domingo, 23 de junho de 2024

Por causa de um bule de bico rachado

Este caso aconteceu há bastante tempo, ao que me contaram. Afiançaram-me que era verídico.
É o seguinte:
Jane – 28 anos – e Bob Douglas, 32 anos, casados, havia quatro anos, viviam o que se chama de felizes no bairro de Soho, Londres.
Certa tardinha, quando Jane servia o chá para ambos, Bob, de repente, enfureceu-se:
Fico doente de ver todos os dias esse bule velho de bico rachado! Não aguento mais!
Jane, em geral suave, retrucou também enraivecida:
Pois vá você mesmo comprar um bule bem bonito, se tem dinheiro!
Bob – e ao que parece era a primeira “cena” entre ambos – Bob saiu batendo a porta. Foi visto num pub, certamente para se acalmar – e depois nunca mais foi visto por ninguém. Isto mesmo: desapareceu. Jane boquiaberta.
Muito tempo depois, Jane soube por um conhecido de ambos que vira Bob num bar em Paris. E que se alistara por cinco anos na Legião Estrangeira. O conhecido prometeu-lhe que, havendo meios, ele arranjaria seu endereço em Paris.
Como presente de Natal, ela ficou sabendo onde Bob morava e escreveu-lhe emocionada. E houve a resposta.
Bob lastimava-se inclusive de não lhe ter escrito: “Querida, quando recobrei o juízo, fiz tudo para não entrar mais na Legião. Querida, ajude-me a consegui-lo ou pelo menos venha ter comigo. Só desejo é estar perto de ti. Sinto saudades terríveis.”
Jane trabalhou como louca – 15 horas por dia em dois empregos: de dia como garçonete de um pub, de noite no vestiário de um nightclub.
Até que juntou o dinheiro suficiente para ir a Paris. Mas não adiantou seu esforço (que consistia também em comer pouco): Bob já tinha sido removido para o Norte da África. Jane implorou a oficiais da Legião Estrangeira no Quai d’Orsay que licenciassem Bob. Chorava. Também chorava porque tinha vergonha de explicar que a causa não fora trágica: fora por causa de um bule de chá de bico rachado.
Mas quem acreditaria? Ouviram-na com polidez e depois disseram-lhe que, pelo regulamento, ela só teria o marido de volta para casa em cinco anos.
Restava à inglesinha retornar a Londres, trabalhar e trabalhar, economizando para financiar sua viagem marítima num cargueiro para Sidi-bel-Abbes.
A conta do banco começava já a crescer, quando Jane recebeu mais uma carta de Bob: “Querida, estou num abismo de desespero. Vou ser mandado para a Indochina.”
Mas de tanto receio e desespero, Bob adoece, baixou ao hospital. Seus companheiros seguiram viagem, muitos deles morreram em Dien-Bien-Phu. Jane tentou engajar-se na Cruz Vermelha Internacional ou na Marinha Mercante. Mas sem êxito algum.
Um mês depois, julgado curado, embarcaram Bob para a Indochina. Ao passar o navio pelo Canal de Suez, ele e mais quatro italianos atiraram-se na água.
A polícia egípcia prendeu-os por entrada ilegal. Em Londres, Jane suplicou e suplicou ao Foreign Office que livrasse o marido das complicações. Tanto falou que terminou dizendo a verdade que parecia mentira mas não era:
Tudo – explicou com pudor – aconteceu por causa de um velho bule de bico rachado.
Fico danada da vida por não saber o fim da história, e suponho que vocês também.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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