segunda-feira, 14 de outubro de 2024

AS RÃS | Drama em nove atos


Ato V

É noite, raios de luz incidem oblíquos, um brilho dourado toma o palco.

Num canto do templo de Niangniang, Chen Nariz e seu cachorro estão enrodilhados ao pé de uma grossa coluna. O cachorro pode ser representado por um homem. Diante de Chen está uma tigela de ferro muito surrada, dentro dela algumas notas e moedas. Duas muletas de madeira descansam ao lado.

Entra Chen Sobrancelha como um espectro, vestindo túnica preta, o rosto coberto por um véu negro.

Dois homens entram no palco logo atrás dela, vestidos da mesma forma.

CHEN S. (em prantos) Bebê… Meu bebê… Onde está… Meu bebê… Onde está…

Os dois homens de preto se aproximam de Sobrancelha.

CHEN S. Quem são vocês? Por que estão vestidos de preto e com o rosto coberto? Ah, entendi, também são vítimas daquele incêndio…
HOMEM DE PRETO A Sim, também somos vítimas.
CHEN S. (lúcida) Não, as vítimas do incêndio são todas mulheres, e vocês nitidamente são homens.
HOMEM DE PRETO B Somos vítimas de outro incêndio.
CHEN S. Coitados de vocês…
HOMEM DE PRETO A Pois é, somos uns coitados.
CHEN S. Devem estar muito angustiados…
HOMEM DE PRETO B Sim, muito angustiados…
CHEN S. Já fizeram o transplante de pele?
HOMEM DE PRETO A (sem entender) Que transplante de pele?
CHEN S. É tirar a pele boa do bumbum ou da coxa, de onde não foi queimado, e colocar na parte queimada. Não fizeram isso?
HOMEM DE PRETO B Sim, claro que fizemos. A pele do nosso bumbum foi totalmente retirada pelo médico para colocar no nosso rosto…
CHEN S. Fizeram o transplante de sobrancelha também?
HOMEM DE PRETO A Sim, sim.
CHEN S. Usaram os cabelos ou os pelos pubianos?
HOMEM DE PRETO B O que é isso? Pelo pubiano pode virar sobrancelha?
CHEN S. Se o couro cabeludo estiver todo queimado, só se podem aproveitar os pelos pubianos, melhor que nada, não acham? Se nem houver os pelos pubianos, vai ficar pelado mesmo, parecendo uma rã.
HOMEM DE PRETO A Sim, sim, sim. Não temos nenhum pelo, estamos lisos como rãs.
CHEN S. Já se olharam no espelho?
HOMEM DE PRETO B Nunca nos olhamos no espelho.
CHEN S. Nós, pacientes queimados, temos medo do espelho e também temos ódio dele.
HOMEM DE PRETO A Sim, quebramos qualquer espelho que encontrarmos pela frente.
CHEN S. Isso não adianta nada. Podem quebrar o espelho, mas vão quebrar também a vitrine de uma loja ou um chão de mármore? E a água que reflete a imagem e os olhos que nos olham? Quando nos veem, eles vão fugir gritando, as crianças podem até chorar de medo. Chamam a gente de fantasma, de demônio. Seus olhos são nossos espelhos, por isso não há como quebrar todos os espelhos. A melhor maneira é esconder nosso rosto.
HOMEM DE PRETO B Sim, sim, sim. Por isso cobrimos nosso rosto com um véu negro.
CHEN S. Já pensaram em se matar?
HOMEM DE PRETO B Nós…
CHEN S. Até onde sei, das irmãs que ficaram feridas, cinco já cometeram suicídio. Elas se mataram depois de se olhar no espelho…
HOMEM DE PRETO A Maldito espelho!
HOMEM DE PRETO B Por isso quebramos todos os espelhos que encontramos pela frente.
CHEN S. Eu queria me matar, mas depois desisti da ideia…
HOMEM DE PRETO A Viver é bom. Antes viver mal que morrer bem!
CHEN S. Desde que engravidei, desde que senti essa pequena vida pulsando na minha barriga, não queria mais morrer. Sentia que eu era um casulo feio, e que uma vida linda estava sendo gestada, e quando ela rompesse o casulo e saísse, eu me tornaria uma casca vazia.
HOMEM DE PRETO B Lindas palavras.
CHEN S. Depois que meu filho nasceu, não virei casca vazia nem morri. Eu me descobri ainda mais viva. Não sequei nem murchei, pelo contrário, ganhei mais viço. A pele seca no meu rosto parece mais fresca, meus seios estão cheios de leite… a reprodução me deu uma nova vida… Mas eles levaram meu filho…
HOMEM DE PRETO A Venha conosco, nós sabemos onde está seu filho.
CHEN S. Sabem onde meu filho está?
HOMEM DE PRETO B Estávamos à sua procura para ajudá-la a encontrar seu filho.
CHEN S. (animada) Graças a Deus, me levem logo, me levem para onde está meu filho…

Os dois homens de preto, segurando Sobrancelha, estão prestes a sair de cena.

O cachorro de Chen Nariz pula como uma flecha e agarra com a boca a perna esquerda do homem de preto A.

Chen Nariz se levanta de um salto, segurando as muletas, pula para a frente. Apoia o corpo em uma muleta, enquanto ataca o homem de preto B com a outra.

Os dois homens se livram do cachorro e de Chen Nariz, recuam para um lado do palco e retiram uma arma, como um punhal. Nariz fica ao lado do cachorro, Sobrancelha está na parte anterior do palco, formando assim um triângulo.

CHEN N. (rosnando) Larguem minha filha!
HOMEM DE PRETO A Seu velho desgraçado, bêbado, malandro, indigente. Como se atreve a dizer que é sua filha?
HOMEM DE PRETO B Se é mesmo sua filha, então chame-a, quero ver se ela responde.
CHEN N. Sobrancelha… Minha pobre filha…
CHEN S. (friamente) Deve ser um engano. Deve ter se enganado.
CHEN N. (pesaroso) Sobrancelha, sei que você odeia o papai. Devo a você, devo a sua irmã e a sua mãe. Fiz mal a vocês, sou um pecador, um inútil, um morto-vivo…
HOMEM DE PRETO A Isso é uma confissão? Tem alguma igreja aqui por perto?
HOMEM DE PRETO B Vá para o leste ao longo do rio, uns dez quilômetros, há uma igreja católica recém-restaurada.
CHEN N. Sobrancelha, sei que foi enganada por eles. Quem te enganou foi um velho amigo do papai, agora vou te ajudar a fazer justiça.
HOMEM DE PRETO A Seu velho, saia da frente.
HOMEM DE PRETO B Moça, venha conosco, garantimos que vai ver seu filho.

Chen Sobrancelha vai em direção aos dois homens. Nariz e o cachorro tentam impedi-la.

CHEN S. (com raiva) Quem é você? Por que me impedir? Quero achar meu filho, sabia? Ele nunca tomou do meu leite desde que nasceu. Se não amamentá-lo, vai morrer de fome, sabia?
CHEN N. Sobrancelha, você me odeia, entendo; você não quer me reconhecer como seu pai, de acordo. Mas não pode ir com eles. Eles venderam seu filho. Se você for com eles, vão jogar você no rio para se afogar, e depois, vão forjar uma cena de suicídio. Essas coisas, já fizeram mais de uma vez…
HOMEM DE PRETO A Seu velho, acho que você já viveu o bastante. Como pode nos caluniar desse jeito?
HOMEM DE PRETO B Que besteira é essa? Numa sociedade como a nossa, como podem existir essas maldades, homicídio, assassinato?
HOMEM DE PRETO A Deve ter assistido muito daqueles filmes em salinhas de vídeo.
HOMEM DE PRETO B E agora tem dessas alucinações.
HOMEM DE PRETO A Acha que socialismo é capitalismo.
HOMEM DE PRETO B E que gente de bem é bandido.
HOMEM DE PRETO A E que boas intenções são maldade.
CHEN N. Vocês são um monte de bosta que ninguém quer, são o pior lixo da sociedade…
HOMEM DE PRETO B Como se atreve a nos chamar de pior lixo da sociedade? Você é um porco que fuça a lixeira para achar comida. Sabe com quem está falando?
CHEN N. Claro que sei com quem estou falando. Conheço vocês e sei o que fizeram.
HOMEM DE PRETO A Acho que é hora de convidá-lo para tomar um banho frio no rio.
HOMEM DE PRETO B Amanhã de manhã, as pessoas que vierem queimar incenso e amarrar boneco vão dar falta do velho mendigo na entrada do templo junto com seu cachorro coxo.
HOMEM DE PRETO A Ninguém vai se importar com isso.

Os dois homens lutam com Nariz e seu cachorro. O cachorro morre e Nariz é derrubado no chão. Os dois tentam esfaquear Nariz, então Sobrancelha tira o véu, mostra o rosto hediondo e solta um grito demoníaco. Assustados, os dois homens deixam Nariz e fogem.

Cortina.

Mo Yan, em As rãs

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