sexta-feira, 21 de junho de 2024

Tirant lo Blanc


O herói do primeiro romance de cavalaria ibérico, Tirant lo Blanc, entra em cena dormitando em cima de seu cavalo. O cavalo se detém para beber numa fonte, Tirant acorda e vê, sentado ao lado da água, um eremita de barba branca que está lendo um livro. Tirant manifesta ao eremita sua intenção de entrar para a ordem da cavalaria. O eremita, que fora cavaleiro, se oferece para instruir o jovem nas regras da ordem.

Hijo mío — dijo el ermitaño —,
toda la orden está escrita en ese
libro, que algunas veces leo para
recordar la gracia que Nuestro Señor
me ha hecho en este mundo, puesto
que honraba y mantenía la orden de
caballería con todo mi poder.

Desde suas primeiras páginas, o primeiro romance de cavalaria da Espanha parece querer nos advertir de que todo livro de cavalaria pressupõe um livro de cavalaria precedente, necessário para que o herói se torne cavaleiro. “Tot l’ordre és en aques llibre escrit.” Desse postulado podem ser extraídas muitas conclusões: inclusive a de que talvez a cavalaria não tenha nunca existido antes dos livros de cavalaria ou até que só existiu nos livros.
Assim, é possível compreender como o último depositário das virtudes cavaleirescas, Dom Quixote, será alguém que construiu a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos livros. Uma vez que Cura, Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado fogo à biblioteca, a cavalaria terminou: Dom Quixote permanecerá como o último exemplar de uma espécie sem sucessores.
No auto de fé doméstico, o Padre salva os livros arquetípicos, Amadís de Gaula e Tirante el Blanco, bem como os poemas em versos de Boiardo e de Ariosto (no original italiano, não em tradução, em que perdem “su natural valor”). Em relação a tais livros, à diferença de outros aceitos porque considerados conformes à moral (como Palmerín de Inglaterra), parece que a indulgência tem sobretudo motivações estéticas; mas quais? Constatamos que as qualidades que valem para Cervantes (mas até que ponto estamos seguros de que as opiniões de Cervantes coincidem com as do Padre e do Barbeiro, mais do que com as de Dom Quixote?) são a originalidade literária (Amadís é definido como “único en su arte”) e a verdade humana (Tirante el Blanco é elogiado porque “aquí comen los caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes de su muerte, con otras cosas de que los demás libros de este género carecen”). Portanto, Cervantes (aquela parte de Cervantes que se identifica etc.) respeita os livros de cavalaria quanto mais se afastem das regras do gênero; não é mais o mito da cavalaria que conta, mas o valor do livro enquanto livro. Um critério de juízo oposto ao de Dom Quixote (e do lado de Cervantes que se identifica com seu herói), o qual se recusa a distinguir entre os livros e a vida e quer encontrar o mito fora dos livros.
Qual será a sorte do mundo romanesco da cavalaria, quando o espírito analítico intervém para estabelecer os limites entre o reino do maravilhoso, o reino dos valores morais, o reino da realidade verossímil? A catástrofe repentina e grandiosa em que o mito da cavalaria se dissolve pelas desoladas estradas da Mancha é um evento de dimensão universal mas que não tem correspondência nas outras literaturas. Na Itália, e mais precisamente nas cortes da Itália setentrional, o mesmo processo ocorrera durante o século precedente de forma menos dramática, como sublimação literária da tradição. O declínio da cavalaria fora celebrado por Pulci, Boiardo, Ariosto num clima de festa renascentista, com matizes burlescos mais ou menos marcados, porém com nostalgia pela ingênua fabulação popular dos contadores de histórias; aos rudes despojos do imaginário cavaleiresco ninguém atribuía nenhum valor além de um repertório de motivos convencionais, mas o céu da poesia se abria para acolher seu espírito.
Pode ser interessante lembrar que, muitos anos antes de Cervantes, em 1526, já encontramos uma fogueira de livros de cavalaria ou, mais precisamente, uma seleção dos livros a serem condenados ao fogo e daqueles a serem salvos. Falo de um texto decididamente menor e não muito conhecido: o Orlandino, poema breve em versos italianos de Teofilo Folengo (famoso com o nome de Merlin Cocai por causa de Baldus, poema em latim macarrônico misturado com o dialeto de Mântua). No primeiro canto do Orlandino, Folengo conta ter sido levado por uma bruxa, voando na garupa de um bode, para uma caverna dos Alpes onde são conservadas as verdadeiras crônicas de Turpin, lendária matriz de todo o ciclo carolíngio. Do confronto com as fontes, resultam verdadeiros os poemas de Boiardo, Ariosto, Pulci e do “Cego de Ferrara”, embora com acréscimos arbitrários.

Mas Trebisunda, Ancroja, Spagna e Bovo
Com todo o resto ao fogo sejam dadas,
Apócrifas são todas e as reprovo
Como inimigas de quaisquer verdades;
Boiardo, Ariosto, Pulci e o Cego
Autenticados são e eu junto sigo.

El verdadero historiador Turpin”, também lembrado por Cervantes, era um ponto de referência habitual no jogo dos poetas cavaleirescos italianos do Renascimento. Também Ariosto, quando sente que conta casos muito exagerados, se protege com a autoridade de Turpin: “O bom Turpin, que sabe dizer o vero, e vai deixar crer o que o homem ouve com agrado, conta admiráveis coisas de Ruggiero, que, só de ouvir, de mentiroso sim seria chamado” (O. F., XXVI, 23).
A função do lendário Turpin, Cervantes irá atribuí-la a um misterioso Cide Hamete Benengeli de cujo manuscrito árabe ele seria apenas o tradutor. Mas Cervantes age agora num mundo radicalmente diverso: a verdade para ele deve fazer as contas com a experiência cotidiana, com o senso comum e também com os preceitos da religião da Contrarreforma. Para os poetas italianos do Quatrocentos e do Quinhentos (até Tasso, excluído, pois com ele a questão se complica), a verdade era ainda fidelidade ao mito, como para o Cavaleiro da Mancha.
Podemos verificar isso também num epígono como Folengo, a meio caminho entre poesia popular e poesia culta: o espírito do mito, transmitido pela noite dos tempos, é simbolizado por um livro, o de Turpin, que está na origem de todos os livros, livro hipotético, só alcançável pela magia (também Boiardo, diz Folengo, era amigo das bruxas), livro mágico além de ser relato de magias.
Nos países de origem, França e Inglaterra, a tradição literária cavaleiresca se apagara antes (na Inglaterra, em 1470, recebendo uma forma definitiva no romance de Thomas Malory, exceto se considerarmos uma nova encarnação com as fadas elisabetanas de Spencer; na França, declinando lentamente após ter conhecido a consagração poética mais precoce no século XII com as obras-primas de Chrétien de Troyes). O revival cavaleiresco do século XVI envolve sobretudo Itália e Espanha. Quando Bernal Díaz del Castillo, para exprimir a maravilha dos conquistadores perante as visões de um mundo inimaginável como o do México de Montezuma, escreve: “Decíamos que parecía a las cosas de encantamiento que cuentan en el libro de Amadís”, temos a impressão de que compara a realidade mais nova com a tradição de textos antiquíssimos. Mas, se observarmos as datas, vemos que Díaz del Castillo narra fatos ocorridos em 1519, quando Amadís ainda podia ser considerado quase uma novidade editorial… Compreendemos assim que a descoberta do Novo Mundo e a Conquista foram acompanhadas, no imaginário coletivo, por aquelas histórias de gigantes e de encantamentos das quais o mercado de livros oferecia vasto sortimento, assim como a primeira difusão europeia do ciclo francês acompanhara, alguns séculos antes, a mobilização publicitária para as Cruzadas.
O milênio que está para se encerrar foi o milênio do romance. Nos séculos XI, XII e XIII, os romances de cavalaria foram os primeiros livros profanos cuja difusão marcou profundamente a vida das pessoas comuns e não somente dos doutos. Dante é testemunho disso, falando-nos de Francesca, a primeira personagem da literatura mundial que vê sua vida mudada pela leitura dos romances, antes de Dom Quixote, antes de Emma Bovary. No romance francês Lancelot, o cavaleiro de Galehaut convence Guenièvre a beijar Lancelot; na Divina comédia, o livro Lancelot assume a função que Galehaut tivera no romance, convencendo Francesca a deixar-se beijar por Paolo. Provocando uma identificação entre a personagem do livro enquanto age sobre as outras personagens e o livro enquanto age sobre seus leitores (“Galeotto foi o livro e quem o escreveu”), Dante executa uma primeira operação vertiginosa de metaliteratura. Nos versos de uma concentração e sobriedade insuperáveis, acompanhamos Francesca e Paolo que “sem nenhuma suspeita” se deixam prender pelas emoções da leitura e, de vez em quando, se olham nos olhos, empalidecem, e quando chegam ao ponto em que Lancelot beija a boca de Guenièvre (“o desejado riso”) o desejo escrito no livro torna explícito o desejo experimentado na vida e a vida toma a forma narrada no livro: “a boca me beijou toda trêmula…

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

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