segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Eu não acredito no Max Gehringer: a prosa poética corporativa

O universo corporativo se arma de cartilhas cheias de clichês que testam, se repetem para doutrinar e gerar ganância. Fomentam a competição que, contraditoriamente, se disfarça em filosofia de equipe. A mensagem subliminar é uma só e reflete o fim maior do capitalismo: vença pelo meu lucro, não pelo seu.

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Precisei de quase meio século para aceitar a diferença entre amigos da onça e amigos do peito. Sim, quase 50 anos para entender a distância entre o colega de baia e o companheiro incondicional. Com o companheiro, com o amigo, não existe vácuo.
Meio século para descobrir que ser solidário não depende do amor, da amizade, do coleguismo e nem da proximidade. Solidariedade é um substantivo que nos qualifica, que nos diferencia das bestas, que nos distingue das feras. Solidarizar-se é um gesto que ampara e nos civiliza.
Amadureci quando tirei do dicionário a palavra lealdade e assimilei o seu significado. Lealdade é um tipo de fé e só alcançam a fé os que não perderam a nobreza da índole. Mente quem é amigo de todos.
Foram quase 5 décadas trabalhando em corporações de grande porte e multinacionais para descobrir que o mundo corporativo reverte homens em canibais e que na filosofia de equipe não cabe a mão estendida que salva, é mais comum a que empurra. Nas grandes empresas, o horizonte se confunde com o abismo. Você pode escolher ser tolo e sentimental, pode socorrer a quem demonstrar necessidade, pode ajudar um desempregado a se recolocar. Sim, você pode ser poeta, mas não escutará eco em versos. Caso perca o emprego, não se surpreenda se aqueles a quem apoiou o negligenciem e ofereçam como precária sugestão o endereço eletrônico do “vagas.com”. Porém, não ceda a generalizações, não imagine que o tudo é feito de bestas ingratas. As bestas sabem onde habitam.
Então, como um náufrago desencantado, você decide fundar sua própria ilha. Renuncia ao convívio com as feras, rejeita ter o seu caráter estuprado por um carimbo na carteira de trabalho e embarca numa nau aventureira em busca do Eu que o sustenta. O universo se reduz, os amigos minguam, a solidão alvorece e o dinheiro não terá o mesmo fluxo. Um processo que mostra, de repente, um sítio que se resume ao mínimo, somente ao que você pode realmente enxergar, somente ao que você toca e àquilo que o toca também. A verdade se limita ao necessário, o resto é o sólido que se desmancha no ar.

Você percebe que está envelhecendo e que a maioria dos amores foram vãos. Percebe que passou longos intervalos esquecendo-se do amor próprio, de amar a si mesmo. Você poderia arrepender-se, mas aprendeu ser pragmático. O tempo à frente é um oceano aberto e você o navega consciente da última lição.

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Estabelecido em sua ilha, você olha ao redor e constata que os amigos são menos intensos do que a solidão, que os amores não são eternos, que o dinheiro é melhor quando serve à plenitude e não ao luxo. Ser leve preserva o sonho de voar. Na sua própria ilha, você tem menos amizades, menos grana e ilusões infantis. No entanto, consegue avistar a terra de uma ponta à outra e crê ver nisso uma tremenda vastidão. Você não teme mais que o abraço do outro abrigue um punhal, você não sente o peso dos grilhões.
Seu mundo se tornou real e a paz ganha contorno de flores. O que chamam de felicidade, você descobre que é o aroma da terra molhada, de chuva e de sol que colorem um arco-íris sempre inesperado. A vida pode ser pequena, mas a alma não.
Alexandre Coslei, in lounge.obviousmag.org

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