sexta-feira, 21 de junho de 2024

Memória

Quando minha filha sofria se preparando para os vestibulares, tendo de memorizar informações que iam das causas da Guerra dos Cem Anos a problemas de cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos, eu lhe dizia, como consolo: “Eu lhe juro, minha filha, que, dois meses depois dos vestibulares, você terá esquecido tudo”. Há um esquecimento que deriva da inteligência.
Água fervendo, espaguete cozinhando. Nenhum cozinheiro seria tolo de levar a água à mesa. O que importa é o espaguete. Para isso existe o escorredor de macarrão: para deixar passar o que não vai ser comido. A memória é um escorredor de macarrão: o que não vai ser comido, ela esquece.
Há pessoas que não esquecem nada: memória perfeita. Geralmente esse fenômeno se observa em idiotas.
Depois do sofrimento dos vestibulares vêm o vômito e a diarreia: esquecimento. Expulsão das comidas não digeridas. Não por falta de memória ou inteligência curta. A memória esquece porque quer esquecer.
A memória não carrega peso inútil em suas malas. Viaja leve. Leva sempre duas malas. Numa estão os objetos úteis. Noutra estão os objetos que dão prazer.
Um homem que, desejoso de montar uma oficina, comprasse todas as ferramentas que existem, seria considerado um tolo. Uma oficina se monta com ferramentas que vão ser usadas. Mas o que nossas escolas querem é que os alunos carreguem ferramentas que nunca serão usadas. E depois se queixam de que elas são abandonadas.
Prova de inteligência não é possuir todas as ferramentas. É possuir as ferramentas de que se vai necessitar. Sabedoria oriental: “O tolo soma ferramentas. O sábio diminui as ferramentas”. O importante não é ter. É saber onde encontrar.
Se o conhecimento científico de anatomia fosse condição para se fazer amor, os professores de anatomia seriam amantes insuperáveis. Se o conhecimento acadêmico da gramática fosse condição para se fazer literatura, os gramáticos seriam escritores insuperáveis.
Não me consta que o Kama-Sutra tenha sido escrito por um professor de anatomia. Não conheço gramático que tenha feito literatura. Gramática se faz com palavras mortas. Literatura se faz com palavras vivas. Para se fazer amor com os livros é preciso esquecer da gramática e aprender a música das palavras. Literatura é música.
Inventaram um crime atroz, que deveria ser punido: fazer resumo das obras literárias que vão cair no vestibular, para que o aluno não tenha de lê-las! Ah! Queria mesmo é ver o resumo que fariam das escrituras do Manoel de Barros.
Gramática é necrotério, sala de anatomia, palavras mortas sob a ação do bisturi da análise. Literatura são as palavras vivas, fazendo o que elas bem desejam, à revelia de quem escreve. Mas aí eu pergunto: quem sentirá vontade de fazer amor fazendo a necrópsia da amada morta?
Jacob Boehme, teólogo místico, afirmava que Deus é uma criança: Deus só faz brincar. O Paraíso foi perdido quando a criança deixou de ser um ser brincante e se transformou em trabalhador sério, adulto. A felicidade não se encontra nem na vida futura anunciada pelo protestantismo nem nos sacramentos administrados pelo catolicismo, mas na transformação desta vida corpórea em alegre brincadeira.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

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