terça-feira, 22 de junho de 2021

Lavoura Arcaica / 17

O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros; era um tempo também de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários, me despertando com a gravidade de um julgamento mais áspero, eu estou louco! e que saliva mais corrosiva a desse verbo, me lambendo de fantasias desesperadas, compondo máscaras terríveis na minha cara, me atirando, às vezes mais doce, em preâmbulos afetivos de uma orgia religiosa: que potro enjaezado corria o pasto, esfolando as farpas sanguíneas das nossas cercas, me guiando até a gruta encantada dos pomares! que polpa mais exasperada, guardada entre folhas de prata, tingindo meus dentes, inflamando minha língua, cobrindo minha pele adolescente com suas manchas! o tempo, o tempo, o tempo me pesquisava na sua calma, o tempo me castigava, ouvi clara e distintamente os passos na pequena escada de entrada: que súbito espanto, que atropelos, vendo o coração me surgir assim de repente feito um pássaro ferido, gritando aos saltos na minha palma! disparei na direção da porta: ninguém estava lá; investiguei os arbustos destruídos no abandono do jardim em frente, mas nada ali se mexia, era um vento parado, cheio de silêncio, nem mesmo uma tímida palpitação corria o mato, a imaginação tem limites eu ainda pude pensar, existia também um tempo que não falha! voltando ao quarto onde eu ficava, mal entrei voei para a janela, espiando através da fresta (Deus!): ela estava lá, não longe da casa, debaixo do telheiro selado que cobria a antiga tábua de lavar, meio escondida pelas ramas da velha primavera, assustadiça no recuo depois de um ousado avanço, olhando ainda com desconfiança pra minha janela, o corpo de campônia, os pés descalços, a roupa em desleixo cheia de graça, branco branco o rosto branco e eu me lembrei das pombas, as pombas da minha infância, me vendo também assim, espreitando atrás da veneziana, como espreitava do canto do paiol quando criança a pomba ressabiada e arisca que media com desconfiança os seus avanços, o bico minucioso e preciso bicando e recuando ponto por ponto, mas avançando sempre no caminho tramado dos grãos de milho, e eu espreitava e aguardava, porque existe o tempo de aguardar e o tempo de ser ágil (foi essa uma ciência que aprendi na infância e esqueci depois) e acompanhava e ia lendo na imaginação as cruzetas deformadas e graciosas, impressas nos seus recuos e nos seus avanços pelos pés macios no chão de terra; e existia o tempo de ser ágil, e era então um farfalhar quase instantâneo de asas quando a peneira lhe caía sorrateira em cima, e minhas mãos já eram um ninho, e era então um estremecimento que eu apertava entre elas enquanto corria pelo quintal em alvoroço gritando é minha é minha e me detendo pra conhecer melhor seus olhos pequenos e redondos, matreiros mas agora em puro espanto, e arrancava-lhe com decisão as penas das asas, cortando temporariamente seus largos voos, o tempo de surgirem novas penas e novas asas, e também uma afeição nova, e era esse o doce aprisionamento que a aguardava já quando de novo em condições de pleno voo; e as pombas do meu quintal eram livres de voar, partiam para longos passeios mas voltavam sempre, pois não era mais do que amor o que eu tinha e o que eu queria delas, e voavam para bem longe e eu as reconhecia nos telhados das casas mais distantes entre o bando de pombas desafetas que eu acreditava um dia trazer também pro meu quintal imenso; ela estava lá, branco branco o rosto branco e eu podia sentir toda dubiedade, o tumulto e suas dores, e pude pensar cheio de fé eu não me engano neste incêndio, nesta paixão, neste delírio, e fiquei imaginando que para atraí-la de um jeito correto eu deveria ter tramado com grãos de uva uma trilha sinuosa até o pé da escada, pendurado pencas de romãs frescas nas janelas da fachada e ter feito uma guirlanda de flores, em cores vivas, correr na velha balaustrada do varandão que circundava a casa; existia o tempo de aguardar, mas eu já tropeçava, voltando impaciente da janela, chutei com violência a palha que eu, no bico, dia a dia, tinha amontoado no meio do quarto, e foi uma ventania de cisco na cabeça, por um instante me perdi naquele redemoinho, contemplando confuso a agitação do meu próprio ninho: era a vida dentro do quarto! Voltei a espreitar pela fresta, e ela já não estava debaixo do telheiro e eu já não estava dentro de mim, tinha voado pra porta de entrada: o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia a dia para ser vida nos subterrâneos da memória; ela estava agora diante de mim, de pé ali na entrada, branco branco o rosto branco filtrando as cores antigas de emoções tão diferentes, compondo com a moldura da porta o quadro que ainda não sei onde penduro, se no corre-corre da vida, se na corrente da morte; e ficamos assim um de frente para o outro, sem nos mexermos, mudos, um nó cego nas nossas mentes, mas bastava que ela transpusesse a soleira, era uma ciência de menino, mas já era uma ciência feita de instantes, a linha numa das mãos, o coração na outra, não se podia ser ágil tendo-se pela frente instantes de paciência, do contrário seria um desabar prematuro ferindo a ave, que levantaria um voo machucado em alvoroço; grão por grão, instante por instante, mais manhosa era a pomba quanto mais próxima da peneira, bicando o chão com firmeza, mas tremendo antes o pescoço, como o braço de um monjolo sempre indeciso a meio caminho do seu destino; e a cada bico e a cada ponto, tremendo depois as asas, ameaçando as penas em recuo, até que, transpondo o arco da peneira, um doce alimento faria esquecer, projetada na terra, a grade da sua tela; era uma ciência de menino, mas era uma ciência complicada, nenhum grão de mais, nenhum instante de menos, para que a ave não encontrasse o desânimo na carência nem na fartura, existia a medida sagaz, precisa, capaz de reter a pomba confiante no centro da armadilha; numa das mãos um coração em chamas, na outra a linha destra que haveria de retesar-se com geometria, riscando um traço súbito na areia que antes encobria o cálculo e a indústria; nenhum arroubo, nenhum solavanco na hora de puxar a linha, nenhum instante de mais no peso do braço tenso.

Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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