sábado, 2 de maio de 2020

O menino da mata e o seu cão Piloto

Descobri um folheto de capa amarela e papel ordinário, cheio de letras miúdas, as linhas juntas, tão juntas que para um olho inexperiente os D saltos e as repetições eram inevitáveis. Creio que isso me apareceu depois do meu acesso de religião. Deve ter sido por aí. Os santos que se penduravam nas paredes do meu quarto cresciam demais. Diminuíram e foram substituídos pelos seres que povoavam as histórias volumosas.
Hoje tudo se embaralha, uma confusão. Talvez a necessidade de mistério e grandeza me tenha levado a acreditar nos santos e nos heróis, que se desenvolveram simultaneamente. Houve, porém, um desequilíbrio: os primeiros subiram muito, enquanto os segundos desciam; em seguida os que estavam embaixo começaram a levantar-se, alcançaram os outros e ganharam a dianteira.
Essas coisas, lentas, quase insensíveis, passaram-se num espírito nebuloso. Para bem dizer, não havia tempo. Na sombra avultavam figuras luminosas. Mas entre elas ficavam espaços vazios, que novas imagens vieram preencher.
Por que brigaram no meu interior esses entes de sonho não sei. Julgo que foi por causa de uma proibição, terrível proibição, relativa à brochura de capa amarela. Alguém a deixou na loja. Folheei-a devagar, soletrando, consultando o dicionário, sentado num caixão de velas. Os livros do estabelecimento eram o razão, o diário, o caixa, outros que José Batista manejava. Entre as mercadorias, porém, existia meia dúzia de dicionários. Examinei com algum proveito esses gêneros, que não achavam comprador. Tinham as bandeiras de todos os países (aí comecei a minha geografia) e retratos de figurões (origem da pouca história que sei). Meu pai me permitiu as consultas, pois a encadernação vermelha, as bandeiras e os retratos não representavam nenhum valor: era até bom que se estragassem, poupassem ao comerciante a lembrança de um mau negócio. Mercadorias. A mim revelaram pedaços do folheto amarelo, que se chamava O Menino da Mata e o seu Cão Piloto.
Arranjava-me lentamente, procurando as definições de quase todas as palavras, como quem decifra uma língua desconhecida. O trabalho era penoso, mas a história me prendia, talvez por tratar de uma criança abandonada. Sempre tive inclinação para as crianças abandonadas. No princípio do romance longo achei garotos perdidos numa floresta, ouvindo gritos de lobos. As narrativas de D. Agnelina referiam-se a pequenos maltratados que se livravam de embaraços, às vezes venciam gigantes e bruxas.
Em casa mostrei o achado a Emília, descrevi o menino, a mata e o cachorro. Nenhum sinal de aprovação. Emília arregalou os olhos, atentou horrorizada no folheto, pegou-o com as pontas dos dedos, soltou-o, como se ele estivesse sujo, aconselhou-me a não o ler. Aquilo era pecado.
Aventurei-me a discutir. Minha prima se enganava: no conto havia um menino e um cachorro excelentes. Recuou, muito pálida, receosa de se contaminar, e virou o rosto. Pecado.
Pecado por que, Emília?
Porque o livro era excomungado, escrito por um sujeito ruim, protestante, para enganar os tolos. Objetei que o menino e o cachorro procediam como cristãos. Respondeu que o perigo estava aí: quando o diabo queria tentar as pessoas, simulava boa aparência, escondia os pés de pato e dava conselhos razoáveis. Depois mostrava as unhas e o rabo, cheirava a enxofre, levava a gente para o inferno. Ignorante e novo, eu não sabia o que era certo ou errado, mas se o livro tinha procedência má, boa coisa não podia ser. Afirmei que ele não tinha má procedência; Emília espiou de longe as letras da capa, discordou, afastou-se cheia de repugnância.
Lembrei-me das pitombas que vi na Sexta-Feira da Paixão, em cima do guarda-comidas. Alguém me convencera de que eu devia jejuar. Sacrifício pequeno, pois ao meio-dia e à noite comíamos em excesso. Nos intervalos, porém, abstinência rigorosa — e aí me apareceram as pitombas e a tentação.
Rondei o guarda-comidas, retirei-me, voltei, hesitei, a minha crença moderada sucumbiu.
Agora estava mais forte, mas a necessidade de conhecer o menino da mata e o seu cão Piloto não se comparava ao desejo mediano que me haviam inspirado as pitombas na Sexta-Feira da Paixão. Veio-me a ideia de me rebelar contra Emília. O folheto não era obra de protestantes nem sugestão do diabo.
Entristeci, esmagado por aquele dever. E arrependi-me de ter falado a minha prima. Se não tivesse batido com a língua nos dentes, leria sem culpa O Menino da Mata e o seu Cão Piloto.
Encontrei depois muitas intolerâncias, mas essa foi para mim extremamente dolorosa.
Regressei à loja, sem me resolver a jogar fora o folheto condenado. Ao passar diante da igreja, tirei o chapéu, rezei um padre-nosso e uma ave-maria.
Tinha-me habituado a esse exercício, mas agora rezava desesperadamente, com remorso por trazer debaixo do paletó, colado ao corpo, um objeto impuro. Não me resignava a perdê-lo, discutia sozinho, diligenciando convencer-me de que Emília divagara à toa.
Na loja, fui sentar-me no caixão de velas. As ideias de revolta sumiram-se completamente. Se o meu inimigo Fernando chegasse naquele momento, eu nem daria pela presença dele, tão enleado me achava.
Era como se me fechassem uma porta, porta única, e me deixassem na rua, à chuva, desgraçado, sem rumo. Proibiam-me rir, falar alto, brincar com os vizinhos, ter opiniões. Eu vivia numa grande cadeia. Não, vivia numa cadeia pequena, como papagaio amarrado na gaiola.
Enxergara a libertação adivinhando a prosa difícil do romance. O pensamento se enganchava trôpego no enredo: as personagens se moviam lentas e vagas, pouco a pouco se destacavam, não se distinguiam dos seres reais. E faziam-me esquecer o código medonho que me atenazava. De repente as interdições alcançavam o mundo misterioso onde me havia escondido. Impossível mexer-me, papagaio triste e mudo, na gaiola. Quando principiava a imaginar espaços estirados, a lei vedava-me o sonho.
Chorei, o folheto caído, inútil. O menino da mata e o cão Piloto morriam. E nada para substituí-los. Imenso desgosto, solidão imensa. Infeliz o menino da mata, eu infeliz, infelizes todos os meninos perseguidos, sujeitos aos cocorotes, aos bichos que ladram à noite.
Os caixeiros, ouvindo-me, resmungariam ou soltariam gargalhadas; Fernando me insultaria; minha mãe me trataria com indiferença ou aspereza. E eu ficaria só no mundo. Um pecado a apertar-me como prensa. Eu era um pouco de algodão comprimido na prensa.
Antes disso estava quase em sossego, livre dos caixeiros e de Fernando, livre de minha mãe, pensando nas crianças que vencem gigantes e bruxas, vencem o medo na floresta. Mas a clareira se fechara, a sombra me envolvera, uma tampa descera do céu — e achava-me de novo sem defesa. O volume de capa amarela caído no chão. Desejei apanhá-lo. Havia os protestantes, havia o diabo — e esses entes remotos e confusos encheram-me de pavor. Perigos tremendos, horríveis perigos indecisos rolaram por cima da minha cabeça.
Ai de mim, ai das crianças abandonadas na escuridão. Chorei muito. E não me atrevi a ler O Menino da Mata e o seu Cão Piloto.
Graciliano Ramos, in Infância

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