Os
seios artificialmente aumentados ou remodelados trazem para o mundo
das relações humanas, ou ao mundo do sangue quente, uma questão
antes restrita às artes e antiguidades, ou ao mundo das coisas
caras: o valor exato da autenticidade. No que seios de silicone se
parecem com um Rembrandt falso? A resposta quem tem que dar é o –
por falta de termo melhor – consumidor, dos seios ou do quadro. Um
homem atraído pelos seios perfeitos de uma mulher e o comprador de
um caro Rembrandt só têm uma coisa a fazer ao descobrir que os
dois, ou os três, no caso, são falsos. Mas o quê?
Digamos
que o Rembrandt seja uma falsificação irretocável. Se ninguém se
preocupasse em comprovar sua autenticidade minuciosamente, a
falsificação nunca seria descoberta. Mas seu comprador, seguindo,
talvez, o mesmo raciocínio do admirador dos seios (“Isto é bom
demais para ser verdade, não acredito que eu esteja com tudo isto
nas minhas mãos!”), decide investigar. E descobre que um
determinado componente de um determinado pigmento de uma determinada
pincelada não podia ter sido usado em 1640, a suposta data do
quadro, porque foi inventado depois. Foi, aliás, inventado no ano
passado. Por um mínimo detalhe o Rembrandt deixará de ser um
Rembrandt e perderá todo o seu valor – se, claro, seu dono revelar
o mínimo detalhe. Ele pode muito bem decidir que as coisas são o
que parecem ser e não a soma dos seus detalhes, ou pelo menos de
todos os seus detalhes, e recolocar o Rembrandt na parede para seu
orgulho e o deleite dos outros.
No
outro caso, se o homem não perguntar e a mulher não contar, o fato
de os seios perfeitos não serem obras de Deus num momento
especialmente inspirado nunca afetará seu relacionamento. A maioria
das mulheres que aperfeiçoam os seios não tem problema em ostentar
o silicone, mas se elas decidirem, como o dono do hipotético
Rembrandt, sustentar que seus seios além de perfeitos são
autênticos, não estarão necessariamente usando-os para espantar ou
seduzir, ou apenas se sentir bem, de forma desonesta. O que é,
afinal, “autenticidade”? Um famoso forjador do século XIX reagiu
ao ser comparado com forjadores menores, dizendo que só as suas eram
falsificações autênticas. Tudo é subjetivo. E quem disse que as
mulheres fazem seios perfeitos para os homens?
Não
é o assunto mais, digamos, palpitante do momento, mas os seios
falsos têm significados culturais e até filosóficos que
transcendem o meramente reflexivo enquanto divagação
psicossociológica per se.
Recentemente
uma celebridade reagiu à ideia de que seus seios não eram seus
dizendo que tinha pagado por eles, e, portanto, eles eram mais seus
do que os originais. Certíssimo. Com a disposição de não apenas
fazer seios novos, mas ostentá-los, e a sua artificialidade, as
mulheres (de todos os sexos) resolveram a velha questão, que vinha
desde Santo Agostinho, entre Ser um corpo e Ter um corpo. O corpo
passou a ser definitivamente uma posse: você não apenas o tem como
pode mostrar a fatura.
Seios
cirurgicamente aumentados simbolizam a rápida eliminação da
distância entre o Homem (aqui representado pela Mulher) e a Técnica,
pois o implante de silicone nada mais é do que a interiorização do
enchimento que antes elas usavam no sutiã — a Técnica, no caso,
sendo a antiga de nos enganar. Este processo de interiorização
culminará com a implantação de microchips no cérebro humano e a
eventual substituição do cérebro por um processador eletrônico
que transformará cada ser humano no seu próprio computador, com o
mouse localizado, presumivelmente, no umbigo. Os seios
artificialmente alentados estão, por assim dizer, na frente da
revolução tecnológica. E como, ao contrário do enchimento nos
sutiãs, eles são francamente assumidos, também contribuem para
diminuir um pouco da hipocrisia nas relações humanas. Hoje, ao
verem desfilar um par de seios perfeitos, as mulheres não mais
cochicham, especulando se são verdadeiros ou não. Aplaudem
abertamente e gritam “O autor, o autor!”, para procurá-lo
também.
E
na medida em que podem escolher os seios (ou o nariz, a boca, a bunda
etc.) que usarão, as pessoas tomam as rédeas da própria vida e
determinam seu próprio futuro — principalmente numa sociedade em
que cada vez mais, figurativamente ou não, peito é destino.
Filosofia,
na linha de “se uma palmeira cai numa ilha deserta, longe de
qualquer ouvido, ela faz barulho?”. Ou “Se ninguém, salvo o
falsificador, sabe que um Rembrandt é falso, ele é falso?”. Se
todos sabem que os seios admirados são falsos, e eles são admirados
como falsificações, o conceito de autenticidade não está banido
do mundo, inclusive para a avaliação de Rembrandts?
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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