sábado, 19 de outubro de 2024

O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

A Arsène Houssaye

Meu caro amigo, envio-lhe um pequeno trabalho sobre o qual não seria justo dizer que não tem cauda nem cabeça, já que nele tudo, ao contrário, é ao mesmo tempo cabeça e cauda, alternada e reciprocamente. Peço-lhe que pense nas admiráveis comodidades que essa combinação nos oferece a todos, a você, a mim e ao leitor. Podemos interromper onde quisermos, eu meu devaneio, você o manuscrito, o leitor sua leitura; pois não suspendo a vontade renitente deste último no fio interminável de uma intriga supérflua. Retire uma vértebra, e os dois pedaços dessa tortuosa fantasia irão juntar-se sem dificuldade. Corte-a em numerosos fragmentos e verá que cada um pode existir à parte. Na esperança de que alguns desses pedaços serão suficientemente vivos para lhe agradar e entretê-lo, ouso dedicar-lhe a cobra inteira.
Tenho uma pequena confissão a lhe fazer. Foi ao folhear, pela vigésima vez pelo menos, o famoso Gaspard de la nuit de Aloysius Bertrand (um livro conhecido por você, por mim e por alguns de nossos amigos não tem todo o direito de ser referido como famoso?), que tive a ideia de tentar alguma coisa análoga e aplicar à descrição da vida moderna, ou antes de uma vida moderna e mais abstrata, o procedimento que ele havia aplicado à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca.
Quem de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente contrastada para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?
É sobretudo da frequentação das cidades enormes, é do cruzamento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsedante. Você mesmo, meu caro amigo, não tentou traduzir numa canção o grito estridente do Vidraceiro e exprimir em prosa lírica todas as desoladoras sugestões que esse grito envia até as mansardas, por entre as mais altas brumas da rua?
Todavia, para dizer a verdade, receio que minha inveja não me tenha sido favorável. Logo que comecei o trabalho, percebi que não somente eu ficava bem longe de meu misterioso e brilhante modelo, mas que além disso eu fazia uma coisa (se a isso se pode chamar uma coisa) singularmente diferente, acidente de que sem dúvida qualquer outro que não eu se orgulharia mas que só pode humilhar profundamente um espírito que considera a maior honra do poeta cumprir exatamente o que projetou fazer.
Seu muito dedicado,
C. B.

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

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