OyK5CQ27P-zlQHtRaPldVWHh7ViALobx608IjrdGhkA8NSsLQrgFThR1tLop3JjTuacmeoyfwn5ZrUsGAr9SgB49baNoUruFQEdDcrj1W-1uYKofaoTh2uTnHmDU/s1600/A+morte+e+a+morte+de+Quincas+Berro+d%C2%B4%C3%A1gua.jpg 

O santeiro, velho magro, de carapinha branca, estendia-se em detalhes: uma negra, vendedora de mingau, acarajé, abará e outras comilanças, tinha um importante assunto a tratar com Quincas naquela manhã. Ele havia-lhe prometido arranjar certas ervas difíceis de encontrar, imprescindíveis para obrigações de candomblé. A negra viera pelas ervas, urgia recebê-las, estavam na época sagrada das festas de Xangô. Como sempre, a porta do quarto, no alto da íngreme escada, encontrava-se aberta. De há muito perdera Quincas a grande chave centenária. Aliás, constava que ele a vendera a uns turistas, em dia magro de má sorte no jogo, ajuntando-lhe uma história com datas e detalhes, promovendo-a a chave benta de igreja. A negra chamou, não obteve resposta, pensou-o ainda adormecido, empurrou a porta. Quincas sorria deitado no catre – o lençol negro de sujo, uma rasgada colcha sobre as pernas –, era seu habitual sorriso acolhedor, ela nem se deu conta de nada. Perguntou-lhe pelas prometidas ervas, ele sorria sem responder. O dedão do pé direito saía por um buraco da meia, os sapatos rotos estavam no chão. A negra, íntima e acostumada às brincadeiras de Quincas, sentou-se na cama, disse-lhe estar com pressa. Admirou-se dele não estender a mão libertina, viciada nos beliscões e apalpadelas. Fitou mais uma vez o dedo grande do pé direito, achou esquisito. Tocou o corpo de Quincas. Levantou-se alarmada, tomou da mão fria. Desceu as escadas correndo, espalhou a notícia.
Filha e genro ouviam sem prazer aqueles detalhes com negra e ervas, apalpadelas e candomblé. Balançavam a cabeça, quase apressavam o santeiro, homem calmo, amigo de narrar uma história com todos os detalhes. Só ele sabia dos parentes de Quincas, revelados em noite de grande bebedeira, e por isso viera. Adotava uma fisionomia compungida para apresentar seus sentidos pêsames.
Estava na hora de Leonardo ir para a Repartição. Disse à esposa:
Vai na frente, eu passo na Repartição e não demoro a chegar. Tenho de assinar o ponto. Falo com o chefe...
Mandaram o santeiro entrar, ofereceram-lhe uma cadeira na sala. Vanda foi mudar a roupa. O santeiro contava de Quincas a Leonardo, não havia quem não gostasse dele na ladeira do Tabuão. Por que se entregara ele – homem de boa família e de posses, como o santeiro podia constatar ao ter o prazer de travar conhecimento com sua filha e seu genro – àquela vida de vagabundo? Algum desgosto? Devia ser, com certeza. Talvez a esposa o houvesse carregado de chifres, muitas vezes sucedia. E o santeiro punha os indicadores na testa, numa interrogação frascária: tinha adivinhado?
Dona Otacília, minha sogra, era uma santa mulher!
O santeiro coçou o queixo: por que então? Mas Leonardo não respondeu, foi atender Vanda, que o chamava do quarto.
É preciso avisar...
Avisar? A quem? Pra quê?
A tia Marocas e a tio Eduardo... Aos vizinhos. Convidar para o enterro...
Para que avisar logo aos vizinhos? Depois a gente conta. Senão vai ser um converseiro danado...
Mas tia Marocas...
Falo com ela e Eduardo... Depois de passar na Repartição. Anda depressa senão esse tal que veio trazer a notícia sai por aí espalhando...
Quem diria... Morrer assim, sem ninguém...
De quem a culpa? Dele mesmo, maluco...
Na sala, o santeiro admirava um colorido retrato de Quincas, antigo, de uns quinze anos, senhor bem-posto, colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas. Ao lado, em moldura idêntica, o olhar acusador e a boca dura, dona Otacília, num vestido preto, de rendas. O santeiro estudou a fisionomia azeda:
Não tem cara de quem engana marido... Em compensação, devia ser um osso duro de roer... Santa mulher? Não acredito…
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dagua

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