segunda-feira, 21 de junho de 2021

Os Palácios reconquistados

Os magnatas nunca me convidaram para as grandes mansões, e a verdade é que tive sempre pouca curiosidade. No Chile o esporte nacional é o arremate. Vê-se muita gente correr atropeladamente aos leilões semanais que caracterizam meu país. Cada casarão destes tem um sino. Chegado o momento, o que dá o melhor lance arremata os gradis que não me deixaram passar nem o povo de que faço parte. E com as grades, mudam de dono as poltronas, os cristos sanguinolentos, os retratos de época, os pratos, as colheres e os lençóis entre os quais foram procriadas tantas vidas ociosas. O chileno gosta de entrar, tocar e ver. Poucos são os que finalmente compram. Sem tardar o edifício é demolido e são rematados pedaços da casa. Os compradores levam os olhos, isto é, as janelas; os intestinos, isto é, as escadas; os assoalhos são os pés; e finalmente repartem até as palmeiras.
Na Europa, ao contrário, as casas imensas são conservadas. Podemos ver às vezes os retratos de seus duques e de suas duquesas que só algum pintor afortunado viu como Deus os fez para felicidade dos que agora desfrutamos dessa pintura e dessas curvas. Podemos espreitar também os segredos, os crimes investigados, as repreensões ásperas, e os arquivos desconcertantes que são as paredes atapetadas, que absorveram tantas conversações destinadas ao palco eletrônico do futuro.
Fui convidado para ir à Romênia e aceitei o convite. Os escritores me levaram para descansar em sua casa de campo coletiva, no meio dos belos bosques transilvanos. A casa dos escritores romenos tinha sido antes o palácio de Carol, o estouvado cujos amores plebeus chegaram a ser assunto de murmúrio mundial. O palácio, com seus móveis modernos e seus banheiros de mármore, estava agora a serviço do pensamento e da poesia da Romênia. Dormi muito bem na cama de sua majestade a rainha e, no dia seguinte, fomos visitar outros castelos convertidos em museus e casas de repouso ou de férias. Acompanhavam-me os poetas Jebeleanu, Beniuc e Radu Bourreanu. Na manhã verde, sob a profundidade dos abetos dos antigos parques reais, cantávamos desbragadamente, ríamos com estardalhaço, gritávamos versos em todos os idiomas. Os poetas romenos, com sua longa história de padecimentos durante os regimes monarco-fascistas, são os mais valorosos e ao mesmo tempo os mais alegres do mundo. Aquele grupo de jograis, tão romenos como os pássaros de suas terras florestais, tão decididos em seu patriotismo, tão firmes em sua revolução e tão embriagadoramente apaixonados pela vida, foram uma revelação para mim. Em poucos lugares adquiri com tanta rapidez tantos irmãos.
Contei aos poetas romenos, para grande regozijo deles, minha visita anterior a outro palácio nobre, o palácio da Liria, em Madri, em plena guerra. Enquanto Franco marchava com seus italianos, mouros e cruzes gamadas, dedicado à santa tarefa de matar espanhóis, os milicianos ocuparam aquele palácio que eu tinha visto tantas vezes ao passar pela rua Argüelles, nos anos de 1934 e 1935. Do ônibus dirigia um olhar respeitoso, não por vassalagem aos novos duques de Alba que já não podiam submeter-me a mim, irredimível americano e poeta semibárbaro, fascinado somente pela majestade que têm os calados e brancos sarcófagos.
Quando veio a guerra, o duque se deixou ficar na Inglaterra porque seu sobrenome é em realidade Berwick. Ficou ali com seus melhores quadros e com seus tesouros mais valiosos. Recordando essa fuga ducal disse aos romenos que, na China, depois da liberação, o último descendente de Confúcio, que ficou rico com um templo e com os ossos do filósofo morto, foi para Formosa também provido de quadros, jogos de toalhas e baixelas, além dos ossos. Ali deve estar bem instalado, cobrando entrada para mostrar as relíquias.
Da Espanha, naquela época, saíam para o resto do mundo notícias tremendas: “HISTÓRICO PALÁCIO DO DUQUE DE ALBA SAQUEADO PELOS VERMELHOS”, “LÚBRICAS CENAS DE DESTRUIÇÃO”, “SALVEMOS ESTA JÓIA HISTÓRICA”.
Fui ver o palácio já que agora me deixavam entrar. Os supostos saqueadores estavam à porta de macacão e fuzil na mão. Dos aviões alemães caíam as primeiras bombas sobre Madri. Pedi aos milicianos que me deixassem passar. Examinaram minuciosamente meus documentos. Já me acreditava pronto para dar os primeiros passos nos opulentos salões quando me detiveram com horror: não tinha limpado os sapatos no grande capacho da entrada. Na realidade os assoalhos reluziam como espelhos. Limpei os sapatos e entrei. Os retângulos vazios das paredes significavam quadros ausentes. Os milicianos sabiam tudo. Contaram-me como o duque tinha esses quadros há anos em seu banco de Londres, depositados num cofre. No grande hall, a única coisa importante eram os troféus de caça, inumeráveis cabeças com chifres e trompas de diferentes pequenos animais. O mais notável era um imenso urso branco em pé sobre duas patas no meio da sala com os dois braços polares abertos e uma cara dissecada que ria com todos os dentes. Era o favorito dos milicianos, que o poliam cada manhã.
Naturalmente me interessaram os quartos de dormir em que tantos Alba dormiram com pesadelos, originados pelos espectros flamengos que de noite chegavam a fazer-lhes cócegas nos pés. Os pés já não estavam ali mas sim a maior coleção de sapatos que já vi na vida. O último duque nunca aumentou sua pinacoteca mas sua sapataria era surpreendente e incalculável. Compridas estantes de cristal que chegavam ao teto guardavam milhares de sapatos. Como nas bibliotecas, havia escadinhas especiais, talvez para colhê-los delicadamente pelos saltos. Olhei com cuidado. Havia centenas de pares de finíssimas botas de montaria, amarelas e negras. Também havia dessas botinhas de camurça com botões de madrepérola. E quantidades de sapatões, sapatilhas e polainas, todos eles com suas formas dentro, o que lhes dava aparência de que tinham pernas e pés sólidos à sua disposição. Se a gente lhes abrisse a vitrina, correriam todos para Londres atrás do Duque! A gente podia dar uma festa de botinhas, alinhadas ao longo de três ou quatro salas, um festim com os olhos e só com os olhos porque os milicianos, fuzil ao braço, não permitiam sequer a uma mosca tocar naqueles sapatos. “A cultura”, diziam. “A História”, diziam. Eu pensava nos pobres rapazes de alpercatas detendo o fascismo nos cumes terríveis de Somosierra, enterrados na neve e no barro.
Junto à cama do duque tinha um quadrinho com moldura dourada cujas maiúsculas góticas me atraíram. Caramba!, pensei, aqui deve estar impressa a árvore genealógica dos Alba. Engano: era o “If” de Rudyard Kipling, essa poesia vulgar e hipócrita, precursora do Reader's Digest, cuja altura intelectual não ia além, no meu entender, da dos sapatos do duque de Alba – com perdão do império britânico!
O banheiro da duquesa deve ser incitante, pensava eu. Evocava tantas coisas, sobretudo aquela madona recostada do Museu do Prado, a quem Goya colocou os mamilos tão distantes um do outro que a gente pensa como o pintor revolucionário mediu a distância, acrescentando um beijo e mais outro, até deixar-lhe um colar invisível de um seio a outro. Mas o equívoco continuava. O urso, a sapataria de opereta, o “If” e, por último, em vez de um banheiro de deusa encontrei um recinto redondo, falsamente pompeiano, com uma tina abaixo do nível do chão, pretensamente finos cisnezinhos de alabastro, afetados e cômicos lampadários – um banheiro enfim para odalisca de filme norte-americano.

Já me retirava com desencanto sombrio quando tive minha recompensa. Os milicianos me convidaram para almoçar. Desci com eles até a cozinha. Quarenta ou cinquenta serventes e criados, cozinheiros e jardineiros do duque, continuavam cozinhando para si mesmos e para os milicianos que montavam guarda à mansão. Consideravam-me visita honrosa.
Depois de alguns cochichos, voltas e mais voltas, recibos que eram assinados, tiraram uma garrafa empoeirada. Era um Lacrima Christi de cem anos, do qual apenas me deixaram beber alguns sorvos. Era um vinho ardente, com uma contextura de mel e fogo, ao mesmo tempo severo e impalpável. Não esquecerei tão facilmente aquelas lágrimas do duque de Alba.
Uma semana depois os bombardeiros alemães deixaram cair quatro bombas incendiárias sobre o palácio de Liria. Do terraço da minha casa vi voarem dois pássaros agoureiros. Um clarão vermelho me fez compreender em seguida que estava presenciando os últimos minutos do palácio.
Naquela mesma tarde passei pelas ruínas fumegantes – disse aos escritores romenos para concluir minha história. – Ali tomei conhecimento de um detalhe comovedor. Os nobres milicianos, debaixo do fogo que caía do céu, das explosões que sacudiam a terra e da fogueira que crescia, só pensaram em salvar o urso branco. Quase morreram na tentativa. As vigas despencavam, tudo ardia e o imenso animal embalsamado se obstinava em não passar pelas janelas e pelas portas. Vi-o de novo e pela última vez, com os braços brancos abertos, morrendo de rir, sobre o gramado do jardim do palácio.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário