quarta-feira, 7 de agosto de 2024

O Dia em que Eu Fui Fazendeiro no Arizona

Acho que sou escritor porque tenho tido muitas aventuras. Como lemos desde pequenos em biografias e almanaques, todo escritor vive metido em grandes aventuras, caçando búfalos, lutando boxe, morando entre os esquimós, pegando em armas pela liberdade da Grécia, dormindo com Marylin Monroe e enchendo a cara em companhia de Fidel Castro. Minha experiência de caça se resume a rolinhas fogo-pagou em Aracaju, mas, em compensação, a parte aí do porre com Fidel Castro eu já desempenhei. Não sei se ele notou, mas eu, o poeta peruano Antonio Cisneros e o ator Gianfrancesco Guarnieri (no Peru conhecido popularmente como Panchito Guarnieri) traçamos bem uns vinte mojitos cada um, na noite em que Fidel apareceu para charlar na casa do ministro da Cultura de Cuba. Ele não pode dizer que tomou um porre na minha companhia (preferia daiquiris e, comparado a nós, parecia um abstêmio), mas eu posso dizer que tomei um porre na companhia dele. São coisas da existência aventurosa do escritor — minha vida daria um romance.
Por exemplo, certa feita fui fazendeiro no Arizona um dia inteiro, ganhei um chapéu de cowboy, discuti problemas de irrigação e fiz um discurso para os apaches (ou navajos; eu estava um pouco assanhado e nunca me lembro se o discurso foi para os apaches e a dançadinha foi na dança de chuva dos navajos, ou vice-versa). Tornar-se fazendeiro no Arizona é muito mais fácil do que parece assim à primeira vista, basta o sujeito estar no Arizona e ser um pouco abestalhado — precisamente meu caso naquele dia.
Eu integrava um grupo de estudantes brasileiros, que os americanos estavam levando numa field trip ao Arizona. Americano gosta muito de levar a gente para field trips, uns passeios cuja atividade principal consiste em ouvir palestras feitas por um camarada de camisa de colarinho, manga curta e fala anasalada, bebendo café em xícaras de papel enormes e ganhando de presente um extraordinário número de folhetos e livrinhos. E, claro, todo mundo usando crachá, porque americano gosta de crachá ainda mais do que a Rede Globo, é impressionante.
Então a gente estava no Arizona, todos muito resignados e tomando xícara após xícara daquele café na esperança de dar uma mão para a balança comercial brasileira, e ouvindo palestras sobre projetos de irrigação. Não que a gente estivesse particularmente interessada em irrigação, mas não tem água no Arizona e aí eles ficam orgulhosíssimos de qualquer reguinho que constroem, fazendo questão de mostrá-lo pormenorizadamente aos visitantes. No segundo dia de visitas a regos e calhas, atrasei-me por causa de um pernambucano que não falava inglês e tinha medo até de entrar no elevador sozinho. Como ele parecia sempre à beira de atacar os presentes a peixeiradas (carregava um canivetão mestiço de peixeira), eu ficava ali ajudando e acabava atrasado.
Desci afobado para o saguão do hotel e, não vendo ninguém do grupo, perguntei ao homem da recepção se ele não sabia onde estava o pessoal. Ele perguntou meu nome, olhou uma lista e me entregou um crachá. “O ônibus é aquele ali, já vai sair”, explicou, apontando para a rua. Estranhei o crachá, porque já tinha um, mas raciocinei que me encontrava na terra da fartura e havia que dar saída para a produção da indústria crachaleira. Era diferente do antigo e, estranhamente, dizia “Ribeiro-Brasil”. Se todo mundo era do Brasil, por que a indicação do país? Bem, talvez fosse uma coisa maior, com gente de outros lugares. Corri para o ônibus, entrei, sentei, o motorista imediatamente fechou a porta e saiu velozmente. Pela janela, aquelas montanhas e despenhadeiros que a gente vê no cinema, por trás dos quais despontam as cabeças dos índios antes do massacre do forte. Acho que passei alguns minutos distraído com a paisagem e, quando resolvi olhar em torno e puxar papo, bati o olho num rosto oriental e simpático a meu lado. “Huan-Taiwan”, dizia o crachá. Será que há alguma cidade paulista chamada Taiwan? — pensei rapidamente. Mas aí dei uma panorâmica nos outros passageiros e descobri que, naturalmente, estava no ônibus errado. Estava numa field-trip de fazendeiros, é claro, no lugar de algum xará cujo pernambucano era mais difícil que o meu e o atrasara ainda mais. No comecinho, ensaiei ficar em pânico: se fosse uma viagem para outro Estado, por exemplo, extraviando-me definitivamente do meu grupo? Mas tinha despertado do devaneio exatamente com o motorista explicando que estaríamos de volta ao hotel às sete horas da noite, mesma hora prevista para os brasileiros. E aí passei o controle para o diabinho que acompanha os escritores aventurosos, sujeitinho muito cínico, mas de grande simpatia. Afinal, sempre tive a fantasia de ser fazendeiro. “Quando Deus dá, a gente pega”, diz minha avó alagoana, d. Amália.
Fiquei imaginando que tipo de fazenda seria a minha. A primeira coisa que me veio à cabeça foi cacau, mas achei que fingir de rico com oito dólares no bolso podia ser arriscado. Cacau não. Que tal gado? Não, podia ser que quisessem que eu montasse num cavalo e não sou chegado ao hipismo. Além disso, para distinguir um boi de uma vaca, me vejo obrigado até a ser mal interpretado. Milho! Milho eu manjo mais ou menos, posso fazer até um charme, explicando como planto feijão no meio do milharal. Claro! Grande fazendeiro de milho do Norte do país! E ainda criava do lado umas galinhazinhas, umas cabrinhas, umas árvores frutíferas, essas coisas de fazenda mesmo.
Vocês não sabem como o fazendeiro de milho brasileiro tem prestígio no Arizona, principalmente quando este fazendeiro fica assistindo à televisão até tarde e aprende a fazer piada de americano. E também adaptei ao gosto local aquela velha da surdinha que estava presenciando a conversa de dois fazendeiros a respeito de um pé de milho pequenininho que deu cada espiga destamanho, fiz grande sucesso. Escolhido orador da turma para os apaches (ou navajos), alinhavei palavras emocionadas sobre o homem e a terra, quase levando o Fessenmeyer às lágrimas (o Fessenmeyer, plantador de trigo em Iowa, era um dos americanos do grupo, que ficou muito meu amigo e quis até visitar minha fazenda). Entre os navajos (ou apaches), introduzi uns jogos de braço baianos na dança da chuva, prometi enviar ao chefe um mandacaru de presente e ensinei como fazer amendoim cozido.
Voltei de chapéu de cowboy para o hotel e, de noite, ainda fui com o Fessenmeyer ao Pussycat, taverna local de fino trato, onde as garçonetes se vestiam de gatinhas (quer dizer, só os bigodes e o rabinho, o resto quase nada, nada) e nós, fazendeiros, discutimos as vantagens e desvantagens de destilar uísque lá na roça mesmo, em vez de comprá-lo no armazém. Viajamos, cada um para seu canto, no outro dia, nunca mais vi o Fessenmeyer ou o Huan (que plantava arroz e ficou de me mandar umas sementes, mas nunca mandou). Talvez seja por isso que, ao passar junto de uma dessas barraquinhas que vendem milho verde aqui no Leblon, eu seja o único morador do Rio que pára, respira fundo e sente uma certa saudade do Arizona. O escritor, além de aventuroso, precisa ser original.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

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