segunda-feira, 5 de agosto de 2024

As rãs | Parte IV


8.

Professor, anteontem fiquei tão agitado numa briga com Leoazinha que meu nariz começou a sangrar, até sujou o papel de carta. Hoje sinto uma dorzinha de cabeça, mas isso não me impede de continuar este relato. Para escrever um roteiro de teatro, é preciso pensar em cada palavra, uma carta já não exige tanto. Para escrever uma carta, basta saber um punhado de caracteres e ter algo a dizer. Quando minha falecida esposa Wang Renmei me escrevia, ela fazia desenhos no lugar dos caracteres que não sabia escrever. E se desculpava: “Corre Corre, como não tenho muita instrução, só me resta desenhar”. “Seu nível de instrução é muito alto”, eu dizia. “Você desenha para se expressar, e com isso cria novos ideogramas!” “Vou te dar um filho, Corre Corre”, lembrava ela, “vamos fazer um filho…”
Professor, depois de ouvir o Cabecinha Chata da jangada, cheguei trêmulo a uma conclusão angustiante: Leoazinha, obcecada por ter uma criança, pegou meus pequenos girinos e inseminou no corpo de alguma moça desfigurada. Passou por minha cabeça a visão de um grupo de “girinos” rodeando um óvulo, parecida com algo que tinha visto na infância: vários girinos atacando um pãozinho encharcado numa lagoa quase seca perto da aldeia. E a moça desfigurada que engravidara do meu bebê não era outra senão Chen Sobrancelha, filha do meu antigo colega de escola Chen Nariz. Em seu ventre crescia meu filho.
Corri apressado até o ranário. No caminho, tenho a impressão de que várias pessoas me cumprimentaram, mas não me lembro de nenhuma delas. Por entre as barras reluzentes do portão elétrico, mais uma vez vi aquela ameaçadora estátua de rã-touro. Fiquei arrepiado, era como se sentisse na pele, mas na verdade apenas me lembrava de seu olhar frio, viscoso, mal-intencionado. Em frente ao pequeno prédio branco, seis moças em roupas coloridas saltitavam agitando guirlandas de flores nas mãos; ao lado delas, sentado numa cadeira, um homem fazia o acordeão gemer. Deviam estar ensaiando algum número. Era um dia tranquilo, de sol e brisa, nada tinha acontecido. Talvez fosse tudo imaginação minha. Seria melhor eu achar um lugar para me sentar e pensar seriamente em minha peça de teatro.
Enquanto nada acontece, seja medroso como um rato; mas quando algo acontecer, fique valente como um tigre.” “Se não é desgraça, é felicidade; mas se é desgraça, não há como fugir.” Foi o que meu pai me ensinou. Gente velha adora provérbios. A lembrança daquelas palavras me fez sentir fome. Já tenho cinquenta e cinco anos. Não ouso me chamar de velho enquanto ainda tenho pai e irmãos, mas já sou um sol que passou do meio-dia e desliza rápido para a montanha do oeste. Uma pessoa em ocaso, um homem que se aposentou antes do tempo e comprou um apartamento em sua terra natal para curtir a velhice não tem nada a temer. Pensar nisso me deu ainda mais fome.
Entrei no Dom Quixote, o pequeno restaurante que ficava no lado direito da praça do templo. Desde que Leoazinha começou a trabalhar no ranário, tornei-me um cliente assíduo. Sentei-me na mesa ao lado da janela. O restaurante tinha pouco movimento e aquele lugar passou a ser quase exclusivamente meu. O garçom baixinho e gordo se aproximou. Professor, sempre que me sento naquela mesa e olho para a cadeira vazia à minha frente, sonho que um dia o senhor estará sentado ali para discutir comigo sobre essa obra teatral de parto tão difícil — um sorriso largo se abria no rosto oleoso do garçom, mas sempre vi uma expressão esquisita por trás daquele sorriso. Deve ser a expressão de Sancho Pança em Dom Quixote, meio travesso, meio malicioso, ao mesmo tempo zombador e zombado, não sei se me agrada ou se me aborrece. A mesa era feita de tília bem grossa, sem nenhum verniz. A madeira tinha os veios bem nítidos e umas marcas de cigarro. Sempre escrevo nessa mesa. Quem sabe no futuro, quando minha obra for um grande sucesso, essa mesa será um patrimônio cultural. Então, para beber nela será preciso pagar uma taxa extra. Se o senhor tivesse se sentado à minha frente, seria ainda mais concorrida! Desculpe, como escritor, sempre gosto de usar essa fantasia presunçosa para me estimular a escrever…
Professor”, o garçom fez menção de se curvar, mas não se curvou. Ele me disse: “Salve! Seja bem-vindo. O fiel escudeiro do grande cavaleiro está ao seu dispor”. Dizendo isso, me passou um cardápio escrito em dez idiomas.
Obrigado”, respondi. “O de sempre: uma salada Margarita, uma porção de guisado à Viuvinha Antônia e uma cerveja preta Tio Marico.”
Ele saiu balançando a bunda como um pato balofo. Enquanto esperava meu prato, examinei a decoração e os adornos da sala: na parede estavam penduradas armaduras e lanças enferrujadas, a luva rasgada no duelo com o rival no amor, certificados e medalhas que marcavam méritos gloriosos e façanhas imortais, uma cabeça de veado bem realista, dois espécimes de faisão com plumagem esplêndida e várias fotos amareladas. O estilo era um arremedo do clássico europeu, mas parecia bem interessante. À direita da entrada havia a estátua de bronze de uma jovem em tamanho natural, com seios reluzentes de tanto passarem a mão. Prestei bastante atenção: cada um que entrava no restaurante, fosse homem ou mulher, invariavelmente passava a mão naqueles peitos. A praça do templo estava em perpétua movimentação, o pregão de Wang Fígado sobressaía animado como sempre. Recentemente haviam lançado um programa chamado “O qilin que traz bebês”, disseram ser uma retomada da tradição, mas na verdade era invenção de alguns funcionários do Centro Cultural do Município — um programa insípido, amorfo, que, no entanto, resolveu o problema de emprego de dezenas de pessoas e por isso foi uma coisa boa. Além do mais, professor, como o senhor mesmo disse, o que chamamos de tradição um dia, lá na origem, foi arte de vanguarda. Vi muitos programas semelhantes na televisão, basicamente uma misturada de tradição, modernidade, turismo e cultura, tudo muito animado, sonoro, cintilante, cheio de recursos, radiante, enriquecedor. Justamente como o senhor se preocupava: enquanto num lugar tiros cruzam o céu e cadáveres cobrem o chão; noutro há música, dança, neon e festas intermináveis. É esse o mundo onde convivemos. Se existisse um gigante de proporções tais que nosso planeta lhe parecesse uma bola de futebol, ele estaria sentado olhando a Terra girar sem parar, ora paz, ora guerra, ora banquete, ora fome, ora seca, ora enchente… Não sei o que ele pensaria sobre isso. Desculpe, professor, estou divagando outra vez.
O pseudo-Sancho trouxe um copo de água gelada, um pratinho com pão, um pedaço de manteiga e um molho feito de azeite, alho e shoyu. O pão deles é muito bom. Quem já comeu pão estrangeiro sabe que o pão daqui é muito bom. Comer esse pão com molho já é uma delícia, para não falar do maravilhoso prato e a sopa que vieram depois. Professor, o senhor precisa jantar aqui uma vez, garanto que vai gostar de tudo. Além disso há uma tradição nesse restaurante — na verdade, mais uma “regra” do que uma “tradição”: toda noite, antes de fechar, eles colocam os pães assados no dia, compridos e redondos, pretos e brancos, grossos e finos, numa cesta de vime na mesa da saída, e deixam os clientes levarem à vontade. Não há aviso mandando cada um levar apenas um pão, mas todo mundo faz isso conscientemente. Vai debaixo do braço ou no colo, o pão comprido ou quadrado, macio ou crocante, espalhando um aroma agradável, de trigo, de linhaça, de amêndoa ou de fermento. Passear à noite na praça do Templo Niangniang segurando um pão fresco é, para mim, uma emoção sem tamanho. Mas estou ciente de que isso é um luxo, porque sei muito bem que neste mundo ainda há tantos vivendo sem roupa que os cubra, sem comida que os sustente, e mais outros tantos lutando contra a morte.
A salada Margarita tinha alface, tomate e endívias, estava uma delícia. Quem será que deu a esse prato um nome que faz sonhar com a Europa Ocidental? Certamente foi Li Mão, meu colega de escola primária, filho da minha primeira professora. Como lhe contei em outras cartas, Mão é o mais talentoso dos meus colegas, ele é que deveria ter se dedicado à literatura, mas acabei sendo eu. Formou-se em medicina, tinha um futuro promissor, mas pediu demissão e voltou a nossa terra, abriu um restaurante desses, que não é uma coisa nem outra, ou é uma fusão harmoniosa de Oriente e Ocidente. Pelo nome do restaurante, pelos nomes dos pratos, dá para ver a influência da literatura sobre esse meu colega. Abrir um restaurante Dom Quixote num lugar meio caipira, meio ocidentalizado como o nosso, já é em si um feito quixotesco. Li Mão está mais gordo. Ele sempre foi baixinho, depois de engordar ficou parecendo mais baixinho ainda. Sentado num outro canto do restaurante, me olhava de longe, mas não nos cumprimentávamos. Às vezes eu me debruçava sobre a mesa para anotar minhas impressões, enquanto ele pendurava o braço esquerdo no espaldar da cadeira e apoiava a bochecha na mão direita, passava muito tempo nessa posição, que, embora estranha, parecia bastante confortável.
O pseudo-Sancho trouxe o guisado e a cerveja. Não faltava mais nada. Tomei um gole da bebida, peguei um pedaço de carne e fui mastigando, e fui saboreando sem pressa enquanto meu olhar atravessava o vidro e alcançava uma encenação de contos mitológicos em plena luz do dia. A música barulhenta abria o caminho, seguida por uma procissão ricamente paramentada, com figurinos coloridos e personagens extraordinárias. A mulher montada no qilin tinha o rosto redondo como uma lua cheia e os olhos brilhantes como estrelas, levava no colo um bebê rosado — cada vez que vejo essa Trazedora de Bebês quero associá-la a minha tia. Mas na vida real minha tia sempre me vem à mente com uma túnica preta folgada, o cabelo desgrenhado como um ninho de pássaro, rindo como uma coruja, o olhar perdido, a fala desconexa, só para acabar com a bela imagem que fantasiei.
A procissão da Trazedora de Bebês deu uma volta na praça e posicionou-se no centro. A música parou, apareceu um mandarim de chapéu alto e túnica púrpura segurando uma tabuleta cerimonial — seu figurino lembrava um eunuco de teatro — que abriu um rolo amarelo e anunciou em voz alta: “O céu e a terra nutrem os cinco grãos. O sol, a lua e as estrelas criam todas as pessoas. Em nome do imperador de Jade, sua alteza a Trazedora de Bebês traz uma auspiciosa criança ao Nordeste de Gaomi, e chamo o fiel casal, Wang Liang e esposa, para receber o filho”. Mas os atores que representavam os pais nem tiveram tempo de segurar o filho auspicioso, um boneco de barro, que foi levado por uma das mulheres da praça desesperadas para ter um bebê.
Professor, por mais desculpas que eu ache para me consolar, sou, afinal, um homenzinho medroso como um rato, carregado de preocupações. Assim que tomei consciência de que aquela moça chamada Chen Sobrancelha carregava meu bebê em seu ventre, me senti amarrado por um pesado sentimento de culpa. Porque ela é a filha do meu colega de escola, Chen Nariz, porque ela foi criada, durante algum tempo, por minha tia e Leoazinha. Naquela época, eu mesmo colocava, com minhas mãos, leite em pó em sua boquinha. Ela é mais nova que minha filha. Se por acaso Chen Nariz, Li Mão, Wang Fígado, meus amigos de outrora, souberem da verdade, com que cara vou olhar para eles?
Lembro-me de duas ocasiões em que encontrei Chen Nariz desde que voltei a morar em minha aldeia natal.
A primeira vez foi num anoitecer no final do ano passado, quando voavam os flocos de neve. Naquela altura, Leoazinha ainda não tinha o emprego no ranário. Andávamos na neve, olhando a dança dos flocos sob a luz dourada em torno da praça. Ao longe, soavam de vez em quando os fogos de artifício. A atmosfera do Ano-Novo era cada vez mais presente. Minha filha, que estava na Espanha, me telefonou para contar que estava passeando com o marido numa pequena aldeia da terra de Cervantes. Eu e Leoazinha, de mãos dadas, entramos no restaurante Dom Quixote. Contei para minha filha essa coincidência, e veio do celular a sua risada sonora.
O mundo é muito pequeno, pai.”
A cultura é muito grande, professor.
Ainda não sabíamos que o restaurante pertencia a Li Mão, mas já percebíamos que o dono devia ser uma figura extraordinária. O ambiente nos agradou assim que entramos. Gostei, sobretudo daquelas mesas e cadeiras rústicas. Se cobrissem as mesas com toalhas brancas, engomadas e passadas, o restaurante ficaria com um aspecto bem europeu. Mas concordo com a explicação que Li Mão veio a dar: segundo um estudo que ele disse ter feito, na época de Dom Quixote os restaurantes rurais da Espanha não usavam toalhas. E ainda continuou, muito futriqueiro: assim como as europeias da época não usavam sutiãs.
Professor, confesso que, assim que entrei e vi a estátua de bronze com os seios brilhantes de tanto serem tocados, minha mão se estendeu involuntariamente. Era uma mostra da minha mente poluída, mas eu estava tranquilo em relação a isso. Leoazinha me censurou com um psiu, eu disse a ela: “Para que esse psiu? Isto é arte”. Ela respondeu muito séria: “É o que dizem muitos sem-vergonhas metidos a amantes da arte”. O pseudo-Sancho aproximou-se com um sorriso, fez menção de curvar-se, mas não se curvou. Disse: “Sejam bem-vindos, meu senhor e minha senhora!”.
Ele pegou nossos casacos, cachecol e chapéu e nos conduziu até uma mesa no meio do salão. Em cima dela havia uma tigelinha redonda de vidro com uma vela branca flutuando na água. Não gostamos daquela mesa e escolhemos outra perto da janela. A posição era melhor porque dava para ver, lá fora, os flocos de neve dançando na luz das lâmpadas da rua, e também porque oferecia uma vista panorâmica da sala. Vimos, sentado numa mesa de canto — onde eu sempre me sentaria depois —, um homem envolto em fumaça.
Reconheci-o pela mão direita sem o dedo anular. Reconheci-o pelo narigão vermelho. Chen Nariz, que um dia foi um homem bonito, agora ostentava uma calva no cocuruto e cabelos soltos na nuca, quase o penteado de Cervantes. Seu rosto estava seco, as bochechas encovadas, parecia ter perdido os molares. Com isso o nariz ficou mais proeminente. Ele segurava com três dedos da mão direita uma ponta de cigarro quase toda consumida, que punha nos lábios para sugar. Espalhou-se no ar um cheiro estranho de filtro de cigarro queimado. A fumaça jorrou de suas enormes narinas. Tinha o olhar perdido dos fracassados. Eu estava meio sem coragem de encará-lo, mas não conseguia parar. Lembrei-me da estátua de Cervantes que vi no campus da Universidade de Pequim e entendi por que Chen Nariz estava sentado aqui. Ele vestia uma roupa esquisita, não era uma túnica, nem um casaco, em torno do pescoço tinha um tecido branco e rugoso. Achei que deveria ver uma espada ao lado dele, e de fato a encontrei encostada por ali. Descobri depois a luva de ferro, o escudo, a lança em pé no canto da sala. Achei que deveria estar acompanhado por um cachorro sujo e magro, e de fato o encontrei, sujo, mas não tão magro. Dizem que Cervantes também perdeu um dedo na mão direita. Mas Cervantes não devia andar com escudo e lança, então provavelmente se tratava de Dom Quixote, embora estivesse mais para Cervantes. A bem da verdade, nenhum de nós jamais viu Cervantes em pessoa, muito menos Dom Quixote, que nem sequer existiu. Assim, se a personagem representada por Chen Nariz era Cervantes ou Dom Quixote, fica a critério de cada um. Ver meu antigo amigo naquela situação me entristeceu. Já sabia da tragédia que se abatera sobre suas belas filhas. Chen Orelha e Chen Sobrancelha eram as irmãs mais lindas do Nordeste de Gaomi. O sangue estrangeiro de Chen Nariz, de origem incerta, mas de incontestável existência, fez seus rostos escaparem das planuras e ganharem formas cheias. De todas as descrições da beleza feminina na literatura clássica da China, nenhuma lhes servia. Eram como um camelo num bando de ovelhas, um grou entre as galinhas. Se tivessem nascido numa família mais abastada ou num lugar mais rico, ou mesmo se tivessem nascido de família pobre num lugar distante, mas por acaso encontrassem alguém que lhes desse oportunidades, poderiam ficar famosas num instante e subir rápido na vida. As duas foram juntas tentar a vida no Sul, talvez em busca dessas oportunidades. Ouvi dizer que foram à Fábrica de Brinquedos de Pelúcia Dong Li, cujo dono seria estrangeiro, embora ninguém soubesse dizer se era estrangeiro mesmo. Duas irmãs tão bonitas, tão inteligentes, naquele ambiente de luxo e ostentação, se quisessem fazer dinheiro, se quisessem aproveitar a vida, bastaria vender o corpo. Mas foram trabalhar duro num chão de fábrica, aguentando um regime de trabalho extenuante, aguentando uma exploração brutal. Por fim, num incêndio que causou comoção nacional, uma ficou carbonizada e a outra teve o rosto queimado. A irmã mais nova só sobreviveu porque a mais velha a protegeu com seu corpo. Uma infelicidade sem tamanho! Isso quer dizer que elas não se deixaram corromper, eram duas moças boas, de caráter imaculado. Desculpe, professor, emocionei-me outra vez.
A vida de Chen Nariz foi uma tragédia incomparável. E ao encarnar uma celebridade morta ou um excêntrico ficcional lá no restaurante Dom Quixote, ele estava, penso eu, na mesma situação do porteiro anão que ficava na entrada da famosa boate Paraíso, em Pequim, ou do porteiro gigante da casa de banhos Cortina d’Água, em Cantão. Todos vendiam sua figura. O anão vendia sua baixa estatura, o gigante, sua altura, e Chen Nariz, seu nariz enorme. Suas situações eram igualmente infelizes.
Professor, naquela noite eu reconheci Chen Nariz logo à primeira vista. E isso apesar de não vê-lo há quase vinte anos. Mas eu o reconheceria mesmo depois de cem anos, na mais estrangeira das terras. Naturalmente, acredito que, ao mesmo tempo, ele nos reconheceu também. Os amigos de infância muitas vezes nem precisam de olhos, basta confiar no ouvido: com um suspiro ou um espirro já dá para saber exatamente de quem se trata.
Será que vamos lá cumprimentá-lo? Ou o convidamos logo para jantar conosco… Leoazinha e eu hesitávamos. Por sua expressão propositalmente alheia a tudo, o olhar fixo na cabeça de veado pendurada na parede, sabíamos que ele também estava em dúvida se falava ou não conosco. Voltaram as cenas daquela noite da despedida do Deus do Fogão, quando ele veio a nossa casa com Chen Orelha para tentar levar Chen Sobrancelha. Naquela época ele era corpulento, vestia uma pesada jaqueta de couro de porco, estava pronto para quebrar nossa panela cheia de jiaozi com um almofariz, ofegava irritado, impaciente, parecia um urso de mau humor. Desde então, nunca mais o vimos. Acho que, enquanto relembrávamos o passado, ele devia estar fazendo a mesma coisa, os sentimentos que nos vinham deviam estar vindo a ele também. Na verdade, nunca o odiamos. Sua infelicidade nos comovia profundamente. Não fomos logo falar com ele principalmente por não conseguir definir qual a atitude mais adequada. Porque, sem sombra de dúvida, para usar uma expressão local, estamos levando uma vida mansa, e ele não. E quem está na melhor tem muita dificuldade de achar a maneira certa de encarar um amigo na pior.
[...]

Mo Yan, em As rãs

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