Baralho Sexy Pin-ups, de Gil Elvgreen
Em
sua maior parte, o matrimónio é um maltrimónio. Os dois pensando
somar, afinal, se traem e subtraem. Era o caso de Fula Fulano mais
sua respectiva Dona Nadinha. O homem era um vidabundo, formado nas
malandragens. A mulher era muda durante o dia. Mesmo que pretendesse
não lhe saía palavra. Só de noite ela falava. No resto, se
arredava, imóvel de fazer inveja às plantas. Se sentava a desfolhar
fotos e postais.
Nadinha
vivia por fotografia, sonhava por interposição de imagens
recortadas em revistas. Coleccionava retratos, cromos, postais.
Ficava horas contemplando as figurinhas. Assim, ela se desconhecia,
desaparecendo de si mesma, invisibilizando a vida. De noite é que
ela pegava o trabalho, desfiava horas de canseira. Em cada intervalo,
mínimo que fosse, ela sacava da colecção das fotografias e se
sentava. Se enamorava das mulheres das capas, que lindas, nem
transpiram, nem enrugam com os tempos.
— Não
existe uma foto em que saia o mundo?
Existe,
existe, anuía o marido em sono. Coitada, a mulher. Devia ser que
apanhou de mais, tenho que abrandar a socar a. Eu lhe bato não é
desamor, é só porque você é uma criança, entende Nadinha? Está
ouvir, Nadinha?” Ela não entendia, parvinha que era, olho pregado
nas fotos. Ou será que esperava a noite para emitir resposta? Mas
ele, de noite, não estava. Saía, remeloso, pelas barracas, se
atestando de tontonto até se apoisar em mesa de jogo e bater cartas.
Certa
madrugada regressou afadigado das jogatanas, acumulado de azares e
divida. Raio das cartas, raio da vida! Ficou remexendo as cartas,
como se repreendesse os dedos de não terem sabido extrair vitórias
e ganhos. Desgostosa, Nadinha espreitou o baralho: as cartas exibiam
fotografias de mulheres nuas. A mulher acenou em reprovação:
— Que
vergonha, parece nem tem esposa, você!
— Que
vergonha o quê! Tomara-se você ultrapassar os calcanhares de
qualquer destas.
— Sabe
o quê? Sinto pena mas não de mim.
—
Acabou-se, mulher. Esta noite não quero
barulheiras!”
Mas
ela, entre panelas e panos, se estridentou, numa quinquilhação de
rasgar orelha. Fula Fulano nem avisou: assentou logo uns tantos e
quantos sopapos na mulher. Como que ela caiu, ficou. Toda em
silêncio, lhe escapavam lágrimas e sangues. Os líquidos eram rios
que caminhavam junto. Logo o marido percebeu: ela só deixaria de
sangrar se parasse de chorar. Em acesso de pena, ele lhe pediu:
— Se
deixar de chorar eu prometo... prometo que nem nunca mais vou sair
para jogar!”
Ela
lhe olhou, sem crédito. Seu olhar era irreal, faz conta seus olhos
figurassem no mortiço papel de revista.
— Eu
juro, Nadinha. Pare de chorar que vou ficar aqui todas as noites, a
lhe fazer um bocadito de acompanhia.
Na
seguinte noite, ele ficou. Mandou recado aos companheiros das
jogatanas a dizer que não ia, estava indisposto. Mesmo sendo noite,
Nadinha rodopiou sem falar. Posto perante o silêncio dela, o homem
ficou num canto a desfolhar as revistas que ela tanto estimava. De
quando em enquanto, soltava risadas, se esmilhofrava da mulher. Era
aquilo que tanto derretia o coração dela? Ainda fosse mulheronas
dessas de arrebentar botões. Falou só, até que se fartou.
— Não
quer falar-me, mulher?”
Ela
respondeu, em vago tom, estranhas palavras. Que sim, mas ela queria
era conversar com a mulher que estava dentro dele. Assim que falou,
apanhou logo uma chapada.
— E
nem pense em chorar! Pois que, da última vez, com essa porcaria de
sangue e ranhos você quase me estragava o baralho das gajas
descascadas!”.
E
foi um relampejamento. Rápido, o homem deitou a promessa para as
traseiras. O prometido não é de vidro? E, logo-logo, se fez à rua
para recuperar o quanto da noite já perdera. Ainda por cima, ele
tanto reclamara vingança sobre o que perdera. Essa noite, os cabrões
haviam de ver. Azar no amor, sorte aonde?
Chega
à barraca, se senta em firme silêncio. Os jogadeiros estranham seus
modos bruscos. Fula Fulano baralha as cartas disposto, como ele
proclama, a enrabar valetes e descuecar damas. Com os nervos, lhe
tomba uma carta. Um que apanha a carta e se espanta. Nem querendo
acreditar, passa a carta aos restantes. Cochicham. Os amigos passam a
fotografia de mão para mão, gozando e rindo. Até que um deles
guarda a carta e todos se arrumam sérios e graves. Fula Fulano,
estranhando os modos, pergunta.
— Não
é nada, Fula. É só uma dessas gajas que aparece nas costas das
cartas.
—
Mostra!
— Deixa
lá esta merda. Continua a baralhar, Fula.
— Eu
quero ver essa carta.
O
outro, com voz de funeral, diz:
— É
melhor não, você.
Saltando
sobre o tampo, Fulano arranca a carta. Seu juízo deu o salto mortal,
todo despenhado naquela visão. Quem era a gaja? Nadinha! Sim,
Nadinha, sua esposa, toda cascadinha, como o mundo lhe recebeu. Fula
Fulano desejou o buraco final.
Saiu,
de espuma e raiva. Foi direito a casa, mãos nos bolsos com tais
fúrias que estrilhaçava o baralho. Chegou a casa, demorou-se um
momento na porta. Sacou da carta onde a Nadinha se descamava em
carnes. Lhe subiu uma fervura, sangue adentro, irrompeu pela casa e
se dirigiu, certeiro, para o leito onde a mulher dormia. E desatou a
beijá-la com paixão que nunca tanto dele emergira.
Mia
Couto, in Contos do nascer da Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário