sexta-feira, 8 de maio de 2020

A falácia da visão retrospectiva

Cada ponto da história é um cruzamento. Uma única estrada percorrida leva do passado ao presente, mas uma série de caminhos se bifurca em direção ao futuro. Alguns desses caminhos são mais largos, mais planos e mais bem sinalizados, e, por isso, há uma chance maior de que sejam seguidos. Mas às vezes a história – ou as pessoas que fazem a história – dão voltas inesperadas.
No início do século IV, o Império Romano se viu diante de um amplo horizonte de possibilidades religiosas. Poderia ter se atido a seu tradicional e diversificado politeísmo. Mas seu imperador, Constantino, rememorando um século de guerras civis incontroláveis, parece ter pensado que uma única religião, com uma doutrina clara, poderia ajudar a unificar seu domínio etnicamente diverso. Ele poderia ter escolhido qualquer um entre vários cultos da época como o credo de sua nação – o maniqueísmo, o mitraísmo, os cultos a Ísis ou Cibele, o zoroastrismo, o judaísmo e até mesmo o budismo eram opções disponíveis. Por que ele optou por Jesus? Havia algo na teologia cristã que o atraía pessoalmente, ou talvez um aspecto da fé que o fez pensar que seria mais facilmente aplicável a seus propósitos? Ele teve uma experiência religiosa, ou algum de seus conselheiros sugeriu que os cristãos estavam ganhando devotos rapidamente e que o melhor seria aproveitar esse embalo? Os historiadores podem especular, mas não podem fornecer uma resposta definitiva. Podem descrever como o cristianismo tomou conta do Império Romano, mas não podem explicar por que essa possibilidade em particular se concretizou.
Qual a diferença entre descrever “como” e explicar o “porquê”? Descrever “como” significa reconstruir a série de acontecimentos específicos que levaram de um ponto a outro. Explicar o “porquê” significa encontrar conexões causais que esclareçam a ocorrência dessa série específica de acontecimentos em detrimento de todas as outras.
Alguns estudiosos fornecem, de fato, explicações deterministas para acontecimentos como a ascensão do cristianismo. Eles tentam reduzir a história humana à ação de forças biológicas, ecológicas e econômicas. Argumentam que havia algo na geografia, na genética ou na economia do Império Romano no Mediterrâneo que tornou inevitável a ascensão de uma religião monoteísta. Mas a maioria dos historiadores tende a ser cética com relação a tais teorias deterministas. Essa é uma das marcas características da história como disciplina acadêmica – quanto melhor se conhece um determinado período histórico, mais difícil se torna explicar por que as coisas aconteceram de um jeito, e não de outro. Aqueles que têm um conhecimento apenas superficial de um certo período tendem a se concentrar apenas na possibilidade que realmente ocorreu. Eles fornecem um relato exato para explicar, em retrospectiva, por que um determinado resultado era inevitável. Aqueles que têm um conhecimento mais profundo do período são muito mais conscientes das estradas não percorridas.
Na verdade, as pessoas que conheciam melhor o período – as que viveram naquela época – eram as mais desavisadas de todas. Para um típico romano da época de Constantino, o futuro era uma névoa. É uma regra implacável da história que o que parece inevitável em retrospectiva está longe de ter sido óbvio na época. Hoje não é diferente. Saímos da crise econômica global ou o pior ainda está por vir? A China continuará crescendo até se tornar a principal superpotência? Os Estados Unidos perderão sua hegemonia? O aumento do fundamentalismo monoteísta é a onda do futuro ou um redemoinho local de pouca importância no longo prazo? Estamos caminhando para um desastre ecológico ou para um paraíso tecnológico? Bons argumentos podem ser apresentados para corroborar qualquer um desses desfechos, mas não há como saber com certeza. Em algumas décadas, as pessoas vão olhar para trás e pensar que as respostas para todas essas perguntas eram óbvias.
É particularmente importante enfatizar que possibilidades que parecem muito improváveis para os contemporâneos muitas vezes se concretizam. Quando Constantino assumiu o trono, em 306, o cristianismo não passava de uma seita oriental esotérica. Se alguém sugerisse que ele viria a ser a religião oficial de Roma, seria expulso da sala às gargalhadas, da mesma forma que aconteceria hoje com alguém que sugerisse que, por volta de 2050, Hare Krishna será a religião oficial dos Estados Unidos. Em outubro de 1913, os bolcheviques eram uma pequena facção radical russa. Nenhuma pessoa racional teria previsto que, em apenas quatro anos, eles dominariam o país. Em 600, a noção de que um bando de árabes que habitavam o deserto logo conquistaria uma extensa faixa do oceano Atlântico até a Índia era ainda mais absurda. De fato, se o exército bizantino tivesse conseguido evitar o ataque inicial, o islamismo provavelmente continuaria sendo um culto obscuro, conhecido apenas por um punhado de iniciados. Os estudiosos teriam, então, a tarefa muito fácil de explicar por que uma fé baseada em uma revelação feita a um mercador de meia-idade de Meca nunca poderia ir para a frente.
Isso não quer dizer que tudo é possível. Forças geográficas, biológicas e econômicas criam restrições. Mas, ainda assim, essas restrições deixam muito espaço para desdobramentos inesperados, que não parecem ter ligação com qualquer lei determinista.
Essa conclusão decepciona muita gente que prefere que a história seja determinista. O determinismo é atraente porque implica que nosso mundo e nossas crenças são um produto natural e inevitável da história. É natural e inevitável que vivamos em Estados-nação, organizemos nossa economia com base em princípios capitalistas e acreditemos fervorosamente em direitos humanos. Reconhecer que a história não é determinista é reconhecer que não passa de uma coincidência o fato de que a maioria das pessoas, hoje em dia, acredita em nacionalismo, capitalismo e direitos humanos.
A história não pode ser explicada de forma determinista e não pode ser prevista porque é caótica. Tantas forças estão em ação, e suas interações são tão complexas, que variações extremamente pequenas na intensidade dessas forças e na maneira com que interagem produzem diferenças gigantescas no resultado. E não é só isso: a história é o que chamamos de sistema caótico “nível 2”. Os sistemas caóticos podem ter duas formas. O caos nível 1 é o caos que não reage a previsões a seu respeito. O clima, por exemplo, é um sistema caótico nível 1. Embora seja influenciado por uma série de fatores, é possível criar modelos computadorizados que levem em consideração um número cada vez maior desses fatores e produzam previsões do tempo cada vez melhores.
O caos nível 2 é o caos que reage a previsões a seu respeito e, por isso, nunca pode ser previsto com precisão. Os mercados, por exemplo, são um sistema caótico nível 2. O que vai acontecer se desenvolvermos um programa de computador que preveja com 100% de exatidão o preço do petróleo amanhã? O preço do petróleo vai reagir imediatamente à previsão que, consequentemente, não vai se concretizar. Se o preço atual do petróleo é 90 dólares o barril, e o programa de computador infalível prevê que amanhã será 100 dólares, os comerciantes vão correr para comprar petróleo, de modo que possam lucrar com a alta de preço prevista. Como resultado, o preço vai subir para 100 dólares o barril hoje, e não amanhã. Então, o que vai acontecer amanhã? Ninguém sabe.
A política também é um sistema caótico de segunda ordem. Muitas pessoas criticam os especialistas em assuntos da antiga União Soviética por não terem previsto as revoluções de 1989 e castigam especialistas em Oriente Médio por não terem antecipado as revoluções da Primavera Árabe de 2011. Isso é injusto. Revoluções são, por definição, imprevisíveis. Uma revolução previsível nunca irrompe.
Por que não? Imagine que, em 2010, algum cientista político genial, em conluio com um mago da computação, tivesse desenvolvido um algoritmo infalível que, incorporado a uma interface atraente, pudesse ser comercializado como um indicador de revolução. Eles oferecem seus serviços ao então presidente do Egito, Hosni Mubarak, e, em troca de um generoso pagamento, dizem a ele que, segundo as previsões, uma revolução certamente irromperia no Egito no decurso do ano seguinte. Como Mubarak reagiria? Muito provavelmente, reduziria os impostos de imediato, distribuiria milhões de dólares para os cidadãos – e também reforçaria a polícia secreta, só por via das dúvidas. As medidas preventivas funcionam. O ano passa e, surpresa, não há revolução. Mubarak exige seu dinheiro de volta. “Seu algoritmo é inútil!”, ele grita para os cientistas. “No fim, eu poderia ter construído outro palácio em vez de distribuir todo aquele dinheiro!” “Mas a revolução não aconteceu justamente porque a previmos”, dizem os cientistas em sua defesa. “Profetas que preveem coisas que não acontecem?”, observa Mubarak enquanto faz sinal para que os guardas os prendam. “Eu poderia conseguir uma dezena deles por um preço irrisório no mercado do Cairo.”
Sendo assim, por que estudar história? Diferente de física ou economia, a história não é um meio de fazer previsões exatas. Estudamos história não para conhecer o futuro, e sim para ampliar nossos horizontes, entender que nossa situação presente não é natural nem inevitável e que, consequentemente, existem mais possibilidades diante de nós do que imaginamos. Por exemplo, estudar como os europeus dominaram a África nos permite entender que não existe nada de natural ou inevitável na hierarquia racial e que o mundo poderia muito bem ser organizado de outra forma.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: Uma Breve História da Humanidade

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