sábado, 9 de maio de 2020

O deus louco

Fotograma do desenho Caninos Brancos, da Netflix

Um pequeno número de homens brancos vivia em Forte Yukon. Esses homens estavam há muito tempo na região. Chamavam a si mesmos de Massa Azeda e sentiam muito orgulho de assim se classificarem. Pelos outros homens, novos na região, não sentiam senão desprezo. Os homens que desembarcavam dos vapores eram recém-chegados. Eram conhecidos como chechaquos, e sempre se encolhiam à aplicação do nome. Faziam o seu pão com fermento em pó. Essa era a distinção invejosa entre eles e os garimpeiros, que, na verdade, faziam o seu pão com massa de fermento, porque não tinham fermento em pó.
Tudo isso não vem ao caso. Os homens no forte desprezavam os recém-chegados e gostavam de vê-los fracassar. Gostavam especialmente do estrago feito entre os cachorros dos recém-chegados por Caninos Brancos e sua cambada mal-afamada. Quando chegava um vapor, os homens do forte sempre faziam questão de descer até a margem para observar a brincadeira. Aguardavam a ocasião com tanto antegozo quanto os cachorros dos índios, e não demoraram a apreciar o papel selvagem e astuto desempenhado por Caninos Brancos.
Mas havia um homem entre eles que se divertia particularmente com o esporte. Ele vinha correndo ao primeiro som do apito do vapor e, quando a última luta findava e Caninos Brancos e o bando se dispersavam, voltava lentamente para o forte, a face coberta de pesar. Às vezes, quando um cachorro suave do sul desembarcava, emitindo seu grito de morte sob as presas do bando, esse homem não conseguia se conter, saltava no ar e gritava de prazer. E punha sempre um olho agudo e cobiçoso em Caninos Brancos.
Esse homem era chamado “Beleza” pelos outros homens do forte. Ninguém sabia o seu primeiro nome, todos o conheciam na região como Beleza Smith. Mas ele era tudo menos uma beleza. Seu nome devia-se à antítese. Era preeminentemente feio. A natureza fora mesquinha com ele. Para começar, era um homem pequeno; e sobre a sua estrutura magra depositava-se uma cabeça ainda mais extraordinariamente magra. O ápice da cabeça podia ser comparado a um ponto. Aliás, na infância, antes de ser chamado de beleza pelos companheiros, recebera o apelido de “Cabeça de Alfinete”.
Para trás, a partir do ápice, a cabeça enviesava para o pescoço, e para frente enviesava firmemente até encontrar uma testa baixa e extraordinariamente larga. A partir desse ponto, como se arrependida da sua parcimônia, a natureza alargara as feições com mão generosa. Os olhos eram grandes, e entre eles havia a distância de dois olhos. A face, em relação ao resto do corpo, era prodigiosa. A natureza lhe dera um enorme maxilar prognata, largo e pesado, que alongava-se para fora e para baixo até parecer repousar sobre o peito. Talvez essa aparência fosse devida ao cansaço do pescoço delgado, incapaz de sustentar apropriadamente uma carga tão grande.
Esse maxilar dava a impressão de uma determinação feroz. Mas faltava alguma coisa. Talvez fosse por causa do excesso. Talvez o maxilar fosse demasiado grande. Em todo caso, era mentira. Beleza Smith era conhecido em toda parte como o mais fraco dos covardes irresolutos e choramingas. Para completar a sua descrição, os dentes eram grandes e amarelos, enquanto os dois caninos, maiores que os outros, apareciam sob os lábios magros como presas. Os olhos eram amarelos e turvos, como se a natureza tivesse ficado sem pigmentos e espremido os restos de todas as suas bisnagas. O mesmo acontecia com o cabelo, ralo e irregular, de um amarelo lamacento sujo, erguendo-se sobre a cabeça e brotando na face em tufos e feixes inesperados, com uma aparência de grãos amontoados e soprados pelo vento.
Em suma, Beleza Smith era uma monstruosidade, e a culpa de tudo estava em outra parte. Ele não era responsável. A sua argila fora moldada assim na sua formação. Ele cozinhava para os outros homens no forte, lavava os pratos e servia de criado. Eles não o desprezavam. Antes o toleravam de um modo humano franco, como se tolera qualquer criatura que foi maltratada na sua modelagem. Além disso, eles o temiam. Seus ataques de fúria covardes faziam com que temessem um tiro pelas costas ou veneno no café. Mas alguém tinha de cozinhar, e quaisquer que fossem os seus defeitos, Beleza Smith sabia cozinhar.
Esse era o homem que olhava para Caninos Brancos, maravilhado com as suas proezas ferozes, e desejava possuí-lo. Tentou seduzir Caninos Brancos desde o início. Caninos Brancos começou por ignorá-lo. Mais tarde, quando a sedução se tornou mais insistente, Caninos Brancos eriçava o pelo, mostrava os dentes e recuava. Ele não gostava do homem. A sua impressão do homem era ruim. Sentia nele o mal, e temia a mão estendida e as tentativas de fala mansa. Por tudo isso, ele odiava o homem.
Com as criaturas mais simples, o bem e o mal são coisas compreendidas com simplicidade. O bem representa todas as coisas que trazem alívio, satisfação e o fim da dor. Portanto, o bem é apreciado. O mal representa todas as coisas que são carregadas de desconforto, ameaça e dor, sendo por isso odiado. A impressão de Beleza Smith sobre Caninos Brancos era ruim. Do corpo deformado e da mente torcida do homem, de modo oculto, como névoas elevando-se de pântanos maláricos, provinham emanações da morbidez interior. Não era pelo raciocínio, nem apenas pelos cinco sentidos, mas por outros sentidos mais remotos e não mapeados, que Caninos Brancos pressentia que o homem agourava o mal, impregnado de maldade, sendo portanto algo ruim e que era sábio odiar.
Caninos Brancos estava no acampamento de Castor Cinza, quando Beleza Smith o visitou pela primeira vez. Ao tênue som de seus passos distantes, antes que ele aparecesse à vista, Caninos Brancos já sabia quem estava vindo e começou a eriçar o pelo. Estava deitado confortavelmente, mas levantou-se rápido e, quando o homem chegou, esgueirou-se com os movimentos de um verdadeiro lobo para a beirada do acampamento. Não sabia o que diziam, mas podia ver o homem e Castor Cinza conversando. Em certo momento, o homem apontou na sua direção, e Caninos Brancos rosnou em resposta, como se a mão estivesse a ponto de descer sobre seu corpo em vez de estar, na verdade, a quinze metros de distância. O homem riu disso, e Caninos Brancos afastou-se furtivamente para a mata protetora, a cabeça virada e atenta enquanto deslizava suavemente sobre o chão.
Castor Cinza recusou-se a vender o cachorro. Ele ficara rico comerciando e não estava precisando de nada. Além disso, Caninos Brancos era um animal valioso, o cachorro de trenó mais forte que já tivera, e o melhor líder. Mais ainda, não havia cachorro como ele nem no Mackenzie nem no Yukon. Ele sabia brigar. Matava os outros cachorros com tanto facilidade quanto os homens matavam mosquitos. (Os olhos de Beleza Smith iluminaram-se a essa declaração, e ele lambeu os lábios finos com uma língua ansiosa.) Não, Caninos Brancos não estava à venda, por nenhum preço.
Mas Beleza Smith conhecia os hábitos dos índios. Começou a visitar frequentemente o acampamento de Castor Cinza e, escondidas sob o casaco, vinham sempre uma ou duas garrafas pretas. Um dos poderes do uísque é criar a sede. Castor Cinza contraiu a sede. Suas membranas febris e seu estômago queimado começaram a clamar mais e mais pelo fluido abrasador, enquanto o cérebro, desarranjado pelo estimulante desusado, permitia que ele fizesse de tudo para obtê-lo. O dinheiro que tinha recebido pelas suas peles, luvas e mocassins começou a desaparecer. Sumia cada vez mais rápido, e quanto mais curto ficava de dinheiro, mais curto se tornava o seu pavio.
Por fim, desapareceram todo o dinheiro, os bens e o bom humor. Não lhe restou senão a sede, um bem prodigioso em si mesmo que tornava-se ainda mais prodigioso a cada fôlego sóbrio que aspirava. Foi então que Beleza Smith veio lhe falar novamente sobre a venda de Caninos Brancos; mas desta vez o preço oferecido era em garrafas, e não em dólares, e os ouvidos de Castor Cinza estavam mais ansiosos por escutar.
Você pega o cachorro e ganha as garrafas – foi a sua última palavra.
As garrafas foram entregues, mas depois de dois dias, “Você pega o cachorro”, foram as palavras de Beleza Smith para Castor Cinza.
Caninos Brancos entrou furtivamente no acampamento certa noite e deitou-se com um suspiro de contentamento. O temido deus branco não estava por perto. Por dias as suas manifestações do desejo de pôr a mão sobre Caninos Brancos tinham se tornado mais insistentes, e durante esse tempo ele fora compelido a evitar o acampamento. Não sabia que mal aquelas mãos insistentes ameaçavam. Sabia apenas que elas ameaçavam alguma espécie de mal, e que era melhor manter-se longe do seu alcance.
Porém, mal tinha se deitado, quando Castor Cinza cambaleou na sua direção e amarrou uma tira de couro ao redor de seu pescoço. Sentou-se ao lado de Caninos Brancos, segurando a ponta da tira numa das mãos. Na outra mão tinha uma garrafa que, de tempos em tempos, era invertida acima de sua cabeça ao som de gorgolejos.
Assim se passou uma hora, quando as vibrações de pés em contato com o chão anunciaram aquele que se aproximava. Caninos Brancos foi o primeiro a escutar o som e eriçou o pelo ao reconhecer o intruso, enquanto Castor Cinza ainda cabeceava estupidamente. Caninos Brancos tentou puxar a tira suavemente da mão do seu dono, mas os dedos relaxados se fecharam com firmeza, e Castor Cinza despertou.
Beleza Smith entrou no acampamento a passos largos e parou acima de Caninos Brancos. Esse rosnou de leve para o ser temível, observando atentamente as suas mãos. Uma das mãos estendeu-se e começou a descer sobre a sua cabeça. O rosnado suave tornou-se tenso e áspero. A mão continuou lentamente a descer, enquanto ele se encolhia sob ela, olhando-a com malevolência, o rosnado tornando-se cada vez mais curto à medida que, com a respiração acelerada, aproximava-se do seu auge. De repente mordeu, atacando com as presas como uma cobra. A mão recuou com um safanão, e os dentes fecharam-se no vazio com um estalo agudo. Beleza Smith estava assustado e zangado. Castor Cinza deu uma pancada no lado da cabeça de Caninos Brancos, de modo que ele se agachou perto da terra em respeitosa obediência.
Os olhos suspeitosos de Caninos Brancos seguiam todo movimento. Viu Beleza Smith afastar-se e retornar com um pedaço de pau forte. Então a ponta da tira lhe foi entregue por Castor Cinza. Beleza Smith começou a ir embora. A tira se retesou. Caninos Brancos resistia. Castor Cinza lhe deu uma pancada à direita e à esquerda para fazer com que se levantasse e seguisse. Ele obedeceu, mas investiu com ímpeto, lançando-se sobre o estranho que o arrastava para longe. Beleza Smith não se afastou com um pulo. Esperava por isso. Manejou o pedaço de pau com destreza, interrompendo a investida a meio caminho e esborrachando Caninos Brancos no chão. Castor Cinza riu e moveu a cabeça aprovando. Beleza Smith esticou a tira de novo, e Caninos Brancos levantou-se mancando e tonto.
Não fez uma segunda investida. Bastou um golpe do pedaço de pau para convencê-lo de que o deus branco sabia manejá-lo, e ele era sábio demais para lutar contra o inevitável. Assim seguiu soturno no encalço de Beleza Smith, o rabo entre as patas, ainda rosnando suave e surdamente. Mas Beleza Smith não tirava o olho dele, e o pedaço de pau estava sempre pronto a atacar.
No forte, Beleza Smith o deixou amarrado em segurança e foi dormir. Caninos Brancos esperou uma hora. Depois aplicou os dentes à tira de couro, e no espaço de dez segundos estava livre. Não perdera tempo com os dentes. Não dera nenhuma roída inútil. A tira fora cortada, diagonalmente, quase com tanta precisão como se tivesse sido cortada por uma faca. Caninos Brancos olhou para o forte, ao mesmo tempo eriçando o pelo e rosnando. Depois virou-se e voltou ao acampamento de Castor Cinza. Ele não devia lealdade a esse deus estranho e terrível. Entregara-se a Castor Cinza, e a Castor Cinza achava que ainda pertencia.
Mas o que ocorrera antes foi repetido – com uma diferença. Castor Cinza mais uma vez o amarrou com uma tira, e pela manhã entregou-o a Beleza Smith. E foi nesse ponto que surgiu a diferença. Beleza Smith lhe deu uma surra. Amarrado com firmeza, Caninos Brancos só conseguiu enfurecer-se inutilmente e suportar o castigo. Um macete e um chicote foram usados contra seu corpo, e ele experimentou a pior surra que já tinha recebido na vida. Até a grande surra que sofrera ainda filhote nas mãos de Castor Cinza era pouco em comparação.
Beleza Smith gostou da tarefa. Sentia prazer em bater. Olhava com prazer maligno para sua vítima, e os olhos ardiam sem brilho, enquanto manejava o chicote ou o macete e escutava os gritos de dor de Caninos Brancos e seus urros e rosnados indefesos. Pois Beleza Smith era cruel à maneira dos covardes. Encolhendo-se e choramingando diante dos golpes ou palavras iradas de um homem, ele se vingava, por sua vez, nas criaturas mais fracas. Toda e qualquer vida gosta de poder, e Beleza Smith não era exceção. Tendo lhe sido negada a expressão de poder entre a sua própria espécie, ele caía sobre as criaturas menores, e ali vindicava a vida que nele havia. Mas Beleza Smith não tinha criado a si mesmo, e nenhuma culpa lhe devia ser atribuída. Ele viera ao mundo com um corpo distorcido e uma inteligência grosseira. Isso constituíra a sua argila, e ela não fora moldada com bondade pelo mundo.
Caninos Brancos sabia por que estava apanhando. Quando Castor Cinza amarrou a tira de couro no seu pescoço e passou a ponta da tira para a guarda de Beleza Smith, Caninos Brancos sabia que era vontade de seu deus que ele partisse com Beleza Smith. E quando Beleza Smith o deixou amarrado fora do forte, sabia que era vontade de Beleza Smith que ele ali permanecesse. Portanto, ele tinha desobedecido a vontade de ambos os deuses, e merecia o consequente castigo. Vira cachorros mudarem de dono no passado, e vira os fugitivos apanharem como estava apanhando. Era sábio, mas na sua natureza havia forças maiores que a sabedoria. Uma dessas era a fidelidade. Ele não amava Castor Cinza, porém, mesmo em face de sua vontade e raiva, ele lhe era fiel. Não podia deixar de ser. Essa fidelidade era uma qualidade da argila que o compunha. Era a qualidade que constituía peculiarmente o patrimônio da sua espécie; a qualidade que diferenciava a sua espécie de todas as outras espécies; a qualidade que tornara o lobo e o cão selvagem capazes de deixar a floresta inculta para serem companheiros do homem.
Depois da surra, Caninos Brancos foi arrastado de volta para o forte. Mas dessa vez Beleza Smith o deixou amarrado com uma vara. Ninguém abre mão de um deus assim tão facilmente, e Caninos Brancos não era diferente. Castor Cinza era o seu deus particular, e, apesar da vontade de Castor Cinza, Caninos Brancos ainda se agarrava ao índio e não queria saber de separação. Castor Cinza o tinha traído e abandonado, mas isso não produzia nenhum efeito sobre Caninos Brancos. Não fora por nada que ele se entregara de corpo e alma a Castor Cinza. Não houvera reserva da parte de Caninos Brancos, e o laço não devia ser rompido facilmente.
Assim, à noite, quando os homens do forte estavam dormindo, Caninos Brancos aplicou os dentes na vara que o prendia. A madeira era sazonada e seca, e estava amarrada tão perto do seu pescoço que ele mal conseguia mordê-la. Foi apenas com o maior esforço muscular e arqueamento do pescoço que ele conseguiu colocar a madeira entre os dentes, e mal e mal entre os dentes; e foi só pelo emprego de uma imensa paciência, que se estendeu por muitas horas, que ele conseguiu roer a vara. Era algo que os cachorros supostamente não fariam. Sem precedentes. Mas Caninos Brancos o fez, afastando-se do forte de manhã cedo com a ponta da vara pendurada no pescoço.
Ele era sábio. Se fosse apenas sábio, não teria voltado para Castor Cinza que já o traíra duas vezes. Mas havia a sua fidelidade, e ele voltou para ser traído ainda por uma terceira vez. Novamente ele se sujeitou a que Castor Cinza lhe atasse a tira de couro ao redor do pescoço, e novamente Beleza Smith veio reclamá-lo. E dessa vez a surra que levou foi ainda pior que a anterior.
Castor Cinza olhou impassível, enquanto o homem branco manejava o chicote. Não protegeu. O cachorro não era mais seu. Quando terminou a surra, Caninos Brancos estava doente. Um cachorro suave do sul teria morrido com essa surra, mas ele era diferente. A sua escola de vida fora mais dura, e ele próprio era feito de um estofo mais duro. Tinha uma enorme vitalidade. A sua garra de vida era forte. Mas ele estava muito doente. A princípio não conseguia se arrastar, e Beleza Smith teve de esperar meia hora por Caninos Brancos. E depois, cego e cambaleante, ele seguiu no encalço de Beleza Smith de volta para o forte.
Foi então amarrado com uma corrente que desafiava seus dentes, e tentou em vão, dando arremetidas, puxar o grampo da madeira em que estava cravado. Depois de alguns dias, sóbrio e falido, Castor Cinza partiu Porcupine acima na sua longa viagem até o Mackenzie. Caninos Brancos permaneceu em Yukon, propriedade de um homem mais que meio louco e inteiramente bruto. Mas o que sabe um cachorro na sua consciência da loucura? Para Caninos Brancos, Beleza Smith era um deus verdadeiro, ainda que terrível. Era quando muito um deus louco, mas Caninos Brancos nada sabia da loucura; sabia apenas que devia se submeter à vontade desse novo dono, obedecer a todos os seus caprichos e fantasias.
Jack London, in Caninos Brancos

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