Quem,
entretanto, imaginar que conhece o Lobo da Estepe e pode analisar sua
existência lamentavelmente dividida, incorrerá, sem dúvida, em
erro, pois ainda não sabe tudo. Não sabe que (como não há regra
sem exceção e como um simples pecador em certas circunstâncias
pode ser mais querido a Deus do que noventa e nove justos) Harry
também conhecia de quando em vez exceções e momentos ditosos em
que, tanto o lobo quanto o homem podiam respirar, pensar e sentir em
harmonia, e mesmo em raras ocasiões estabelecer a paz e viver um
para o outro de tal forma que não apenas um vigiava enquanto o outro
dormia, mas também se fortaleciam ambos e cada um duplicava a
energia do outro. Também na vida desse homem parecia, como em todas
as panes do mundo, que o costumeiro, o consuetudinário, o conhecido
e o normal tinham simplesmente por objeto permitir de quando em
quando a pausa de um segundo de duração para dar lugar ao
extraordinário, ao milagroso, à graça. Se tais curtas e raras
horas de ventura compensavam e dulcificavam a triste sina do Lobo da
Estepe, de forma que a felicidade e a desventura viessem a
equilibrar-se finalmente na balança, ou se, talvez, este breve mas
intenso usufruir daquelas poucas horas compensava todo o sofrimento e
deixava um saldo favorável de alegria, é uma questão sobre a qual
podem meditar as pessoas ociosas a seu talante. Também o Lobo
meditava muito sobre isso, em seus dias mais ociosos e inúteis. A
esse propósito há que acrescentar algo. Muita gente existe que se
assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa
classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em
seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue
materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça,
tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de
Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso,
experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta
força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura
emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que
sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu
encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma
sobre o mar do sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o
homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o
seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e
parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu
próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem
seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida
carece de essência e de forma, não são heróis, nem artistas, nem
pensadores da maneira como os demais homens são juízes, doutores,
sapateiros ou mestres; sua existência é um movimento de fluxo e
refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e
insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente
naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obras que
brilham às vezes sobre o caos de semelhante vida. Entre os homens
dessa espécie surgiu o perigoso e terrível pensamento de que,
talvez, toda a vida do homem não passa de um espantoso erro, de um
aborto brutal da mãe primeva, um cruel e selvagem intento frustrado
da Natureza. Mas entre eles surgiu também a ideia de que o homem
talvez não seja apenas um animal dotado de razão, mas o filho de
Deus destinado à imortalidade. Cada espécie de homens tem suas
características, seus aspectos, seus vícios e virtudes e seus
pecados mortais.
Hermann
Hesse, in O lobo da Estepe
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