quarta-feira, 16 de outubro de 2024

A leste do Éden | 2




[ 1 ]

Tenho que depender de rumores, de velhas fotografias, de histórias contadas e de lembranças nebulosas misturadas com fábula para tentar contar-lhes sobre os Hamilton. Não eram pessoas importantes e existem poucos registros a seu respeito, exceto as costumeiras certidões de nascimento, casamento, posse de terra e óbito.
O jovem Samuel Hamilton veio do norte da Irlanda e sua mulher também. Era filho de pequenos fazendeiros, nem ricos nem pobres, que viveram numa terra arrendada e numa casa de pedra durante muitas centenas de anos. Os Hamilton conseguiam ser notavelmente instruídos e versados; e, como ocorre geralmente naquele país verde, eram ligados e aparentados a pessoas muito importantes e a pessoas humildes, de modo que um primo podia ser um baronete e outro primo, um mendigo. E naturalmente descendiam dos antigos reis da Irlanda, como todo irlandês descende.
Por que Samuel deixou a casa de pedra e os verdes hectares dos seus ancestrais, eu não sei. Nunca foi um homem político, então é pouco provável que uma acusação de rebelião o tenha banido, e era escrupulosamente honesto, o que elimina a polícia como o principal agente da sua saída. Havia um murmúrio — não chegava a ser um rumor, era mais um sentimento não declarado — na minha família de que foi o amor que o fez partir, e não o amor da mulher que tinha desposado. Mas se foi um amor bem-sucedido demais, ou se ele partiu espicaçado por um amor não correspondido, eu não sei. Sempre preferíamos pensar que foi a primeira hipótese. Samuel tinha uma bela aparência, era encantador e alegre. É difícil imaginar que qualquer jovem irlandesa do campo o recusasse.
Chegou ao vale do Salinas exuberante e animado, cheio de invenções e energia. Seus olhos eram muito azuis e quando estava cansado um deles escapava um pouco para fora. Era um homem grandalhão, mas de certa forma delicado. Na atividade empoeirada da fazenda, parecia sempre imaculado. Suas mãos eram hábeis. Era um bom ferreiro, carpinteiro e entalhador, e capaz de improvisar qualquer coisa com pedaços de madeira e metal. Estava sempre inventando novas formas de se fazer uma coisa velha e o fazia cada vez melhor e mais rápido, mas nunca em toda a sua vida teve qualquer talento para ganhar dinheiro. Outros homens que tinham talento para isso pegavam as ideias de Samuel, as vendiam e ficavam ricos, mas Samuel mal chegou a ganhar salário na vida inteira.
Não sei o que orientou seus passos para o vale do Salinas. Era um lugar pouco promissor para um homem de um país verde, mas ele chegou cerca de trinta anos antes da virada do século e trouxe consigo sua pequenina esposa irlandesa, uma mulherzinha tensa e dura como o humor de uma galinha. Tinha uma mentalidade presbiteriana austera e um código moral que proibia e tirava a graça de tudo o que era prazeroso.
Não sei onde Samuel a conheceu, como a cortejou e desposou. Acho que devia ter outra jovem gravada em algum lugar do seu coração, pois era um homem de amor e sua esposa não era uma mulher de demonstrar sentimentos. E, apesar disso, em todos os anos da sua juventude até a sua morte no vale do Salinas, nunca houve nenhum sinal de que Samuel tivesse procurado outra mulher.
Quando Samuel e Liza chegaram ao vale do Salinas toda a terra plana estava tomada, o solo rico, as pequenas pregas férteis nos morros, as florestas, mas ainda havia terra marginal a ser cultivada e, nas colinas nuas a leste do que é hoje King City, Samuel Hamilton cultivou.
Seguiu a prática habitual. Tomou um lote que o governo concedia para si mesmo e outro para sua mulher e, como ela estava grávida, tomou outro lote para a criança. Ao longo dos anos, nove crianças nasceram, quatro meninos e cinco meninas, e a cada nascimento outro lote era acrescido ao rancho, que assim chegou a onze lotes, ou setecentos e doze hectares.
Se a terra fosse boa, os Hamilton teriam ficado ricos. Mas os hectares eram ásperos e secos. Não havia fontes de água e a crosta do solo era tão fina que pedaços de pedra apareciam à superfície. Até a artemísia lutava para existir e os carvalhos ficavam nanicos por falta de umidade. Mesmo nos anos relativamente bons havia tão pouco pasto que o gado ficava magro de tanto rodar em busca de algo para comer. Das suas colinas áridas, os Hamilton podiam avistar no oeste a riqueza das terras planas e as áreas verdejantes ao redor do rio Salinas.
Samuel construiu sua casa com as próprias mãos e construiu também um celeiro e uma ferraria. Descobriu em pouco tempo que mesmo que tivesse cinco mil hectares de terra de encosta não conseguiria viver do solo esquelético sem água. Suas mãos hábeis construíram uma sonda de perfuração e ele cavava poços nas terras dos homens com mais sorte. Inventou e construiu uma debulhadora e corria as fazendas da planície na época da colheita, debulhando o grão que sua própria fazenda não dava. E na sua ferraria afiava arados, consertava charruas, soldava eixos quebrados e botava ferradura em cavalos. Homens de toda a região traziam-lhe ferramentas para consertar e aperfeiçoar. Além do mais, gostavam de ouvir Samuel falar do mundo e do seu pensamento, da poesia e da filosofia que existiam fora do vale do Salinas. Ele tinha uma voz rica e grave, boa para cantar e para falar, e embora não tivesse sotaque irlandês havia uma ondulação, um canto e uma cadência na sua fala que a tornavam doce aos ouvidos dos taciturnos fazendeiros do vale. Eles também traziam uísque e, fora da visão da janela da cozinha e do olho reprovador da sra. Hamilton, tomavam goles ardentes da garrafa e mordiam nacos de anis verde selvagem para disfarçar o bafo de uísque. Era um dia ruim quando não havia três ou quatro homens de pé em torno da forja, ouvindo o malho e a conversa de Samuel. Chamavam-no de gênio cômico e levavam suas histórias cuidadosamente para casa, mas se perguntavam como as histórias podiam se perder pelo caminho, porque nunca soavam iguais se repetidas em suas próprias cozinhas.
Samuel devia ter ficado rico com o seu perfurador de poços, sua debulhadora e sua ferraria, mas ele não tinha tino para negócios. Seus fregueses, sempre com dinheiro apertado, prometiam pagar depois da colheita e então depois do Natal e então depois — até que finalmente se esqueciam. Samuel não tinha nenhum jeito para lembrá-los da dívida. E assim os Hamilton continuavam pobres.
Os filhos vieram tão regularmente como os anos. Os poucos médicos sobrecarregados do condado não iam com frequência aos ranchos para um parto, a não ser que a alegria se transformasse num pesadelo e prosseguisse por vários dias. Samuel Hamilton fez o parto de todos os seus filhos, deu um nó preciso nos cordões umbilicais, os tapinhas no bumbum e limpou a bagunça. Quando o primogênito nasceu com uma pequena obstrução respiratória e começou a ficar roxo, Samuel colou sua boca na da criança, soprou ar dentro dela e sugou o ar até que o bebê conseguisse respirar sozinho. As mãos de Samuel eram tão boas e suaves que vizinhos num raio de trinta quilômetros o chamavam para ajudar nos partos. E ele era igualmente bom com égua, vaca ou mulher.
Samuel tinha um grande livro preto numa estante à mão, com letras douradas na capa — Medicina da Família do Dr. Gunn. Algumas páginas estavam dobradas e surradas pelo uso, e outras nunca haviam sido expostas à luz. Folhear o Dr. Gunn é conhecer a história médica dos Hamilton. Estes são os capítulos mais consultados: ossos quebrados, cortes, contusões, caxumba, sarampo, dor de coluna, escarlatina, difteria, reumatismo, males femininos, hérnia e, naturalmente, tudo o que tivesse a ver com gravidez e parto. Os Hamilton deviam ser afortunados ou moralistas porque as páginas sobre gonorreia e sífilis nunca foram abertas.
Não existia ninguém como Samuel para acalmar a histeria e aquietar uma criança assustada. Era a doçura da sua língua e a ternura de sua alma. Assim como havia limpeza em seu corpo, havia também uma limpeza no seu pensamento. Homens que vinham à sua ferraria, para falar e ouvir, deixavam de lado os palavrões por um tempo, não por se sentirem restringidos, mas automaticamente, como se não fosse um lugar para aquilo.
Samuel sempre manteve um ar distante. Talvez fosse a cadência da sua fala e isso tivesse o efeito de levar homens e mulheres também a lhe contar coisas que não contariam a parentes ou amigos íntimos. Sua ligeira estranheza o distinguia e fazia dele um repositório seguro.
Liza Hamilton era uma irlandesa de uma cepa muito diferente. Sua cabeça era pequena e redonda e guardava pequenas convicções redondas. Tinha um nariz em forma de botão e um queixo pequeno e recuado, um maxilar duro e resoluto capaz de desafiar até a vontade dos anjos de Deus.
Liza era uma boa cozinheira no trivial e sua casa — era sempre sua casa — era varrida, espanada e lavada. Parir os filhos não interferia muito na sua atividade — precisava só se cuidar durante duas semanas, no máximo. Devia ter a ossatura pélvica de uma baleia, pois deu à luz bebês grandes um após o outro.
Liza tinha uma noção muito elaborada do pecado. O ócio era um pecado, assim como jogar cartas, que era um tipo de ócio para ela. Desconfiava de qualquer tipo de diversão, fosse dançar ou cantar ou até mesmo gargalhar. Achava que as pessoas que se divertiam estavam expostas ao diabo. E isso era uma pena, pois Samuel sempre foi um homem chegado a risadas, mas acho que Samuel estava escancarado para o demônio. Sua mulher o protegia sempre que podia.
Usava os cabelos sempre puxados para trás e amarrados num coque. E, como não consigo me lembrar do seu modo de vestir, deve ser porque usava roupas que combinavam exatamente com a sua personalidade. Não tinha nenhuma centelha de humor e apenas ocasionalmente uma lâmina de ironia. Assustava os netos porque não tinha nenhuma fraqueza. Atravessou a vida sofrendo bravamente sem se queixar, convencida de que era assim que Deus queria que todos vivessem. Sentia que as recompensas viriam depois.

John Steinbeck, em A leste do Éden

Nenhum comentário:

Postar um comentário