domingo, 3 de maio de 2020

Da virtude dadivosa

Nesse ponto, Zaratustra silenciou por um momento e olhou para seus discípulos com amor. Então prosseguiu falando — e sua voz estava mudada:
Permanecei fiéis à terra, irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor dadivoso e vosso conhecimento sirvam ao sentido da terra! Assim vos peço e imploro.
Não os deixeis voar para longe do que é terreno e bater com as asas nas paredes eternas! Oh, sempre houve tanta virtude extraviada!
Trazei, como eu, a virtude extraviada de volta para a terra — sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à terra seu sentido — um sentido humano!
Uma centena de vezes, até agora, extraviaram-se e enganaram-se tanto o espírito como a virtude. Ah, em nosso corpo ainda vive todo esse delírio e engano: aí tornou-se ele corpo e vontade.
Uma centena de vezes, até agora, extraviaram-se e enganaram-se tanto o espírito como a virtude. Sim, uma tentativa foi o homem. Ah, quanta ignorância e quanto erro se encarnaram em nós!
Não apenas a razão de milênios — também a sua loucura irrompe em nós. É perigoso ser herdeiro.
Ainda lutamos palmo a palmo contra o gigante Acaso, e sobre toda a humanidade reinou até agora o absurdo, o sem-sentido.
Que o vosso espírito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra, irmãos: e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por vós! Por isso deveis ser combatentes! Para isso deveis ser criadores!
Sabendo purifica-se o corpo; tentando com saber ele se eleva; para o homem do conhecimento, todos os instintos se tornam sagrados; para o elevado, a alma se torna alegre.
Médico, ajuda a ti mesmo: assim ajudarás também teu doente. 42 Seja essa a tua melhor ajuda, que ele veja com seus olhos aquele que cura a si próprio.
Há mil veredas que não foram percorridas; mil saúdes e ilhas recônditas da vida. Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra humana.
Velai e escutai, ó solitários! Do futuro chegam ventos com misteriosas batidas de asas; e boas-novas alcançam ouvidos delicados.
Vós, solitários de hoje, vós, que viveis à parte, deveis um dia formar um povo: de vós, que escolhestes a vós mesmos, deverá nascer um povo eleito: — e dele o super-homem.
Em verdade, um local de cura ainda se tornará a terra! E já a envolve um novo aroma, um aroma que traz saúde — e uma nova esperança!
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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