Precisamente
naquela clara noite de 25 de agosto estava o príncipe André deitado
num telheiro desmantelado da aldeia de Kniazkovo, no extremo limite
do local destinado ao seu regimento. Apoiado sobre o cotovelo,
pousava os olhos, através das paredes desconjuntadas, numa fila de
álamos dos seus trinta anos, cujos ramos inferiores haviam sido
cortados e que se perdia na distância, e nos campos lavrados, no
meio dos quais havia molhos de aveia dispersos, e nos arbustos onde
se perdia o fumo das fogueiras em que os soldados preparavam o
rancho.
Estou
lendo para vocês uma página de Guerra e paz, de Tolstói. O
príncipe André está às vésperas da Batalha de Borodino.
Recebera
e transferira as ordens para a batalha do dia seguinte. Nada mais
tinha que fazer. No entanto agitavam-no os pensamentos mais simples,
mais claros, e por consequência mais sinistros. Sabia que a batalha
que se preparava seria a mais terrível de quantas assistira até
então e a possibilidade de morrer apresentava-se-lhe pela primeira
vez na sua vida com toda a simplicidade e todo o horror, com
vivacidade e quase como uma certeza. [… ]
Fitou
a mata de álamos, os seus ramos amarelos imóveis, as suas folhas
verdes e a sua casca branca que brilhava ao sol, “Já que temos de
morrer, bom, então que me matem… amanhã… que eu desapareça…
Que tudo isto continue a existir, mas para mim tudo acabe”. Via com
toda a nitidez a vida sem que ele já lá estivesse. E aqueles álamos
brancos com a sua luz e a sua sombra, e aquelas nuvens desgrenhadas e
o fumo dos acampamentos, tudo se transformou, de súbito, para ele,
ganhando um aspecto terrível e ameaçador.
Alguns
capítulos adiante, tornamos a ver o príncipe André, agora em plena
batalha:
—
Cuidado!
— grita um soldado, espavorido, e silvando. Num rápido voo, uma
granada caiu a dois passos do príncipe André, próximo do cavalo do
comandante do batalhão. O cavalo empina-se relinchando, com risco de
jogar por terra o cavaleiro, e recua. O terror do animal apodera-se
dos homens.
—
Deitem-se!
— grita a voz do ajudante de campo, que se atirara ao chão. O
príncipe continuava de pé, irresoluto. O obus, fumegando, girava no
solo como um pião entre ele e o ajudante de campo no limite da seara
de aveia e do prado, junto de uma pernada de artemísia.
“Será
a morte?”, pensou, olhando, com um olhar absolutamente novo e como
que invejoso, a erva, a pernada de artemísia, o fio de fumo que se
desprendia da bola negra em movimento.
“Não
posso, não quero morrer, gosto da vida, gosto desta erva, desta
terra, do ar que respiro…” Dizia isto de si para consigo e ao
mesmo tempo pensava nos que estavam a olhar para ele.
— Não
tem vergonha, senhor oficial? — disse para o ajudante de campo. —
Que… Não pôde concluir. Nesse mesmo instante ressoou a explosão,
houve um retinir, como de vidros quebrados, uma baforada de fumo e o
príncipe André, projetado de lado, ergueu um braço ao ar e foi
cair de cara contra o chão.
Tornamos
a encontrá-lo no bosque, entre os feridos do posto de enfermagem.
“Mas
que me importa agora”, dizia de si para consigo. “Que tenho eu a
ver com o que acontecerá ali e com o que aconteceu aqui? E por que
será que me custa tanto deixar esta vida? Há de fato nela qualquer
coisa que eu não compreendia e que continuo sem compreender.”
O
que há nessas páginas de Tolstói, que tanto nos fascina? Há um
homem com sua consciência de si, da finitude de sua vida, há a
natureza, como um símbolo de vida ultraindividual que houve e haverá
depois de nós, há a história, seu fluir, sua busca por um sentido,
seu entretecer-se de nossas vidas individuais, das quais passa a
fazer parte o tempo todo.
Indivíduo,
natureza, história: na relação entre esses três elementos
consiste aquilo a que podemos chamar de épica moderna. O grande
romance do século XIX dá início a esse discurso, e a narrativa do
século XX, em suas formas mais convulsas e abruptas, lhe dá
continuidade. Varia a maneira de considerar a consciência
individual, a natureza, a história; variam as relações entre os
três termos: mas, com todas as diferenças, as literaturas dos dois
últimos séculos apresentam uma perfeita continuidade de discurso.
Italo
Calvino, in Assunto encerrado
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