O
santeiro, velho magro, de carapinha branca, estendia-se em detalhes:
uma negra, vendedora de mingau, acarajé, abará e outras comilanças,
tinha um importante assunto a tratar com Quincas naquela manhã. Ele
havia-lhe prometido arranjar certas ervas difíceis de encontrar,
imprescindíveis para obrigações de candomblé. A negra viera pelas
ervas, urgia recebê-las, estavam na época sagrada das festas de
Xangô. Como sempre, a porta do quarto, no alto da íngreme escada,
encontrava-se aberta. De há muito perdera Quincas a grande chave
centenária. Aliás, constava que ele a vendera a uns turistas, em
dia magro de má sorte no jogo, ajuntando-lhe uma história com datas
e detalhes, promovendo-a a chave benta de igreja. A negra chamou, não
obteve resposta, pensou-o ainda adormecido, empurrou a porta. Quincas
sorria deitado no catre – o lençol negro de sujo, uma rasgada
colcha sobre as pernas –, era seu habitual sorriso acolhedor, ela
nem se deu conta de nada. Perguntou-lhe pelas prometidas ervas, ele
sorria sem responder. O dedão do pé direito saía por um buraco da
meia, os sapatos rotos estavam no chão. A negra, íntima e
acostumada às brincadeiras de Quincas, sentou-se na cama, disse-lhe
estar com pressa. Admirou-se dele não estender a mão libertina,
viciada nos beliscões e apalpadelas. Fitou mais uma vez o dedo
grande do pé direito, achou esquisito. Tocou o corpo de Quincas.
Levantou-se alarmada, tomou da mão fria. Desceu as escadas correndo,
espalhou a notícia.
Filha
e genro ouviam sem prazer aqueles detalhes com negra e ervas,
apalpadelas e candomblé. Balançavam a cabeça, quase apressavam o
santeiro, homem calmo, amigo de narrar uma história com todos os
detalhes. Só ele sabia dos parentes de Quincas, revelados em noite
de grande bebedeira, e por isso viera. Adotava uma fisionomia
compungida para apresentar seus sentidos pêsames.
Estava
na hora de Leonardo ir para a Repartição. Disse à esposa:
– Vai
na frente, eu passo na Repartição e não demoro a chegar. Tenho de
assinar o ponto. Falo com o chefe...
Mandaram
o santeiro entrar, ofereceram-lhe uma cadeira na sala. Vanda foi
mudar a roupa. O santeiro contava de Quincas a Leonardo, não havia
quem não gostasse dele na ladeira do Tabuão. Por que se entregara
ele – homem de boa família e de posses, como o santeiro podia
constatar ao ter o prazer de travar conhecimento com sua filha e seu
genro – àquela vida de vagabundo? Algum desgosto? Devia ser, com
certeza. Talvez a esposa o houvesse carregado de chifres, muitas
vezes sucedia. E o santeiro punha os indicadores na testa, numa
interrogação frascária: tinha adivinhado?
– Dona
Otacília, minha sogra, era uma santa mulher!
O
santeiro coçou o queixo: por que então? Mas Leonardo não
respondeu, foi atender Vanda, que o chamava do quarto.
– É
preciso avisar...
–
Avisar?
A quem? Pra quê?
– A
tia Marocas e a tio Eduardo... Aos vizinhos. Convidar para o
enterro...
– Para
que avisar logo aos vizinhos? Depois a gente conta. Senão vai ser um
converseiro danado...
– Mas
tia Marocas...
– Falo
com ela e Eduardo... Depois de passar na Repartição. Anda depressa
senão esse tal que veio trazer a notícia sai por aí espalhando...
– Quem
diria... Morrer assim, sem ninguém...
– De
quem a culpa? Dele mesmo, maluco...
Na
sala, o santeiro admirava um colorido retrato de Quincas, antigo, de
uns quinze anos, senhor bem-posto, colarinho alto, gravata negra,
bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas. Ao lado, em
moldura idêntica, o olhar acusador e a boca dura, dona Otacília,
num vestido preto, de rendas. O santeiro estudou a fisionomia azeda:
– Não
tem cara de quem engana marido... Em compensação, devia ser um osso
duro de roer... Santa mulher? Não acredito…
Jorge
Amado,
in A
morte e a morte de Quincas Berro Dagua
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