Absorto,
centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos
quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as
superfícies de cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço
por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho
peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu
liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em
curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E
porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a
Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de coisas que nada tenham
em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas aos
poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do
porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza
citado aí de cima, acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez,
ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui,
dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria
circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me por quê. Nas
quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos
ruídos gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais
rigorismos, mas focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e
ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se
faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo,
desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso
e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas,
uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu
mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras,
hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa,
cerimoniosa, canônica, limpo bispal. Isaiah limpou dejetos do porco,
muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco
triste esfregando-se nos cantos, um aguado-ternura nos dois olhos, e
por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai
olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente parece,
sempre doente, é o que pai dizia na sua língua. E doença não é
Hilde? Hilde sua mãe, sorria, Ach nem, é pequeno, é criança, e
quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é
doença Karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um
nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o
porco, a anca tremulosa roçou as canelas de Isaiah, Isaiah
agachou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro, e mimos
e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo
dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira.
Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de
alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou
esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah
foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.
Hilda
Hilst, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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