domingo, 3 de maio de 2020

Seios e Rembrandts

Os seios artificialmente aumentados ou remodelados trazem para o mundo das relações humanas, ou ao mundo do sangue quente, uma questão antes restrita às artes e antiguidades, ou ao mundo das coisas caras: o valor exato da autenticidade. No que seios de silicone se parecem com um Rembrandt falso? A resposta quem tem que dar é o – por falta de termo melhor – consumidor, dos seios ou do quadro. Um homem atraído pelos seios perfeitos de uma mulher e o comprador de um caro Rembrandt só têm uma coisa a fazer ao descobrir que os dois, ou os três, no caso, são falsos. Mas o quê?
Digamos que o Rembrandt seja uma falsificação irretocável. Se ninguém se preocupasse em comprovar sua autenticidade minuciosamente, a falsificação nunca seria descoberta. Mas seu comprador, seguindo, talvez, o mesmo raciocínio do admirador dos seios (“Isto é bom demais para ser verdade, não acredito que eu esteja com tudo isto nas minhas mãos!”), decide investigar. E descobre que um determinado componente de um determinado pigmento de uma determinada pincelada não podia ter sido usado em 1640, a suposta data do quadro, porque foi inventado depois. Foi, aliás, inventado no ano passado. Por um mínimo detalhe o Rembrandt deixará de ser um Rembrandt e perderá todo o seu valor – se, claro, seu dono revelar o mínimo detalhe. Ele pode muito bem decidir que as coisas são o que parecem ser e não a soma dos seus detalhes, ou pelo menos de todos os seus detalhes, e recolocar o Rembrandt na parede para seu orgulho e o deleite dos outros.
No outro caso, se o homem não perguntar e a mulher não contar, o fato de os seios perfeitos não serem obras de Deus num momento especialmente inspirado nunca afetará seu relacionamento. A maioria das mulheres que aperfeiçoam os seios não tem problema em ostentar o silicone, mas se elas decidirem, como o dono do hipotético Rembrandt, sustentar que seus seios além de perfeitos são autênticos, não estarão necessariamente usando-os para espantar ou seduzir, ou apenas se sentir bem, de forma desonesta. O que é, afinal, “autenticidade”? Um famoso forjador do século XIX reagiu ao ser comparado com forjadores menores, dizendo que só as suas eram falsificações autênticas. Tudo é subjetivo. E quem disse que as mulheres fazem seios perfeitos para os homens?
Não é o assunto mais, digamos, palpitante do momento, mas os seios falsos têm significados culturais e até filosóficos que transcendem o meramente reflexivo enquanto divagação psicossociológica per se.
Recentemente uma celebridade reagiu à ideia de que seus seios não eram seus dizendo que tinha pagado por eles, e, portanto, eles eram mais seus do que os originais. Certíssimo. Com a disposição de não apenas fazer seios novos, mas ostentá-los, e a sua artificialidade, as mulheres (de todos os sexos) resolveram a velha questão, que vinha desde Santo Agostinho, entre Ser um corpo e Ter um corpo. O corpo passou a ser definitivamente uma posse: você não apenas o tem como pode mostrar a fatura.
Seios cirurgicamente aumentados simbolizam a rápida eliminação da distância entre o Homem (aqui representado pela Mulher) e a Técnica, pois o implante de silicone nada mais é do que a interiorização do enchimento que antes elas usavam no sutiã — a Técnica, no caso, sendo a antiga de nos enganar. Este processo de interiorização culminará com a implantação de microchips no cérebro humano e a eventual substituição do cérebro por um processador eletrônico que transformará cada ser humano no seu próprio computador, com o mouse localizado, presumivelmente, no umbigo. Os seios artificialmente alentados estão, por assim dizer, na frente da revolução tecnológica. E como, ao contrário do enchimento nos sutiãs, eles são francamente assumidos, também contribuem para diminuir um pouco da hipocrisia nas relações humanas. Hoje, ao verem desfilar um par de seios perfeitos, as mulheres não mais cochicham, especulando se são verdadeiros ou não. Aplaudem abertamente e gritam “O autor, o autor!”, para procurá-lo também.
E na medida em que podem escolher os seios (ou o nariz, a boca, a bunda etc.) que usarão, as pessoas tomam as rédeas da própria vida e determinam seu próprio futuro — principalmente numa sociedade em que cada vez mais, figurativamente ou não, peito é destino.
Filosofia, na linha de “se uma palmeira cai numa ilha deserta, longe de qualquer ouvido, ela faz barulho?”. Ou “Se ninguém, salvo o falsificador, sabe que um Rembrandt é falso, ele é falso?”. Se todos sabem que os seios admirados são falsos, e eles são admirados como falsificações, o conceito de autenticidade não está banido do mundo, inclusive para a avaliação de Rembrandts?
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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