sábado, 12 de outubro de 2024

Resposta

Meu caro Liberato,

Em resposta à sua carta e aos poemas que me enviou, agradeço antes de tudo a sua confissão de ser meu freguês de caderno. Diz-me você que se sente muito a gosto em poetar de mão livre e coração aberto, tanto mais que a poesia, muito antes da época em que o meu jovem chegou a este mundo, “já estava liberta de peias absurdas como o metro, a rima, etc.”. Por isso mesmo é que resolvi chamá-lo de Liberato nesta resposta, embora o seu nome seja muito outro. Mas não é bem assim, Liberato...
O modernismo, ou melhor, o verso-librismo libertou o verso, é verdade, mas não libertou o poeta.
Havia, antes, uma arte poética cujos rudimentos estavam ao alcance de todos e que, se não ensinava a fazer um poema perfeito, ao menos permitia fazê-lo sem imperfeições.
Agora, qualquer poema é uma aventura, boa ou má. O poema livre, como o seu nome o diz, não é obrigado a ter versos de medida clássica, muito embora os possa ter, visto que um bom verso clássico é tão natural ou expressivo como outro qualquer. Mas, se as linhas do poema que você estiver fazendo “livremente” não se complementarem, se o todo não apresentar uma misteriosa unidade, o poema se desagrega. Tudo tem de estar interdependente, como num sistema planetário. O poema livre é um jogo de equilíbrio, prestes a desabar ao mínimo descuido do construtor.
Quanto à armação de um poema em versos regulares, é coisa tão segura como empilhar paralelepípedos.
Também os parnasianos precisavam saber equilibrar-se, é claro, mas trabalhavam com rede de segurança...
Desconfio que você acaba de sofrer uma decepção a meu respeito, pois não lhe apresento nenhuma regra, nem sequer um truque. Não há. Ou, por outra, há. Mas isso depende do livre esforço de cada um. O verdadeiro criador é como esses presidiários que forjam, por si mesmos, as próprias armas.
Vejo, também, que só tenho raciocinado por imagens... coisa suspeita a um espírito lógico — mas acaso não estou falando com um poeta?
Em todo caso, meu caro Liberato, você estava candidamente enganado em julgar aí consigo que não se precisa suar para fazer um poema livre: precisa-se suar muito mais, por experiência o digo.
E...

Mário Quintana, em Caderno H

Nenhum comentário:

Postar um comentário