domingo, 23 de junho de 2024

Caetano Veloso e Gilberto Gil | Super Homem (A Canção)

Módulo de verão

As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.
Nem um pouco delicadas as cigarras são.
Esguicham atarraxadas nos troncos
o vidro moído de seus peitos, todo ele
chamado — canto cinzento-seco, garra
de pêlo, arame, um áspero metal.
As cigarras têm cabeça de noiva,
as asas como véu, translúcidas.
As cigarras têm o que fazer,
têm olhos perdoáveis.
Quem não quis junto deles uma agulha?
Filhinho meu, vem comer,
ó meu amor, vem dormir.
Que noite tão clara e quente,
ó vida tão breve e boa!
A cigarra atrela as patas
é no meu coração.
O que ela fica gritando eu não entendo,
sei que é pura esperança.

Adélia Prado, em Bagagem

Festa junina da escola, por Jean Galvão

 

A Juliette

Eu estava em Paris e li que a Juliette Grecco estava se apresentando em algum lugar. Não fui vê-la. Juliette tinha passado algum tempo desaparecida e ressurgira não só com a mesma cara que tinha quando era a musa do existencialismo, mas com a mesma franja! O existencialismo, para quem nasceu agora, foi uma onda filosófica baseada em Heidegger e propagada por Sartre, entre outros, que dizia que a existência precede a essência e cujo principal mandamento foi exemplarmente resumido no Brasil numa marchinha de carnaval sobre a Chiquita Bacana lá da Martinica, uma existencialista com toda a razão que só fazia o que mandava o seu coração.
Na Paris dos anos quarenta e tantos e cinquenta e poucos o coração mandava que todos usassem gola rulê (ao contrário da Chiquita Bacana que só usava uma casca de banana nanica) e passassem o tempo em cafés discutindo o ser e o nada e paquerando a Juliette, que devia ter, pelos meus cálculos, uns 16 anos. Como cantora ela inaugurou a linhagem das Jane Birkin e etc., de intérpretes que, se tivessem voz, só atrapalharia.
Não sei se ela contribuía com alguma coisa às discussões filosóficas do momento. Acho que sua função era ser, exatamente, a Juliette Grecco do grupo. Gerações ainda por vir teriam suas próprias Juliettes Greccos — só eu conheci umas três — mas nenhuma se igualou ao protótipo. E ela, ainda por cima, namorou o Miles Davis. Eu deveria ter ido ver a Juliette. Uma mulher que foi a inspiração, ou mais do que isto, para Sartre e Miles Davis juntos merecia os mesmos respeitos devidos a Lou Salome, Alma Mahler, Yolanda Penteado e outras cujos nomes, só os nomes, evocam toda uma era e seu clima.
Mas não fui ver a Juliette. Quis evitar um choque cronológico. Me lembrei de um filme visto há muito tempo em que o corpo de um alpinista desaparecido anos antes é encontrado, intacto, numa geleira perto de um vilarejo, nos Alpes. Entre os habitantes do vilarejo que correm para ver o achado está a namorada do alpinista, que não sabe o que sentir diante daquela visão insólita — ou, no caso, sólida — do seu amado preservado em gelo, exatamente como era quando desapareceu. Ou seja, com vinte ou trinta anos menos do que ela. Qual é a reação apropriada? Gratidão, por poder rever o namorado como ele ficou na sua memória, pelo menos por alguns instantes antes que comece o degelo? Um sentimento de traição porque o tempo não fez com ele o que fez com ela? Resignação filosófica diante de uma das trágicas ironias da vida? Ou só espanto, sem literatura?
Como os artistas franceses parecem viver num ritmo metabólico diferente do nosso (até o Aznavour e o Henri Salvador ainda estavam na ativa, e Johnny Halliday continuava adolescente), eu estava ameaçado de ter, diante de uma Juliette Grecco com a mesma franja que tinha há cinquenta anos, o mesmo tipo de confusão de emoções da namorada do alpinista. A cronologia enlouqueceria. Nos defrontaríamos com nós mesmos naquele tempo, só que agora sem o equipamento necessário para enfrentá-lo. Não saberíamos mais nem a língua que falávamos. Ainda se diz “fenomenologia”? O que foi mesmo que se decidiu, ou não se decidiu, nos cafés de Paris, e em todos os cafés de Paris do mundo, na época? Quem ganhou, afinal, o ser ou o nada?
Me imagino puxando conversa com a Juliette Grecco congelada.
Como vão o Jean-Paul e a Simone?
Bem, bem. Vou encontrá-los daqui a pouco.
E o Miles, tem aparecido?
Menos do que eu gostaria.
Dê um abraço nele que eu mando.
Quem é você?
Ninguém, ninguém. Um visitante do futuro.
Não estou entendendo.
Eu também não.
Foi melhor não ter ido ver a Juliette Grecco.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis 

Lagosta à moda francesa

Aos domingos, como os meus remanescentes amigos costumam passar fora o fim de semana e como este tem por finalidade, não confessada, exatamente essa espécie de ascese que é a gente livrar-se durante um dia e meio dos amigos, fico com o dia em branco e devoro literalmente os jornais. Desde os pequenos anúncios, onde encontro coisas deliciosamente assim: “Alugam-se duas salas para senhoras bem arejadas” — até seções dedicadas ao lar. Ora, na última destas, li e reli:

LAGOSTA À MODA FRANCESA — Ponha a lagosta, para cozinhar, num molho de escabeche bem grosso: deixe esfriar no próprio líquido em que foi cozida. Separe então a carne da lagosta, deixando intacta a carapaça da mesma. Reserve alguns pedaços mais bonitos e pique o resto para fazer um guisado. Refogue na manteiga, junte um pouco de Vinho do Porto e ligue tudo a um molho bem temperado. Recheie com essa carne a carapaça da lagosta, arrume dentro de uma fôrma, regue com um pouco mais de molho e leve ao forno para dourar, sem deixar no entanto ressecar por cima.”

Isto é de a gente ficar com água na boca... E também é de amargar! Como é que a dona de casa, que não consegue nem um democrático sirizinho, vai conseguir a imperial lagosta?
Isto não pode ser.
É verdade que há gente que pode…
Mas não são os da soçaiti nem os marginais que formam a classe média nacional, composta de honrados e suados barnabés. Dos marginais, nem é bom falar, porque isso nunca deixa de provocar na gente uma espécie de remorso de fundo coletivo... Quanto à “gente bem”, são como que o haut fond da sociedade, como o dizia um amigo meu, em contraposição ao bas fond. O que aliás não é implicar com ninguém.
Também esclareça-se que não implico com as lagostas. A lagosta é dos poucos bichos que a gente pode ver inteiros antes de deglutir. Aquela sua armadura medieval e o seu aspecto heráldico, pois deve ter nascido para animal de brasão, tal como o nobre e irreversível hipocampo, aquele seu aspecto puramente decorativo não me constrange à mesma situação de quando fui enfrentar, há dias, uma cabeça de porco assado. Meu Deus, aquele sorriso, aquela sua face, aquilo tudo tão humano me provocou uma inibição impossível de dominar...E, dentro dessa mesma exemplificação de sentimentalismos gastronômicos, sei de uma boa senhora que não podia comer galinhas a quem “conhecia pessoalmente”, do seu terreiro. Apenas saboreava as que provinham anonimamente do mercado público.
Pois bem, meus ricos leitores, não sou, como vistes, contra lagostas e outros acepipes: isto seria levar muito longe a solidariedade democrática…
O que acontece comigo é que — com perdão da irreverência da comparação — penso como o apóstolo São Paulo, o qual, agradecendo numa de suas epístolas o auxílio financeiro que lhe haviam mandado alguns discípulos, respondeu-lhes que aproveitaria bem o dinheiro, visto que tanto estava acostumado a passar bem como a passar mal... Ótimo! Eis aí um grande santo que era também grandemente humano.

Mário Quintana, em Porta giratória

Cotando o bicho


À guisa de explicação:
Cotar o bicho ocorre quando a banca, sob risco de quebrar, estabelece previamente que não vai pagar o prêmio integral se determinado número sair. Exemplifico: os números 17, 18, 19 e 20 são as dezenas do grupo do cachorro. Nos dias de são Roque e são Lázaro, os volumes de apostas nas dezenas do cachorro são altos, já que ambos os santos estão ligados, na cultura popular, aos cães. É comum que se cotem milhares formados com essas dezenas; da mesma maneira que as dezenas do cavalo (41, 42, 43, 44) são cotadas no dia de são Jorge, já que o guerreiro está sempre acompanhado de seu cavalo e entre os 25 bichos do jogo não está incluído o dragão.
Conto um caso famoso das esquinas cariocas: quando a mídia anunciou que 2.996 pessoas morreram nos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York, muita gente correu para o apontador do jogo do bicho mais próximo e fez a fé nesse milhar (do veado). Se o número fosse sorteado na cabeça, já era. Imediatamente houve uma ordem para a cotação, reduzindo o prêmio a 50% do que normalmente seria pago.
Como dizia o velho Natal, bicheiro das antigas e durante muito tempo o dirigente mais poderoso da Portela, o jogo só funciona porque cada um tem seu palpite e vale o que está escrito.

Luiz Antonio Simas, em Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras

Especial de São João | com Jessier Quirino

Capítulo 148 | O Problema Insolúvel

Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros uma declaração do Cotrim, dizendo, em substância, que “posto não militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a pátria, achava conveniente deixar bem claro que não tinha influência nem parte direta ou indireta na folha de seu cunhado, o Doutor Brás Cubas, cujas ideias e procedimento político inteiramente reprovava. O atual ministério (como aliás qualquer outro composto de iguais capacidades) parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública”.
Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas vezes, e reli a declaração inoportuna, insólita e enigmática. Se ele nada tinha com os partidos, que importava um incidente tão vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os cidadãos que acham bom ou mau um ministério fazem declarações tais pela imprensa, nem são obrigados a fazê-las. Realmente, era um mistério a intrusão do Cotrim neste negócio, não menos que a sua agressão pessoal. Nossas relações até então tinham sido lhanas e benévolas; não me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada, depois da reconciliação. Ao contrário, as recordações eram de verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha, fornecimentos que ele continuava a fazer com a maior pontualidade, e dos quais me dizia algumas semanas antes que, no fim de mais três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembrança de tamanho obséquio não teve força para obstar que ele viesse a público enxovalhar o cunhado?
Devia ser mui poderoso o motivo da declaração, que o fazia cometer ao mesmo tempo um destempero e uma ingratidão; confesso que era um problema insolúvel.

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

O sertanejo falando

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2

Daí por que o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também por que ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra

Escolhidos, por Laerte

Por causa de um bule de bico rachado

Este caso aconteceu há bastante tempo, ao que me contaram. Afiançaram-me que era verídico.
É o seguinte:
Jane – 28 anos – e Bob Douglas, 32 anos, casados, havia quatro anos, viviam o que se chama de felizes no bairro de Soho, Londres.
Certa tardinha, quando Jane servia o chá para ambos, Bob, de repente, enfureceu-se:
Fico doente de ver todos os dias esse bule velho de bico rachado! Não aguento mais!
Jane, em geral suave, retrucou também enraivecida:
Pois vá você mesmo comprar um bule bem bonito, se tem dinheiro!
Bob – e ao que parece era a primeira “cena” entre ambos – Bob saiu batendo a porta. Foi visto num pub, certamente para se acalmar – e depois nunca mais foi visto por ninguém. Isto mesmo: desapareceu. Jane boquiaberta.
Muito tempo depois, Jane soube por um conhecido de ambos que vira Bob num bar em Paris. E que se alistara por cinco anos na Legião Estrangeira. O conhecido prometeu-lhe que, havendo meios, ele arranjaria seu endereço em Paris.
Como presente de Natal, ela ficou sabendo onde Bob morava e escreveu-lhe emocionada. E houve a resposta.
Bob lastimava-se inclusive de não lhe ter escrito: “Querida, quando recobrei o juízo, fiz tudo para não entrar mais na Legião. Querida, ajude-me a consegui-lo ou pelo menos venha ter comigo. Só desejo é estar perto de ti. Sinto saudades terríveis.”
Jane trabalhou como louca – 15 horas por dia em dois empregos: de dia como garçonete de um pub, de noite no vestiário de um nightclub.
Até que juntou o dinheiro suficiente para ir a Paris. Mas não adiantou seu esforço (que consistia também em comer pouco): Bob já tinha sido removido para o Norte da África. Jane implorou a oficiais da Legião Estrangeira no Quai d’Orsay que licenciassem Bob. Chorava. Também chorava porque tinha vergonha de explicar que a causa não fora trágica: fora por causa de um bule de chá de bico rachado.
Mas quem acreditaria? Ouviram-na com polidez e depois disseram-lhe que, pelo regulamento, ela só teria o marido de volta para casa em cinco anos.
Restava à inglesinha retornar a Londres, trabalhar e trabalhar, economizando para financiar sua viagem marítima num cargueiro para Sidi-bel-Abbes.
A conta do banco começava já a crescer, quando Jane recebeu mais uma carta de Bob: “Querida, estou num abismo de desespero. Vou ser mandado para a Indochina.”
Mas de tanto receio e desespero, Bob adoece, baixou ao hospital. Seus companheiros seguiram viagem, muitos deles morreram em Dien-Bien-Phu. Jane tentou engajar-se na Cruz Vermelha Internacional ou na Marinha Mercante. Mas sem êxito algum.
Um mês depois, julgado curado, embarcaram Bob para a Indochina. Ao passar o navio pelo Canal de Suez, ele e mais quatro italianos atiraram-se na água.
A polícia egípcia prendeu-os por entrada ilegal. Em Londres, Jane suplicou e suplicou ao Foreign Office que livrasse o marido das complicações. Tanto falou que terminou dizendo a verdade que parecia mentira mas não era:
Tudo – explicou com pudor – aconteceu por causa de um velho bule de bico rachado.
Fico danada da vida por não saber o fim da história, e suponho que vocês também.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

O Mito da Caverna | Introdução


O Mito da Caverna é um dos textos filosóficos mais lidos de todos os tempos, extraído do clássico de Platão A República, e narra um diálogo entre o irmão de Platão, Glauco, e Sócrates, seu mentor, tratando-se de um permanente convite à reflexão.
O Mito da Caverna é uma poderosa metáfora que explora a natureza do conhecimento, da realidade e da jornada filosófica em direção à iluminação. É uma das passagens mais conhecidas e influentes da história da filosofia. No Mito da Caverna, Platão descreve um grupo de prisioneiros acorrentados em uma caverna desde o nascimento, com seus rostos voltados para a parede do fundo. Eles nunca viram o mundo exterior e acreditam que as sombras projetadas na parede pelas figuras que passam são a única realidade.
Na Caverna de Platão, os prisioneiros são dispostos em fila em uma caverna escura desde a infância. Eles estão acorrentados de forma que não podem mover seus corpos, e suas cabeças também estão presas de forma que só podem olhar para frente, em direção a uma parede. Eles podem ouvir e falar, mas não podem ver uns aos outros, nem a si mesmos. Atrás deles há uma fogueira. A luz do fogo mostra as sombras dos prisioneiros na parede. Entre os prisioneiros e a fogueira, há pessoas e animais encenando uma peça realista que também projeta sombras na parede. Os prisioneiros veem apenas as sombras, mas ouvem todos os sons. Naturalmente, eles acham que o mundo é composto de sombras na parede e que eles próprios são sombras na parede. As sombras conversam entre si e interagem, e tudo faz sentido para os prisioneiros, que pensam que todas as sombras na parede são como eles próprios. Os prisioneiros até se conhecem por meio das sombras que veem e das vozes que ouvem, e ganham status por sua capacidade de reconhecer outras sombras e prever o que elas farão.
Agora, imagine que um dos prisioneiros seja libertado. Seus grilhões caem no chão e ele pode virar a cabeça. Ele vê os outros prisioneiros sentados em uma fileira acorrentados ao chão e fica horrorizado. Ele também vê os atores e os animais entre os prisioneiros e o fogo. Ele vê a abertura da caverna e se aventura a sair. Ele fica cego com a luz, mas finalmente vê o quadro geral: Durante toda a sua vida, ele esteve sentado em uma caverna, acorrentado ao chão, acreditando que a parede era tudo. Agora ele percebia que a cena na parede é guiada principalmente por alguns atores, com os prisioneiros fazendo comentários. Agora ele vê as oportunidades no mundo real.
Ele se sente no dever de voltar e informar os prisioneiros sobre a situação e tentar libertá-los. Primeiro, ele tenta explicar a existência dos mestres de marionetes aos prisioneiros, mas é improvável que os mestres corroborem sua história, pois eles obtêm muitos benefícios pessoais com o modo atual do mundo. Em seguida, ele tenta explicar como o sistema é organizado com os prisioneiros e a caverna. Tragicamente, ele descobre que os prisioneiros são mais resistentes do que ele esperava. A maioria não acredita nele – e por que deveriam acreditar? Tendo se adaptado à luz externa, ele não consegue ver as sombras tão claramente quanto eles. “Que idiota.” Tirar as correntes exige muito esforço, então a maioria deles permanece sentada. Essas são pessoas que são muito boas e bem-sucedidas em identificar, nomear e lidar com as sombras e, por isso, talvez não queiram sair. Há também aqueles que sentem a necessidade de sair. Sair não é fácil; requer muito aprendizado e uma reorientação dos valores de uma pessoa, que deixa de considerar o sucesso como a identificação de sombras e passa a considerar o sucesso como a movimentação no mundo real. Na vida real, os prisioneiros da Caverna de Platão são aqueles que são prisioneiros ou escravos de seus salários e de sua cultura.
Os espectadores de filmes modernos irão perceber a mesma premissa no filme “The Matrix”, que retrata ideia semelhante. Outra analogia moderna seriam pessoas que creem na mídia e tomam aquilo que veem na TV ou leem nos jornais como a verdade e não como sombras projetadas. Aquele que se rebela contra esse engano e tenta avisar o próximo também é agredido, chamado de negacionista ou conspiracionista.
O mito da caverna simboliza a jornada do homem em busca da verdade e do conhecimento. Os prisioneiros representam a condição humana de ignorância e ilusão, presos em uma realidade superficial e enganosa. O prisioneiro que é libertado e se eleva acima da caverna representa o sábio/filósofo que busca a verdade além das aparências e das convenções sociais.
Essa alegoria destaca a importância do questionamento, da reflexão crítica e da busca por conhecimento para alcançar uma compreensão mais profunda da realidade. Ela nos convida a questionar nossas percepções e crenças, e a nos libertarmos das limitações impostas pela sociedade e pela ignorância, em busca de uma verdade mais essencial e significativa. O “Mito da Caverna” de Platão continua a ser uma metáfora poderosa e relevante, nos lembrando da importância do pensamento crítico, da busca da sabedoria e da expansão do nosso entendimento do mundo ao nosso redor.
Não aceite as correntes; saia da caverna.

Alexandre Pires Vieira, em O Mito da da Caverna, de Platão

sábado, 22 de junho de 2024

Os Nascimentos | 1536 – Valle de Ulúa

Gonzalo Guerrero

Se retiram, vitoriosos, os ginetes de Alonso de Ávila. No campo de batalha jaz, entre os vencidos, um índio com barba. O corpo, despido, está lavrado de arabescos de tinta e sangue. Símbolos de ouro estão pendurados em seu nariz, lábios e orelhas. Um tiro de arcabuz partiu-lhe a testa.
Se chamava Gonzalo Guerrero. Em sua primeira vida tinha sido marinheiro do porto de Palos. Sua segunda vida começou há vinte e cinco anos, quando naufragou na costa de Yucatán. Desde então, viveu entre os índios. Foi cacique na paz e capitão na guerra. De mulher maia teve três filhos.
Em 1519, Hernán Cortez mandou buscá-lo:
Não – disse Gonzalo ao mensageiro. – Olhe meus filhos, bonitos que são. Deixe-me algumas destas contas verdes que você traz. Eu as darei aos meus filhos, e lhes direi: “Estes brinquedos mandam meus irmãos, da minha terra”.
Muito depois, Gonzalo Guerrero caiu defendendo outra terra, lutando junto a outros irmãos, os irmãos que escolheu. Ele foi o primeiro conquistador conquistado pelos índios.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Minha voz, Minha vida | Dora Morelenbaum e Tim Bernardes

Despalavra

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

Manoel de Barros, em Ensaios fotográficos

O Impressionismo de Monet

The Undergrowth in the forest of Saint Germain (1882), de Claude Monet

A trama

Para o nosso cansado e distraído meditar, o que está à vista do tapete (cujo desenho nunca se repete) provavelmente seja o esquema da existência terrena; o avesso da trama, o outro lado do mundo (supressão do tempo e do espaço, ou afrontosa ou gloriosa manifestação de ambos); e a trama, os sonhos. Isto sonhou, em Teerã, Moisés Neman, fabricante e vendedor de tapetes, que tem o seu negócio em frente à praça Ferdousi.

Gaston Padilla, Memórias de un prescindible, em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Escravos

Quem são Alexandre, Caio e Pompeu em comparação com Diógenes, Heráclito e Sócrates? Estes estavam familiarizados com as coisas, suas causas e suas matérias e tinham faculdades hegemônicas condizentes. Aqueles se preocupavam com e eram escravos de tantas coisas!

Marco Aurélio, em Meditações

No monte das oliveiras


O inverno, um hóspede ruim, está em minha casa; azuis estão minhas mãos, graças ao aperto de mão dessa amizade.
Eu respeito esse hóspede ruim, mas de bom grado o deixo sozinho. Fujo de sua presença; e, quando se corre bem, escapa-se dele!
Com pés e pensamentos quentes corro para onde o vento está parado — para o canto ensolarado de meu monte das oliveiras.
Lá eu rio de meu severo hóspede e ainda lhe sou grato por afastar as moscas em casa e silenciar muito barulho pequeno.
Pois ele não tolera que um mosquito queira cantar, menos ainda dois; também a rua ele torna solitária, de modo que nela o luar tem receio à noite.
É um hóspede duro — mas eu o respeito, e não rezo, como os fracotes, ao barrigudo ídolo de fogo.
É ainda melhor bater um pouco os dentes do que adorar ídolos! — assim quer meu feitio. E detesto especialmente os ardorosos, fumegantes, abafados ídolos de fogo.
Quem eu amo, amo-o melhor no inverno do que no verão; zombo melhor e mais efusivamente de meus inimigos agora, desde que o inverno está em minha casa.
Efusivamente, em verdade, mesmo quando me arrasto para a cama —: mesmo então ri e faz graça minha felicidade encolhida; ri também meu sonho mentiroso.
Eu — um que se arrasta? Jamais na vida me arrastei ante poderosos; e, se alguma vez menti, menti por amor. Por isso estou alegre também no leito de inverno.
Um leito magro me aquece mais que um leito rico, pois tenho ciúmes de minha pobreza. E sobretudo no inverno ela me é mais fiel.
Com uma maldade dou início a cada dia, zombo do inverno com um banho frio: isso faz resmungar meu severo amigo de casa.
Também gosto de fazer-lhe cócegas com uma pequena vela: para que enfim deixe que o céu saia da cinzenta madrugada.
Pois especialmente maldoso sou eu de manhã: bem cedo, quando o balde retine no poço e os cavalos calidamente relincham pelas ruas cor de cinza: —
Impaciente espero lá, até que enfim o céu claro apareça, o céu de inverno com barba de neve, o ancião de cabeça branca, —
o céu de inverno, o silencioso, que muitas vezes também silencia seu sol!
Porventura aprendi com ele o longo, claro silenciar? Ou ele o aprendeu comigo? Ou cada um de nós o inventou por si?
Todas as coisas boas são de origem múltipla, — todas as coisas boas e travessas pulam de prazer para dentro da existência: como poderiam elas fazer isso apenas — uma vez?
Coisa boa e travessa é também o longo silenciar e, como o céu de inverno, o olhar de um rosto luminoso de olhos redondos: —
como ele, silenciar seu sol e sua inflexível vontade solar: em verdade, aprendi bem essa arte e essa petulância de inverno!
Minha arte e maldade mais querida é que meu silêncio aprendeu a não se trair pelo silêncio.
Chacoalhando palavras e dados, engano meus solenes guardiães: minha vontade e minha finalidade escaparão a esses severos vigias.
Para que ninguém olhe em meu fundo e minha vontade derradeira — para isso inventei o longo e luminoso silêncio.
Mais de um homem sagaz encontrei: cobria o rosto e turvava sua água, de modo que ninguém olhasse através e no fundo deles.
Mas iam até ele justamente os mais sagazes desconfiados e quebradores de nozes: justamente dele pescavam os peixes mais ocultos!
Já os claros, valorosos, transparentes — são para mim os mais sagazes entre os que silenciam: tão profundo é seu fundo, que mesmo a água mais clara não o — trai. —
Ó silencioso céu invernal de barba de neve, ó cabeça branca de olhos redondos acima de mim! Ó imagem celeste de minha alma e de sua petulância!
E não tenho de ocultar, como uma pessoa que engoliu ouro — para que não me cortem e abram a alma?
Não tenho de andar com pernas de pau, para que não notem minhas longas pernas — todos esses invejosos e lamentosos em torno a mim?
Essas almas enfumaçadas, abafadas, consumidas, enverdecidas, enraivecidas — como poderia a sua inveja suportar a minha felicidade?
Então lhes mostro apenas o gelo e o inverno sobre meus cumes — e não que minha montanha também se cinge de todos os cinturões de sol!
Ouvem apenas minhas tempestades de inverno a silvar — e não que também viajo por mares quentes, como saudosos, pesados, cálidos ventos do sul.
Também se apiedam de meus acidentes e acasos: — mas minha palavra diz: “Deixai vir a mim o acaso: ele é inocente como uma criança!”.
Como poderiam suportar minha felicidade, se eu não a cobrisse de acidentes, apuros de inverno, gorros de urso-polar e capas de céu de neve?
se eu mesmo não me apiedasse de sua compaixão: da compaixão desses invejosos e lamentosos?
se eu mesmo não suspirasse e tremesse de frio diante deles e pacientemente não me deixasse ser envolvido em sua compaixão?
Eis a sábia petulância e benevolência de minha alma, o fato de não esconder seu inverno e suas nevascas; de tampouco esconder suas frieiras.
A solidão de um é a fuga do doente; a solidão do outro, a fuga ante os doentes.
Que eles me ouçam tiritar e suspirar de frio, todos esses pobres e vesgos malandros ao meu redor! Com esses suspiros e tremores fujo inclusive de seus aposentos aquecidos.
Que eles se compadeçam e suspirem comigo por minhas frieiras: “No gelo do conhecimento ele ainda morrerá de frio!” — assim lamentam eles.
Enquanto isso ando de pés quentes, para lá e para cá, em meu monte das oliveiras: no canto ensolarado de meu monte das oliveiras eu canto e zombo de toda compaixão. —

Assim cantou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Tiago Iorc | Antes Que O Mundo Acabe (estrelando Grazi Massafera)

a casa

estão construindo uma casa
meia quadra abaixo
e eu fico aqui sentado
com as persianas baixadas
escutando os ruídos,
os martelos batendo nos pregos,
tac tac tac tac,
então escutei os pássaros, e
tac tac tac
e vou para a cama,
puxo as cobertas até a altura da garganta;
eles estão erguendo essa casa
há um mês, e logo ela estará ocupada com
suas pessoas... dormindo, comendo,
amando, vagando por ali,
mas de algum modo
agora
isso não está certo,
parece loucura,
homens caminham sobre o telhado com pregos em suas bocas
e eu leio sobre Castro e Cuba
e à noite passo caminhando por ali
e a ossatura da casa está à mostra
e lá dentro posso ver os gatos a caminhar
daquele jeito que os gatos caminham,
e então um garoto surge em uma bicicleta,
e a casa continua inacabada
e pela manhã os homens
voltarão
caminhando pela casa
com seus martelos,
parece que as pessoas não deveriam mais erguer casas
que deveriam parar de trabalhar
e se sentar em pequenas peças
em segundos andares
sob lâmpadas elétricas sem pantalhas;
parece que há muito a esquecer
e muito a não fazer
e nos armazéns, mercados, bares
as pessoas estão cansadas, elas não querem
se mover, e eu fico lá à noite
e olho através dessa casa e acasa não quer ser construída;
por suas laterais consigo ver as colinas púrpuras
e as primeiras luzes do entardecer,
e faz frio
e eu abotoo meu casaco
e fico ali olhando através da casa
e os gatos param e olham para mim
até que fico constrangido
e sigo na direção norte pela calçada
onde comprarei
cigarros e cerveja
para depois retornar ao meu quarto.

Charles Bukowski, em Queimando na água, afogando-se na chama

Tirant lo Blanc


O herói do primeiro romance de cavalaria ibérico, Tirant lo Blanc, entra em cena dormitando em cima de seu cavalo. O cavalo se detém para beber numa fonte, Tirant acorda e vê, sentado ao lado da água, um eremita de barba branca que está lendo um livro. Tirant manifesta ao eremita sua intenção de entrar para a ordem da cavalaria. O eremita, que fora cavaleiro, se oferece para instruir o jovem nas regras da ordem.

Hijo mío — dijo el ermitaño —,
toda la orden está escrita en ese
libro, que algunas veces leo para
recordar la gracia que Nuestro Señor
me ha hecho en este mundo, puesto
que honraba y mantenía la orden de
caballería con todo mi poder.

Desde suas primeiras páginas, o primeiro romance de cavalaria da Espanha parece querer nos advertir de que todo livro de cavalaria pressupõe um livro de cavalaria precedente, necessário para que o herói se torne cavaleiro. “Tot l’ordre és en aques llibre escrit.” Desse postulado podem ser extraídas muitas conclusões: inclusive a de que talvez a cavalaria não tenha nunca existido antes dos livros de cavalaria ou até que só existiu nos livros.
Assim, é possível compreender como o último depositário das virtudes cavaleirescas, Dom Quixote, será alguém que construiu a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos livros. Uma vez que Cura, Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado fogo à biblioteca, a cavalaria terminou: Dom Quixote permanecerá como o último exemplar de uma espécie sem sucessores.
No auto de fé doméstico, o Padre salva os livros arquetípicos, Amadís de Gaula e Tirante el Blanco, bem como os poemas em versos de Boiardo e de Ariosto (no original italiano, não em tradução, em que perdem “su natural valor”). Em relação a tais livros, à diferença de outros aceitos porque considerados conformes à moral (como Palmerín de Inglaterra), parece que a indulgência tem sobretudo motivações estéticas; mas quais? Constatamos que as qualidades que valem para Cervantes (mas até que ponto estamos seguros de que as opiniões de Cervantes coincidem com as do Padre e do Barbeiro, mais do que com as de Dom Quixote?) são a originalidade literária (Amadís é definido como “único en su arte”) e a verdade humana (Tirante el Blanco é elogiado porque “aquí comen los caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes de su muerte, con otras cosas de que los demás libros de este género carecen”). Portanto, Cervantes (aquela parte de Cervantes que se identifica etc.) respeita os livros de cavalaria quanto mais se afastem das regras do gênero; não é mais o mito da cavalaria que conta, mas o valor do livro enquanto livro. Um critério de juízo oposto ao de Dom Quixote (e do lado de Cervantes que se identifica com seu herói), o qual se recusa a distinguir entre os livros e a vida e quer encontrar o mito fora dos livros.
Qual será a sorte do mundo romanesco da cavalaria, quando o espírito analítico intervém para estabelecer os limites entre o reino do maravilhoso, o reino dos valores morais, o reino da realidade verossímil? A catástrofe repentina e grandiosa em que o mito da cavalaria se dissolve pelas desoladas estradas da Mancha é um evento de dimensão universal mas que não tem correspondência nas outras literaturas. Na Itália, e mais precisamente nas cortes da Itália setentrional, o mesmo processo ocorrera durante o século precedente de forma menos dramática, como sublimação literária da tradição. O declínio da cavalaria fora celebrado por Pulci, Boiardo, Ariosto num clima de festa renascentista, com matizes burlescos mais ou menos marcados, porém com nostalgia pela ingênua fabulação popular dos contadores de histórias; aos rudes despojos do imaginário cavaleiresco ninguém atribuía nenhum valor além de um repertório de motivos convencionais, mas o céu da poesia se abria para acolher seu espírito.
Pode ser interessante lembrar que, muitos anos antes de Cervantes, em 1526, já encontramos uma fogueira de livros de cavalaria ou, mais precisamente, uma seleção dos livros a serem condenados ao fogo e daqueles a serem salvos. Falo de um texto decididamente menor e não muito conhecido: o Orlandino, poema breve em versos italianos de Teofilo Folengo (famoso com o nome de Merlin Cocai por causa de Baldus, poema em latim macarrônico misturado com o dialeto de Mântua). No primeiro canto do Orlandino, Folengo conta ter sido levado por uma bruxa, voando na garupa de um bode, para uma caverna dos Alpes onde são conservadas as verdadeiras crônicas de Turpin, lendária matriz de todo o ciclo carolíngio. Do confronto com as fontes, resultam verdadeiros os poemas de Boiardo, Ariosto, Pulci e do “Cego de Ferrara”, embora com acréscimos arbitrários.

Mas Trebisunda, Ancroja, Spagna e Bovo
Com todo o resto ao fogo sejam dadas,
Apócrifas são todas e as reprovo
Como inimigas de quaisquer verdades;
Boiardo, Ariosto, Pulci e o Cego
Autenticados são e eu junto sigo.

El verdadero historiador Turpin”, também lembrado por Cervantes, era um ponto de referência habitual no jogo dos poetas cavaleirescos italianos do Renascimento. Também Ariosto, quando sente que conta casos muito exagerados, se protege com a autoridade de Turpin: “O bom Turpin, que sabe dizer o vero, e vai deixar crer o que o homem ouve com agrado, conta admiráveis coisas de Ruggiero, que, só de ouvir, de mentiroso sim seria chamado” (O. F., XXVI, 23).
A função do lendário Turpin, Cervantes irá atribuí-la a um misterioso Cide Hamete Benengeli de cujo manuscrito árabe ele seria apenas o tradutor. Mas Cervantes age agora num mundo radicalmente diverso: a verdade para ele deve fazer as contas com a experiência cotidiana, com o senso comum e também com os preceitos da religião da Contrarreforma. Para os poetas italianos do Quatrocentos e do Quinhentos (até Tasso, excluído, pois com ele a questão se complica), a verdade era ainda fidelidade ao mito, como para o Cavaleiro da Mancha.
Podemos verificar isso também num epígono como Folengo, a meio caminho entre poesia popular e poesia culta: o espírito do mito, transmitido pela noite dos tempos, é simbolizado por um livro, o de Turpin, que está na origem de todos os livros, livro hipotético, só alcançável pela magia (também Boiardo, diz Folengo, era amigo das bruxas), livro mágico além de ser relato de magias.
Nos países de origem, França e Inglaterra, a tradição literária cavaleiresca se apagara antes (na Inglaterra, em 1470, recebendo uma forma definitiva no romance de Thomas Malory, exceto se considerarmos uma nova encarnação com as fadas elisabetanas de Spencer; na França, declinando lentamente após ter conhecido a consagração poética mais precoce no século XII com as obras-primas de Chrétien de Troyes). O revival cavaleiresco do século XVI envolve sobretudo Itália e Espanha. Quando Bernal Díaz del Castillo, para exprimir a maravilha dos conquistadores perante as visões de um mundo inimaginável como o do México de Montezuma, escreve: “Decíamos que parecía a las cosas de encantamiento que cuentan en el libro de Amadís”, temos a impressão de que compara a realidade mais nova com a tradição de textos antiquíssimos. Mas, se observarmos as datas, vemos que Díaz del Castillo narra fatos ocorridos em 1519, quando Amadís ainda podia ser considerado quase uma novidade editorial… Compreendemos assim que a descoberta do Novo Mundo e a Conquista foram acompanhadas, no imaginário coletivo, por aquelas histórias de gigantes e de encantamentos das quais o mercado de livros oferecia vasto sortimento, assim como a primeira difusão europeia do ciclo francês acompanhara, alguns séculos antes, a mobilização publicitária para as Cruzadas.
O milênio que está para se encerrar foi o milênio do romance. Nos séculos XI, XII e XIII, os romances de cavalaria foram os primeiros livros profanos cuja difusão marcou profundamente a vida das pessoas comuns e não somente dos doutos. Dante é testemunho disso, falando-nos de Francesca, a primeira personagem da literatura mundial que vê sua vida mudada pela leitura dos romances, antes de Dom Quixote, antes de Emma Bovary. No romance francês Lancelot, o cavaleiro de Galehaut convence Guenièvre a beijar Lancelot; na Divina comédia, o livro Lancelot assume a função que Galehaut tivera no romance, convencendo Francesca a deixar-se beijar por Paolo. Provocando uma identificação entre a personagem do livro enquanto age sobre as outras personagens e o livro enquanto age sobre seus leitores (“Galeotto foi o livro e quem o escreveu”), Dante executa uma primeira operação vertiginosa de metaliteratura. Nos versos de uma concentração e sobriedade insuperáveis, acompanhamos Francesca e Paolo que “sem nenhuma suspeita” se deixam prender pelas emoções da leitura e, de vez em quando, se olham nos olhos, empalidecem, e quando chegam ao ponto em que Lancelot beija a boca de Guenièvre (“o desejado riso”) o desejo escrito no livro torna explícito o desejo experimentado na vida e a vida toma a forma narrada no livro: “a boca me beijou toda trêmula…

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

O Eterno Feminino num Boteco do Leblon

O cara que aparecer na minha frente pra me dizer que compreende as mulheres, eu primeiro falo que ele é um mentiroso sem-vergonha e, se ele não gostar, eu meto a mão na cara dele, podes crer. Ninguém jamais entendeu, ninguém entende, ninguém jamais entenderá.
Não sei se eu concordo. Se você pensar bem, ninguém entende o ser humano. E a mulher, como ser humano...
Mulher não é ser humano! Tu já começa com a afirmação errada, mulher não é ser humano, é outra espécie! E que por sinal sempre se deu muito melhor do que nós e agora está se dando ainda melhor. Você sabe o que é que nós, homens, somos? Nós somos vassalos, é o que nós somos e sempre fomos! Vassalos, escravos, abaixo de escravos, propriedades imobiliárias!
Você já deve ter chegado com umas duas no juízo, já deve ter passado no Azeitona antes de chegar aqui.
Nada disso, meu caro amigo, estou chegando diretamente do recesso do lar, este é o meu primeiro chope e, se Deus quiser, não há previsão para o último.
Não é isso, é porque tu até pode não ser um intelectual, mas...
Não me xinga! Se tu me chamar de intelectual eu rompo contigo, intelectual um cacete, eu tenho horror desses caras, devia estar tudo numa fazenda, pegando na enxada e dizendo as besteiras deles às vacas. Intelectual é uma merda, intelectual...
Tudo bem, mas você sabe perfeitamente que as mulheres sempre foram oprimidas e discriminadas. Essa liberdade é recente, é uma conquista que resultou de muita luta.
Tudo chute! Elas sempre estiveram por cima da carne-seca! Sempre foram elas que mandaram! Eu não vou nem discutir isso com você, qualquer historiador desmoraliza o que tu falou, eu mesmo tenho um livro lá em casa que tu cai o queixo. E, além disso, não me interessa, eu não sou progressista como você, nem nesse nem em outros pontos, tu é que sempre tá querendo mostrar sintonia com as últimas do momento, tu sempre foi assim desde o “paz e amor”, desde até “a família que reza unida”, eu te conheço.
Não, eu procuro me manter atualizado, a realidade muda, nossas opiniões também têm que mudar.
As minhas, não! Eu continuo do tempo em que mulher não tinha direito a TPM! Aliás, nem existia TPM, era tudo considerado frescura e cólica menstrual era psicológica, tudo pra aporrinhar o homem. Aliás, mulher não fica doente, tudo é pra aporrinhar o homem. Esta é uma grande verdade, mulher não fica doente.
Cara, tu tá me dando um susto, tu não tá falando sério. Tu deve é ter tido uma briga feia com a Solange e aí...
Claro que eu tive uma briga, é muito simples. São 38 anos de casado, 32 morando aqui no Leblon praticamente no mesmo lugar e hoje, pela primeira vez, eu resolvi responder ao discurso que ela faz há esses 32 anos, toda vez que eu saio pro boteco. Aí não deu papo e eu já cheguei aqui neste estado, minha pressão deve estar batendo nuns 20 por 14. E minhas duas filhas estavam lá, estava a Vanessa, minha nora, todo mundo contra mim, é claro.
Mas então tu deve ter dito alguma coisa muito ofensiva.
Disse zorra nenhuma! Tu já experimentou encarar um coral de jararacas te esculhambando com o que elas lêem nessas revistas que deviam ser proibidas? Nem Mussolini encarava! E era capaz de me cobrirem de porrada, não duvido nada!
Mas que exagero, cara, tu tá transtornado, tu...
Tou! Tou! Tou transtornado! Tou mesmo! Eu sou de outro tempo, minhas convicções são outras, que, aliás, são também a da maioria, só que todo mundo é covarde e hipócrita e fica repetindo essas babaquices pra fazer média socialmente.
Não é nada disso, tu tá enganado.
Eu não tou nada enganado! O Lula tinha toda razão, quando improvisou que elas andam muito ousadas e daqui a pouco aparece uma querendo ser presidente da República.
Ah, isso também já é preconceito demais. Aliás, a tendência é essa mesmo, já tem havido muitas mulheres governantes, a Golda Meir, a Indira Ghandi, a Margaret Thatcher... O que o Lula falou...
... Tá certo! Ele tá certo! É o que todo mundo pensa e não tem coragem de dizer e aí ele vai lá e fala. Aliás, eu queria lhe dizer que eu sou a favor do que ele diz e sou improvisista de primeira hora. Ele diz o que o povo pensa, é isso mesmo, só quem não gosta é intelectual e veado, que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa, se tu for olhar bem olhado, é tudo meio boiola. Eu sou improvisista convicto. Mulher, meu amigo, deixou desencostar a barriga do tanque, tá lascado. Ele tem mais é que abrir o bocão e dizer o que todo mundo pensa ali, pão, pão, queijo, queijo.
Mas ele não fala contra as mulheres e tem mulheres trabalhando com ele, inclusive no Ministério.
É a política! A política é que obriga ele, ele não é burro e não vai dar essa mancada de falar contra elas. Mas duvido que ele não pense igual a mim, ele fala o que o povo pensa, essa é que é a verdade, é por isso que todo mundo gosta dele e só a baitolada intelectual e da imprensa é que não gosta. Por mim ele tá reeleito, só não tá se abandonar o improvisismo.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Só pra relaxar

Bicudinho, de Caco Galhardo

Memória

Quando minha filha sofria se preparando para os vestibulares, tendo de memorizar informações que iam das causas da Guerra dos Cem Anos a problemas de cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, eu lhe dizia, como consolo: “Eu lhe juro, minha filha, que, dois meses depois dos vestibulares, você terá esquecido tudo”. Há um esquecimento que deriva da inteligência.
Água fervendo, espaguete cozinhando. Nenhum cozinheiro seria tolo de levar a água à mesa. O que importa é o espaguete. Para isso existe o escorredor de macarrão: para deixar passar o que não vai ser comido. A memória é um escorredor de macarrão: o que não vai ser comido, ela esquece.
Há pessoas que não esquecem nada: memória perfeita. Geralmente esse fenômeno se observa em idiotas.
Depois do sofrimento dos vestibulares vêm o vômito e a diarreia: esquecimento. Expulsão das comidas não digeridas. Não por falta de memória ou inteligência curta. A memória esquece porque quer esquecer.
A memória não carrega peso inútil em suas malas. Viaja leve. Leva sempre duas malas. Numa estão os objetos úteis. Noutra estão os objetos que dão prazer.
Um homem que, desejoso de montar uma oficina, comprasse todas as ferramentas que existem, seria considerado um tolo. Uma oficina se monta com ferramentas que vão ser usadas. Mas o que nossas escolas querem é que os alunos carreguem ferramentas que nunca serão usadas. E depois se queixam de que elas são abandonadas.
Prova de inteligência não é possuir todas as ferramentas. É possuir as ferramentas de que se vai necessitar. Sabedoria oriental: “O tolo soma ferramentas. O sábio diminui as ferramentas”. O importante não é ter. É saber onde encontrar.
Se o conhecimento científico de anatomia fosse condição para se fazer amor, os professores de anatomia seriam amantes insuperáveis. Se o conhecimento acadêmico da gramática fosse condição para se fazer literatura, os gramáticos seriam escritores insuperáveis.
Não me consta que o Kama-Sutra tenha sido escrito por um professor de anatomia. Não conheço gramático que tenha feito literatura. Gramática se faz com palavras mortas. Literatura se faz com palavras vivas. Para se fazer amor com os livros é preciso esquecer da gramática e aprender a música das palavras. Literatura é música.
Inventaram um crime atroz, que deveria ser punido: fazer resumo das obras literárias que vão cair no vestibular, para que o aluno não tenha de lê-las! Ah! Queria mesmo é ver o resumo que fariam das escrituras do Manoel de Barros.
Gramática é necrotério, sala de anatomia, palavras mortas sob a ação do bisturi da análise. Literatura são as palavras vivas, fazendo o que elas bem desejam, à revelia de quem escreve. Mas aí eu pergunto: quem sentirá vontade de fazer amor fazendo a necrópsia da amada morta?
Jacob Boehme, teólogo místico, afirmava que Deus é uma criança: Deus só faz brincar. O Paraíso foi perdido quando a criança deixou de ser um ser brincante e se transformou em trabalhador sério, adulto. A felicidade não se encontra nem na vida futura anunciada pelo protestantismo nem nos sacramentos administrados pelo catolicismo, mas na transformação desta vida corpórea em alegre brincadeira.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba