Nada
parece incrível quando o assunto é política ou religião. Faz
algum tempo, li no Estado de S. Paulo uma reportagem sobre um
crente mineiro que havia comprado por 15 mil reais um diploma
assinado por Jesus Cristo. A fotografia do diploma ilustrava o texto
da reportagem.
Incrédulo,
vi a assinatura do filho de Deus. Consta que não tinha firma
reconhecida num cartório de Minas.
Não
sei o que diriam o Santo Pontífice e seu enorme rebanho sobre essa
ignominiosa blasfêmia. Sei, pela reportagem, o que disse a mãe do
comprador do diploma: “Vou processar o pastor e sua igreja”.
O
filho diplomado (e ludibriado) levou um carão de sua mãe. Crente ou
agnóstica, a verdade é que essa senhora ficou endividada até a
medula. Ela, que não era uma mulher rica, agora é mais uma mãe
mineira à beira da pobreza.
Minas
Gerais de assombros e blasfêmias… Certa vez, ao entrar numa
igrejinha de São João del-Rey vi, lado a lado, uma prostituta e um
travesti, ambos ajoelhados, orando por algum santo ou por Deus e seu
filho, que não desprezam os desvalidos deste mundo.
Uma
devoção verdadeira, uma cena que emanava uma aura sublime e que
podia ter acontecido em outra igreja católica do planeta. Mas
aconteceu no fim de uma tarde de 2003, numa cidade de Minas.
Os
dois fiéis saíram juntos da igreja, talvez penitenciados. Tive
vontade de perguntar a eles o que tinham rezado, ou o que tinham
pedido a Deus ou a algum santo. Não perguntei nada: a noite de São
João os esperava.
E
agora me lembro de uma das primeiras reportagens que escrevi para uma
revista de São Paulo. Foi uma prova de fogo. O editor Nirlando
Beirão (só podia ser um mineiro) pediu para que eu cobrisse um
evento no estádio do Pacaembu. Imaginei um jogo de futebol, numa
época em que não perdia clássicos disputados por Santos e
Flamengo.
“Não
é futebol”, disse Nirlando. “É um jogo mais perigoso.”
Então
em 1978, ou 79, assisti a um espetáculo inesquecível: o grande
culto de uma igreja pentecostal, presidida por um grão-pastor, um
bispo que se dirigia a milhares de fiéis magnetizados pelo dom do
orador, cujo discurso em tom apocalíptico era enfatizado por gestos
teatrais. Mais que teatrais: tétricos. Foi um delírio, caro leitor.
Nenhuma assembleia de estudantes ou operários era comparável ao
espetáculo a que assisti.
Vi
uma multidão de pobres e miseráveis brasileiros jogar moedas e
cédulas em sacos de plástico pretos; vi pessoas quase cegas
lançarem no gramado os óculos que até então usavam; vi enfermos
que se consideravam curados com as palavras do bispo; vi crianças
agitadas, gritando com seus pais louvações a Jesus, todas em
uníssono, como se estivessem preparadas para uma guerra, ou para uma
cruzada, e me lembrei de um livrinho que marcaria minha vida de
leitor: A cruzada das crianças.
Todas
aquelas crianças brasileiras, paupérrimas, repetiam as palavras de
seus pais, que, por sua vez, repetiam as palavras do grão-pastor.
Naquele ano não era muito comum ouvir gritos de uma multidão que
quer exorcizar as artimanhas do demônio.
Que
voz poderosa, a do grão-pastor! Voz máscula, ameaçadora… E
patética em sua contundência enganadora.
Alguma
coisa estava surgindo durante o crepúsculo no Pacaembu, algo
terrível e inexorável, uma catarse coletiva da miséria, da
loucura. Talvez seja mais correto dizer: da nossa miséria ancestral,
histórica, irremediável. Naquela tarde, pensei que o estádio
tivesse se transformado no maior manicômio do mundo, uma metonímia
do Brasil e desta pobre América.
Saí
deprimido do Pacaembu, nem sei como consegui escrever a reportagem,
sei que a escrevi com um pouco de humor, que não nos redime, mas nos
ajuda a viver. O humor como gesto de defesa, o humor como uma forma
de sobrevivência em tempos obscuros.
Trinta
anos depois, um humilde zelador mineiro compra um diploma assinado
por Jesus Cristo. Não sei quando tudo isso terminará. Talvez não
termine nunca e seja apenas o começo de um tempo ainda mais sombrio.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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