quinta-feira, 24 de junho de 2021

A grande e verdadeira cartilha de Zorba

Quando eu era criança, minha imaginação trabalhava sem freios e eu contava a meus amigos enormidades em que eu mesmo acreditava.
Como morreu o teu avô? — perguntaram-me um dia meus amiguinhos da escola pública.
E eu, imediatamente, forjei um mito; e à medida que ia forjando ia acreditando.
Meu avô usava sapatos de borracha. Um dia quando sua barba já estava branca, ele pulou do telhado da nossa casa. Mas, ao tocar a terra, ele pulou como uma bola e subiu mais alto que o telhado, e sempre mais alto, mais alto, e ele desapareceu nas nuvens. Assim morreu meu avô.
Desde o dia em que inventei esse mito, cada vez que eu ia à igrejinha de Santa Mina e que via, embaixo da iconóstase, a ascensão do Cristo, eu estendia a mão e dizia a meus colegas:
Olhem, lá está meu avô com seus sapatos de borracha.
Naquela noite, depois de tantos anos, ao ver Zorba pular no ar, revivi esse conto infantil com terror, como se acreditasse que Zorba pudesse desaparecer nas nuvens.
Zorba! Zorba! Chega! — gritava eu.
Zorba estava agora ajoelhado no chão, sem fôlego. Seu rosto brilhava, feliz. Seus cabelos grisalhos estavam colados à fronte, e o suor corria sobre seu rosto e seu queixo, misturado à poeira.
Debrucei-me sobre ele, inquieto.
Isso me aliviou — disse ele ao fim de um momento, como se tivesse feito uma sangria. — agora eu posso falar.
Ele entrou no barracão, sentou-se diante do braseiro e me olhou radiante.
Que deu em você para se pôr a dançar?
Que queria você que eu fizesse, patrão? A alegria me estrangulava, era preciso que eu espairecesse. E como espairecer? Com palavras? Eh!
Que alegria?
Seu rosto escureceu. Seu lábio começou a tremer.
Que alegria? Ora, isso tudo que você acabou de dizer, você disse a mim, no ar, sem entender você mesmo? Não viemos aqui em busca do carvão, você disse. Você disse por dizer, não? Viemos aqui para passar o tempo. Vamos jogar poeira nos olhos das pessoas, para que elas não nos tomem como malucos e não nos joguem tomates!
Mas nós, quando estivermos a sós, sem que ninguém nos veja, nós morreremos de rir! É isso, palavra de honra, o que eu queria também, mas não conseguia dizer. Às vezes pensava no carvão, às vezes na mãe Bubulina, às vezes em você... uma confusão. Quando eu abria uma galeria, eu dizia: “O que eu quero é o carvão.” E, dos pés a cabeça, eu virava carvão. Mas, depois de acabado o trabalho, quando eu me esbaldava com aquela velha porca, eu queria que todas as linhitas e patrões do mundo se enforcassem na fitinha do seu pescoço; e Zorba também. Quando, enfim, eu ficava sozinho, sem ter o que fazer, eu pensava em você, patrão, e meu coração se partia.
Era um peso na minha consciência: “Que vergonha, Zorba zombar desse homem e tomar-lhe uns tostões. Até quando você será assim?
Basta!” — eu lhe digo, patrão, havia perdido a cabeça. O Diabo me puxava de um lado e o bom Deus de outro: os dois me rasgavam ao meio. Patrão, você aí falou bem, e eu vi claro. Compreendi! Estamos de acordo. Agora, vamos fazer coisas! Você ainda tem dinheiro? Prepare tudo, vamos raspar os fundos!
Zorba enxugou a testa e olhou em volta. Os restos de nosso jantar estavam ainda espalhados em cima da pequena mesa. Ele estendeu seu grande braço:
Com a sua permissão, patrão, eu ainda tenho fome.
Apanhou um pedaço de pão, uma cebola e algumas azeitonas. Comia vorazmente, e entornava em sua boca, sem tocar nos lábios, a cabaça de vinho que ia se esvaziando. Zorba estalou a língua, satisfeito.
Sinto-me remoçar — disse ele.
Piscou o olho em minha direção:
Por que não ri, patrão? — perguntou. — por que está me olhando? Eu sou assim. Há em mim um Diabo que grita, e eu faço o que ele diz. “Dança” e eu danço. E isso me alivia! Uma vez, quando meu pequeno Dimitraki morreu, na Calcídia, eu me levantei e dancei. Os parentes e amigos, ao me virem dançar assim diante do corpo, se precipitaram sobre mim para me fazer parar. “Zorba ficou louco!” Eles gritavam. “Zorba ficou louco!” mas eu, se não dançasse naquele momento, aí sim eu ficaria louco de dor. Porque ele era o meu primeiro filho e tinha três anos, e eu não podia suportar a sua perda. Você compreende o que estou dizendo, ou estou falando para as paredes?
Eu compreendo, Zorba. Você não está falando para as paredes.
Uma outra vez... Eu estava na Rússia, perto de Novorossisk; e eu fui até lá também, sempre por causa de minas. Dessa vez era de cobre. Sabia cinco ou seis palavras de russo, apenas o indispensável para viver: — sim, não, pão, água, eu te amo, vem, quanto? Tinha ficado amigo de um russo, um bolchevique fanático. Íamos todas as noites a uma taberna do porto, onde tomávamos umas garrafas de vodka, e elas nos deixavam um pouco altos. Assim que começávamos a ficar alegres, o nosso coração se abria. Ele queria me contar, em detalhes, tudo o que havia acontecido com ele durante a revolução russa; e eu, do meu lado, queria dizer-lhe tudo sobre mim. Tínhamo-nos embriagados juntos, você sabe, havíamos-nos tornado irmãos.
Com gestos, mal ou bem, nos havíamos posto de acordo. Ele falaria primeiro. Quando eu não compreendesse diria: Stop! Então, ele se levantaria e dançaria para mim. Compreende, patrão, ele dançaria aquilo que queria me dizer. E eu a mesma coisa. Tudo aquilo que não poderíamos dizer com a boca seria dito com os pés, com as mãos, com o ventre ou com gritos selvagens: Hau! Opa lá! Oi! — foi o russo que começou: como eles haviam apanhado os fuzis, como começou a guerra, como eles chegaram a Novorossisk. Quando eu não podia mais entender gritava: Stop! Imediatamente o russo se atirava e começava a dançar! Dançava como um possesso. E eu olhava suas mãos, seus pés, seu peito, seus olhos e compreendia tudo: como tinham entrado em Novorossisk e matado os patrões, como haviam pilhado as lojas, como entraram nas casas e levaram as mulheres. No começo elas choravam, as malvadas, elas unhavam e unhavam, mas, lentamente, iam-me deixando tomar, fechavam os olhos, gemiam de satisfação. Mulheres, ora... — depois foi a minha vez. Mal começava a falar e, talvez por que ele estivesse já um pouco tocado, e seu cérebro funcionasse mal, o russo gritava: stop! Eu não esperava senão isso. Atirava-me da cadeira, afastava as mesas, e me metia a dançar. Ah! Meu pobre amigo! Decaíram muito os homens! Deixaram que seus corpos ficassem mudos, e só falam com a boca? Que pode ela dizer? Se você pudesse ver como ele me escutava, o russo, da cabeça aos pés, e como ele me compreendia! Eu lhe descreveria, dançando, minhas infelicidades, minhas viagens, quantas vezes me casei, os ofícios que aprendi: carreteiro, mineiro, carregador, oleiro, comitadji, tocador de santuri, vendedor de passatempo, ferreiro e contrabandista; como me haviam jogado na cadeia, como eu fugi, como cheguei à Rússia... Tudo, ele compreendia tudo, mesmo na bebedeira em que estava. Meus pés, minhas mãos falavam, e também os meus cabelos e roupas. Até um canivete que estava pendurado em meu cinto falava também. Quando acabei, o grande tolo apertou-me em seus braços, beijou-me as faces, enchemos os copos de vodka ainda um vez, chorando e rindo, um nos braços do outro. De manhã cedo nos separávamos e íamos dormir. E de noite nos encontrávamos de novo. — você ri? Não acredita, patrão? Você diz a si mesmo: que Diabo, que histórias são essas que me contam esse Simbad o Marujo? Falar dançando, será possível? E, no entanto, boto minha mão no fogo como deve ser assim que falam os Deuses e os Diabos. — estou vendo que estás com sono. Você é muito delicado, não tem resistência. Vamos dormir e amanhã falaremos de novo. Tenho um projeto, um magnífico projeto; amanhã eu lhe conto. Vou fumar ainda um cigarro, talvez dê um mergulho no mar. Estou esfogueado, tenho que me acalmar. Boa noite!
Demorei a dormir. Estava acabada a minha vida, pensei. Se eu pudesse ao menos apanhar uma esponja e apagar tudo que havia aprendido, tudo que havia visto e ouvido e, depois, entrar para a escola de Zorba e começar a grande e verdadeira cartilha! Como seria diferente o caminho que escolheria na vida! Eu exerceria perfeitamente meus cinco sentidos, minha pele inteira, para que ela gozasse e compreendesse. Eu aprenderia a correr, lutar, nadar, montar a cavalo, remar, dirigir automóvel, atirar com espingarda.
Encheria minha alma com a carne. Encheria com carne a minha alma. Conciliaria em mim, finalmente, esses dois inimigos seculares...
Sentado sobre meu chão, pensava em minha vida que se ia, em pura perda. Pela porta aberta, distinguia confusamente, à claridade das estrelas, Zorba acocorado sobre um rochedo como um pássaro noturno. Eu o invejava. Foi ele que encontrou a verdade, pensei; este é o bom caminho!
Em outras épocas, criadoras e primitivas, Zorba teria sido chefe de tribo, e marcharia na frente, abrindo o caminho com seu machado.
Ou então seria um trovador de renome, a visitar os castelos; e todo o mundo estaria preso a seus lábio grossos: senhores, empregadas e nobres damas... Em nossa época ingrata, ele vaga, esfomeado, à volta dos cercados como um lobo, ou bem decai ao ponto de ser o jogral de um arranhador de papéis qualquer.
De repente vi Zorba levantar-se. Despiu-se, jogou suas roupas ao chão e atirou-se ao mar. Via por instantes, à luz fraca da lua que nascia, sua grande cabeça imergir e desaparecer de novo. De vez em quando ele gritava, latia, zurrava, imitava o canto do galo — sua alma nessa noite deserta voltava-se para os animais.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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