sábado, 22 de junho de 2024

No monte das oliveiras


O inverno, um hóspede ruim, está em minha casa; azuis estão minhas mãos, graças ao aperto de mão dessa amizade.
Eu respeito esse hóspede ruim, mas de bom grado o deixo sozinho. Fujo de sua presença; e, quando se corre bem, escapa-se dele!
Com pés e pensamentos quentes corro para onde o vento está parado — para o canto ensolarado de meu monte das oliveiras.
Lá eu rio de meu severo hóspede e ainda lhe sou grato por afastar as moscas em casa e silenciar muito barulho pequeno.
Pois ele não tolera que um mosquito queira cantar, menos ainda dois; também a rua ele torna solitária, de modo que nela o luar tem receio à noite.
É um hóspede duro — mas eu o respeito, e não rezo, como os fracotes, ao barrigudo ídolo de fogo.
É ainda melhor bater um pouco os dentes do que adorar ídolos! — assim quer meu feitio. E detesto especialmente os ardorosos, fumegantes, abafados ídolos de fogo.
Quem eu amo, amo-o melhor no inverno do que no verão; zombo melhor e mais efusivamente de meus inimigos agora, desde que o inverno está em minha casa.
Efusivamente, em verdade, mesmo quando me arrasto para a cama —: mesmo então ri e faz graça minha felicidade encolhida; ri também meu sonho mentiroso.
Eu — um que se arrasta? Jamais na vida me arrastei ante poderosos; e, se alguma vez menti, menti por amor. Por isso estou alegre também no leito de inverno.
Um leito magro me aquece mais que um leito rico, pois tenho ciúmes de minha pobreza. E sobretudo no inverno ela me é mais fiel.
Com uma maldade dou início a cada dia, zombo do inverno com um banho frio: isso faz resmungar meu severo amigo de casa.
Também gosto de fazer-lhe cócegas com uma pequena vela: para que enfim deixe que o céu saia da cinzenta madrugada.
Pois especialmente maldoso sou eu de manhã: bem cedo, quando o balde retine no poço e os cavalos calidamente relincham pelas ruas cor de cinza: —
Impaciente espero lá, até que enfim o céu claro apareça, o céu de inverno com barba de neve, o ancião de cabeça branca, —
o céu de inverno, o silencioso, que muitas vezes também silencia seu sol!
Porventura aprendi com ele o longo, claro silenciar? Ou ele o aprendeu comigo? Ou cada um de nós o inventou por si?
Todas as coisas boas são de origem múltipla, — todas as coisas boas e travessas pulam de prazer para dentro da existência: como poderiam elas fazer isso apenas — uma vez?
Coisa boa e travessa é também o longo silenciar e, como o céu de inverno, o olhar de um rosto luminoso de olhos redondos: —
como ele, silenciar seu sol e sua inflexível vontade solar: em verdade, aprendi bem essa arte e essa petulância de inverno!
Minha arte e maldade mais querida é que meu silêncio aprendeu a não se trair pelo silêncio.
Chacoalhando palavras e dados, engano meus solenes guardiães: minha vontade e minha finalidade escaparão a esses severos vigias.
Para que ninguém olhe em meu fundo e minha vontade derradeira — para isso inventei o longo e luminoso silêncio.
Mais de um homem sagaz encontrei: cobria o rosto e turvava sua água, de modo que ninguém olhasse através e no fundo deles.
Mas iam até ele justamente os mais sagazes desconfiados e quebradores de nozes: justamente dele pescavam os peixes mais ocultos!
Já os claros, valorosos, transparentes — são para mim os mais sagazes entre os que silenciam: tão profundo é seu fundo, que mesmo a água mais clara não o — trai. —
Ó silencioso céu invernal de barba de neve, ó cabeça branca de olhos redondos acima de mim! Ó imagem celeste de minha alma e de sua petulância!
E não tenho de ocultar, como uma pessoa que engoliu ouro — para que não me cortem e abram a alma?
Não tenho de andar com pernas de pau, para que não notem minhas longas pernas — todos esses invejosos e lamentosos em torno a mim?
Essas almas enfumaçadas, abafadas, consumidas, enverdecidas, enraivecidas — como poderia a sua inveja suportar a minha felicidade?
Então lhes mostro apenas o gelo e o inverno sobre meus cumes — e não que minha montanha também se cinge de todos os cinturões de sol!
Ouvem apenas minhas tempestades de inverno a silvar — e não que também viajo por mares quentes, como saudosos, pesados, cálidos ventos do sul.
Também se apiedam de meus acidentes e acasos: — mas minha palavra diz: “Deixai vir a mim o acaso: ele é inocente como uma criança!”.
Como poderiam suportar minha felicidade, se eu não a cobrisse de acidentes, apuros de inverno, gorros de urso-polar e capas de céu de neve?
se eu mesmo não me apiedasse de sua compaixão: da compaixão desses invejosos e lamentosos?
se eu mesmo não suspirasse e tremesse de frio diante deles e pacientemente não me deixasse ser envolvido em sua compaixão?
Eis a sábia petulância e benevolência de minha alma, o fato de não esconder seu inverno e suas nevascas; de tampouco esconder suas frieiras.
A solidão de um é a fuga do doente; a solidão do outro, a fuga ante os doentes.
Que eles me ouçam tiritar e suspirar de frio, todos esses pobres e vesgos malandros ao meu redor! Com esses suspiros e tremores fujo inclusive de seus aposentos aquecidos.
Que eles se compadeçam e suspirem comigo por minhas frieiras: “No gelo do conhecimento ele ainda morrerá de frio!” — assim lamentam eles.
Enquanto isso ando de pés quentes, para lá e para cá, em meu monte das oliveiras: no canto ensolarado de meu monte das oliveiras eu canto e zombo de toda compaixão. —

Assim cantou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

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