quinta-feira, 7 de maio de 2020

A kolba

Para Jalil e suas esposas, eu era uma erva-de-passarinho. Uma ciganinha. Nós duas éramos. E olhe que você ainda nem tinha nascido.
O que é uma ciganinha? — indagou Mariam.
E uma planta — disse Nana. — Daquelas que a gente arranca e joga fora.
Mariam fez cara feia por dentro. Jalil não a tratava como uma planta assim. Nunca. Mas a menina achou que era melhor ficar calada.
Só que, à diferença dessas ervas daninhas, eu tinha de ser replantada, entende, e tinha que receber água e comida. Por sua causa. Foi isso que ele combinou com a família — disse Nana, acrescentando que tinha se recusado a ficar morando em Herat. — Para quê? Para vê-lo passar de carro pela cidade, com suas esposas kinchini?
Disse ainda que tampouco quis morar na casa de seu pai, na aldeia de Gul Daman, que ficava no alto de uma colina, a dois quilômetros ao norte de Herat. Preferiu ir viver num lugar afastado, distante, onde os vizinhos não ficariam olhando para a sua barriga, apontando para ela na rua, rindo, ou, o que seria ainda pior, cercando-a de uma gentileza que não era sincera.
E acredite — acrescentou Nana —, o seu pai ficou muito aliviado por me ter bem longe.
Foi a decisão perfeita para ele.
Foi Muhsin, o filho mais velho de Jalil com sua primeira esposa, Khadija, quem sugeriu aquela clareira que ficava nos arredores de Gul Daman. Para se chegar até lá, era preciso pegar uma estradinha de terra que subia morro acima saindo da estrada que ligava Herat ao vilarejo. A tal estradinha era bordejada de um capim alto, pontilhado de flores brancas e amarelas. Ia serpenteando pela encosta da colina até desembocar num terreno plano recoberto de choupos, faias e tufos de arbustos silvestres. Lá de cima, avistavam-se as pás enferrujadas do moinho de vento de Gul Daman, à esquerda, e, à direita, estendia-se a cidade de Herat. O caminho ia dar pertinho de um riacho bem largo e repleto de trutas que descia das montanhas Safid-koh ao redor de Gul Daman. Cerca de duzentos metros acima, havia um pequeno bosque de salgueiros-chorões e, bem no meio, à sombra das árvores, ficava a clareira.
Jalil foi até lá para ver o local. Quando voltou, disse Nana, parecia um carcereiro se vangloriando das paredes impecáveis e do piso reluzente da sua cadeia.
E foi assim que o seu pai construiu essa toca de ratos para nós.
Quando tinha 15 anos, Nana quase se casou. O pretendente era um rapaz de Shindand. Um jovem vendedor de periquitos. Foi ela própria quem contou essa história a Mariam e, embora a mãe parecesse menosprezar o episódio, a menina bem sabia, pelo brilho melancólico que via em seus olhos, que ela tinha sido feliz. Pela única vez na vida, talvez, nos dias que antecederam esse tal casamento, Nana tinha sido genuinamente feliz.
Quando a mãe lhe contou essa história, Mariam se sentou no seu colo e ficou imaginando Nana sendo preparada para se vestir de noiva. Pode vê-la a cavalo, sorrindo timidamente sob o véu de seu traje verde, as palmas das mãos pintadas com hena vermelha, o repartido do cabelo enfeitado com purpurina prateada, as tranças impregnadas de seiva de árvore. Viu também músicos tocando a flauta shahnai e os tambores dohol, as crianças gritando e acompanhando o cortejo pelas ruas.
Só que, uma semana antes da data marcada, um jinn penetrou no corpo de Nana. Ninguém precisava descrever para Mariam essa parte da historia, pois a menina já havia testemunhado a cena com os próprios olhos, inúmeras vezes: Nana caindo no chão de repente, com o corpo todo se enrijecendo, os olhos se revirando, os braços e as pernas tremendo, como se algo a estivesse sufocando por dentro, e, nos cantos da boca, aquela espuma branca, por vezes rosada de sangue. Depois, vinha aquele torpor, aquele desnorteamento assustador, aqueles murmúrios incoerentes.
Quando a notícia chegou a Shindand, a família do vendedor de periquitos cancelou o casamento. “Eles ficaram apavorados”, como disse a própria Nana.
O vestido de noiva foi enfurnado em algum lugar. E, desde então, não apareceu mais nenhum pretendente.
Na clareira, Jalil e dois de seus filhos, Farhad e Muhsin, construíram a pequena kolba onde Mariam viveria os primeiros 15 anos de sua vida. O casebre era feito de tijolos rústicos e recoberto de barro com punhados de palha. Lá dentro, havia dois catres, uma mesa de madeira, duas cadeiras de encosto reto, uma janela e algumas prateleiras pregadas na parede, onde Nana guardava os potes de argila e o seu tão amado jogo de porcelana chinesa. Jalil instalou ali um fogareiro de ferro para o inverno e fez uma cerca de toras de madeira nos fundos da cabana. Pôs ainda um tandoor no quintal, para elas assarem o pão, e fez um galinheiro com uma cerca. Comprou uns poucos carneiros e construiu um cocho para os animais. Mandou Farhad e Muhsin cavarem um buraco bem fundo a uns duzentos metros do círculo de salgueiros, e construiu uma latrina no local.
Jalil podia ter contratado operários para a construção da kolba, observou Nana, mas não contratou.
Para ele, aquilo era uma espécie de penitência — disse ela.
Pelo que Nana dizia, no dia em que Mariam nasceu não apareceu ninguém para ajudar. Foi num daqueles dias úmidos e nublados da primavera de 1959, no vigésimo sexto dos quarenta anos, em sua maioria tranquilos, do reinado de Zahir Shah. Jalil não se deu o trabalho de chamar um médico, ou sequer uma parteira, acrescentou ela, embora soubesse que o jinn poderia penetrar no seu corpo e provocar uma daquelas convulsões no momento do parto. Nana ficou ali sozinha, deitada no chão da kolba, com uma faca ao seu lado e o corpo banhado em suor.
Quando a dor piorava, eu mordia um travesseiro e gritava até ficar rouca. Mesmo assim, não aparecia ninguém para enxugar o meu rosto ou me dar um gole de água. E você, Mariam jo parecia não ter pressa alguma. Por quase dois dias, você me fez ficar ali deitada, naquele chão frio e duro. Não comi nem bebi nada. Só fazia força e rezava para você sair.
Sinto muito, Nana.
Cortei o cordão que nos ligava. Foi para isso que peguei a faca.
Sinto muito, Nana.
Nesse momento, Nana sempre esboçava um sorriso sofrido, e Mariam não sabia ao certo se aquilo significava uma recriminação persistente ou um perdão relutante. Não passava pela cabeça da menina como era injusto pedir desculpas pela maneira como nasceu.
Quando isso finalmente aconteceu, lá por volta dos seus dez anos, Mariam deixou de acreditar naquela história do seu nascimento. Acreditava sim na versão de Jalil que lhe disse que, mesmo estando longe, tinha conseguido mandar Nana para um hospital em Herat, onde ela seria atendida por médicos e teria uma cama limpa e decente num quarto bem iluminado. Jalil abanou a cabeça tristemente quando a garota mencionou o detalhe da faca.
Mariam passou também a duvidar de que tivesse feito a mãe sofrer por dois dias seguidos.
Pelo que me contaram o parto durou, ao todo, menos de uma hora — disse Jalil. — Você sempre foi uma boa filha, Mariam jo. Mesmo na hora de nascer foi uma boa filha.
Ele nem estava aqui! — esbravejou Nana. — Estava em Takht-e-safar, andando a cavalo com seus amiguinhos queridos.
Quando lhe disseram que era uma menina, acrescentou Nana, Jalil deu de ombros, continuou a escovar a crina do cavalo e ficou mais duas semanas em Takht-e-safar.
Na verdade, ele sequer a pegou no colo até que você tivesse completado um mês. E, mesmo assim, apenas a olhou, comentou que você tinha um rosto comprido e a devolveu para mim.
Mariam acabou desacreditando também dessa parte da história. Jalil admitia que estava cavalgando em Takht-e-safar, mas, quando chegou a notícia, não se limitou a dar de ombros. Pulou no cavalo e voltou para Herat. Embalou a filha nos braços, passou o dedo por aquelas sobrancelhas ralas, cantarolou uma cantiga de ninar. Mariam não conseguia imaginar Jalil dizendo que ela tinha um rosto comprido, embora fosse verdade.
Nana disse que foi ela que escolheu o nome Mariam, porque era o de sua mãe.
Quem escolheu fui eu — disse Jalil —, porque, na nossa língua, esse é o nome de uma linda flor.
A sua favorita? — indagou a menina.
Bom, uma delas — respondeu ele, sorrindo.
Khaled Hosseini, in A Cidade do Sol

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