domingo, 13 de outubro de 2024

Seis canivetes para abrir uma baleia

parte 1

desde que me conheço por lúcia, tenho o hábito quase obsessivo de coletar coisas. cheguei a ponto de colecionar, inclusive, todos os nomes lúcia que lia por aí em jornais, revistas, livros e também em adesivos colados em telefones públicos da cidade. lotei uma caixa de sapato com diferentes lúcias: azuis, datilografadas, helvéticas, pequenas. quando acho uma pedrinha de formato surpreendente, quase sempre, guardo no bolso. se encontro um papel de bala colorido no chão, desses de apenas duas cores e com asinhas de amarrar torcendo, pego pra mim. imagino que muita gente deva colocar em questão a minha sanidade – e minha higiene, suponho –, mas posso dizer que se trata de algo que foge em absoluto do meu controle. é algo maior do que eu e contra o qual não posso lutar.
se encontro uma ponta de lápis roxa perdida no meio do tapete, recolho porque penso uma ponta de lápis roxo no meio do tapete. como é possível abandonar uma ponta de lápis roxo no meio do tapete? não, não é possível. pego e guardo num minipotinho de vidro ou num dedal. já arquivei bituca marcada com batom carmim, nota fiscal da farmácia referente à compra de um saco de algodão e uma solução oftalmológica a 0,5%, já guardei lasquinha de azulejo hidráulico amarelo cádmio. já embrulhei casca de tangerina recém-descascada. rolha de vinho branco, saquinho de supermercado, aquele plastiquinho transparente em forma de martelo que prende etiqueta em roupa.
costumo recolher as coisas pra depois, quando estou completamente só do mundo, poder admirar tudo sem que me julguem estranha demais. eu e as variações de tampinhas de caneta bic (mordiscadas ou não). eu e as latinhas de metal de bala de hortelã. guardo. guardo tudo mesmo. tudo numa estante comprida e cheia de compartimentos e divisórias que mandei fazer especialmente para esse fim, o de catalogar. as que não se enquadram na estante logo acham lugar nas paredes do corredor ou próximas à janela. organizo as coisas por critérios que nascem a partir da proximidade das coisas às coisas. por exemplo: um abridor de latas pode muito bem estar próximo a um cavalinho de porcelana lilás pelo critério elegância, porém ele também pode estar próximo a um livro de joão cabral de melo neto pelo grau de cortância. isso significa que esses objetos estão em constante movimento, pois todo elemento novo chegante modifica intimamente os demais elementos anteriores a ele de modo que sou obrigada a, entropicamente, organizá-los e reorganizá-los indefinidamente para tentar manter o equilíbrio do conjunto na casa.
outra regra é que não faço distinção dos objetos por hierarquia para escolhê-los. não uso classificações como caros ou vagabundos. eternos ou perecíveis. apenas os escolho pela beleza que enxergo no instante primeiro em que me deparo com eles. se me sinto expandir em uma felicidade estranha e sem propósito com esse encontro, com esse perfume da casca de tangerina solta sobre o concreto quente da calçada, aí então o que faço é aceitar a beleza efêmera deflagrada pela coisa e parar para admirá-la profundamente.

Parte 2

o fato é que duns tempos pra cá, também passei a colecionar palavras [além das lúcias da caixinha de papelão]. e fico atenta a qualquer palavra desconhecida que se apareça pra mim. se me surge uma nova cujo som, a forma ou o significado são desconhecidos, fico tentando presumir seus significados sem recorrer ao dicionário, mas busco relacioná-las com os objetos de minha coleção e o espaço da casa. as últimas dez coletas: gálbano, lúteo, roel, encóspias, imbé, hioscíamo, áleo, púmice, serrim, sial: cada palavra recebe um tratamento próprio de acordo com sua natureza original, sua personalidade.
a palavra púmice, por exemplo, é palavra destinada a grandes altitudes, feita para habitats gelados e solitaríssimos. aguenta firme as intempéries mais rigorosas da natureza e por isso púmice foi toda esculpida em ossos de búfalo. guardo púmice no freezer vazio.
áleo já é palavra quente que reluz ao sol e à luz do abajur no fim do dia. gravei áleo do lado de fora dum arco dourado [mais ou menos como uma aliança ao contrário, só que do tamanho dum prato de sobremesa] e pendurei-a num cordão transparente que desce do lustre em direção ao ar. áleo requer suspensão e sutis movimentos circulares. precisa girar para exercer sua potência áurea. eu, sem escolhas, respeito sua natureza quase que real de existir.
hioscíamo eu armazenei num vidrinho de perfume cor de âmbar na forma de ameixa. o pequeno vidrinho está dentro duma caixa de madeira forrada com veludo púrpura e fecho de metal dourado. hioscíamo é coisa rara, licor secreto e elixir exato para apenas uma ou duas vezes na vida, no máximo. hioscíamo é uma espécie de absinto doce para o corpo e o espírito – absorve tanto pra dentro quanto pra fora. está fundido em prata, mergulhado em silêncio profundo no potinho-ameixa.
para a palavra lúteo eu reservei o espaço do espelho do banheiro. escrevi lúteo à tinta [negra, encerada e viscosa] na altura do espelho que atinge o meu próprio peito, meu coração. lúteo, repito diariamente. lúteo-dureza. lúteo-batimento cardíaco. lúteo faz lembrar das coisas mortas, mas que ainda pulsam como não estivessem.
para contrapor lúteogálbano no canto esquerdo da sala, ao lado do sofá de couro. gálbano é comprido e elegante. e sóbrio feito uma escultura do giacometti. a palavra, entalhada em mogno nobre na porta retangular de um instrumento musical oriental chamado lohah, funciona como uma caixa acústica. utilizo gálbano para meditar sobre questões do tempo-espaço, do afastamento das galáxias ou para me concentrar em fazer os cálculos de contas de telefone, luz, gás, etc.
para a palavra imbé, mãe maior, feminino corpo, reservei uma bacia de metal prateada com água mineral pura. imbé flutua na bacia como fosse uma flor de lótus jovem ou uma ninfeia. feita de contas azuis e amarelas de murano, a palavra imbé exala delicadeza e força. cogitei, inclusive, chamá-la de imbé oxum.
roel é palavra que está completamente enferrujada sobre o piano de cauda. oxidou após receber, pouco a pouco, as lágrimas expelidas diante de coisas ou muito violentas ou muito belas – como sinfonias ou guerras civis ou ambas juntas. roel está situada dentro duma espécie de cinzeiro de lágrimas fundo e gasto e funciona como um cemitério de palavras. com o tempo provocou um pequeno afundamento sobre a superfície do instrumento.
sendo o termo encóspias um termo plural e por perceber nele um potencial para fragmentação e espalhamento, decidi que faria diferente com este caso. desmembrei todas as suas letras e espalhei-as pelos cômodos como se espalhasse incenso. quartos, sala, cozinha, varanda, lavabo, área de serviço ficaram empesteados da palavra. achei que pulverizada, assim, ela ficou mais suave e reverberou de modo menos previsível.
as últimas são sial e serrim, que são palavras-irmãs feito dia/noite ou firmamento/cordilheira. a primeira, aérea, vocálica, resplandece por si só dado o nascer do dia e portanto está locada no parapeito da varanda, desenhada à mão como se tivesse a capacidade de abrir o dia, de rasgar o que é imenso e insustentável. serrim, por sua vez, está logo abaixo, esteando o peso do ar trazido por sial. serrim tem essências de jardim horizontal e onduloso. distribuí serrim ao longo de uma jardineira com terra fofa, escrevendo suas letras com micropeônias rosadas. juntas, elas formam um perfeito rebatimento de um possível poema sobre o impermanente x permanente.

Ana Estaregui, em Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura [2016]

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