segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Tarde delirante no Pacaembu

Nada parece incrível quando o assunto é política ou religião. Faz algum tempo, li no Estado de S. Paulo uma reportagem sobre um crente mineiro que havia comprado por 15 mil reais um diploma assinado por Jesus Cristo. A fotografia do diploma ilustrava o texto da reportagem.
Incrédulo, vi a assinatura do filho de Deus. Consta que não tinha firma reconhecida num cartório de Minas.
Não sei o que diriam o Santo Pontífice e seu enorme rebanho sobre essa ignominiosa blasfêmia. Sei, pela reportagem, o que disse a mãe do comprador do diploma: “Vou processar o pastor e sua igreja”.
O filho diplomado (e ludibriado) levou um carão de sua mãe. Crente ou agnóstica, a verdade é que essa senhora ficou endividada até a medula. Ela, que não era uma mulher rica, agora é mais uma mãe mineira à beira da pobreza.
Minas Gerais de assombros e blasfêmias… Certa vez, ao entrar numa igrejinha de São João del-Rey vi, lado a lado, uma prostituta e um travesti, ambos ajoelhados, orando por algum santo ou por Deus e seu filho, que não desprezam os desvalidos deste mundo.
Uma devoção verdadeira, uma cena que emanava uma aura sublime e que podia ter acontecido em outra igreja católica do planeta. Mas aconteceu no fim de uma tarde de 2003, numa cidade de Minas.
Os dois fiéis saíram juntos da igreja, talvez penitenciados. Tive vontade de perguntar a eles o que tinham rezado, ou o que tinham pedido a Deus ou a algum santo. Não perguntei nada: a noite de São João os esperava.
E agora me lembro de uma das primeiras reportagens que escrevi para uma revista de São Paulo. Foi uma prova de fogo. O editor Nirlando Beirão (só podia ser um mineiro) pediu para que eu cobrisse um evento no estádio do Pacaembu. Imaginei um jogo de futebol, numa época em que não perdia clássicos disputados por Santos e Flamengo.
Não é futebol”, disse Nirlando. “É um jogo mais perigoso.”
Então em 1978, ou 79, assisti a um espetáculo inesquecível: o grande culto de uma igreja pentecostal, presidida por um grão-pastor, um bispo que se dirigia a milhares de fiéis magnetizados pelo dom do orador, cujo discurso em tom apocalíptico era enfatizado por gestos teatrais. Mais que teatrais: tétricos. Foi um delírio, caro leitor. Nenhuma assembleia de estudantes ou operários era comparável ao espetáculo a que assisti.
Vi uma multidão de pobres e miseráveis brasileiros jogar moedas e cédulas em sacos de plástico pretos; vi pessoas quase cegas lançarem no gramado os óculos que até então usavam; vi enfermos que se consideravam curados com as palavras do bispo; vi crianças agitadas, gritando com seus pais louvações a Jesus, todas em uníssono, como se estivessem preparadas para uma guerra, ou para uma cruzada, e me lembrei de um livrinho que marcaria minha vida de leitor: A cruzada das crianças.
Todas aquelas crianças brasileiras, paupérrimas, repetiam as palavras de seus pais, que, por sua vez, repetiam as palavras do grão-pastor. Naquele ano não era muito comum ouvir gritos de uma multidão que quer exorcizar as artimanhas do demônio.
Que voz poderosa, a do grão-pastor! Voz máscula, ameaçadora… E patética em sua contundência enganadora.
Alguma coisa estava surgindo durante o crepúsculo no Pacaembu, algo terrível e inexorável, uma catarse coletiva da miséria, da loucura. Talvez seja mais correto dizer: da nossa miséria ancestral, histórica, irremediável. Naquela tarde, pensei que o estádio tivesse se transformado no maior manicômio do mundo, uma metonímia do Brasil e desta pobre América.
Saí deprimido do Pacaembu, nem sei como consegui escrever a reportagem, sei que a escrevi com um pouco de humor, que não nos redime, mas nos ajuda a viver. O humor como gesto de defesa, o humor como uma forma de sobrevivência em tempos obscuros.
Trinta anos depois, um humilde zelador mineiro compra um diploma assinado por Jesus Cristo. Não sei quando tudo isso terminará. Talvez não termine nunca e seja apenas o começo de um tempo ainda mais sombrio.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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