quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Do país da cultura

            Longe demais voei na direção do futuro; um pavor me assaltou.
E, quando olhei ao meu redor, eis que o tempo era meu único contemporâneo.
Então voei para trás, no rumo de casa — e cada vez mais depressa: assim cheguei até vós, homens do presente, e ao país da cultura.
Pela primeira vez trouxe comigo um olhar para vós, e bom desejo: em verdade, cheguei com saudade no coração.
Mas que me aconteceu? Embora tivesse medo — tive que rir! Meus olhos jamais tinham visto algo tão sarapintado!
Eu ria e ria, enquanto o pé ainda tremia, e também o coração: “Aqui deve ser a terra de todos os potes de tintas!” — disse eu.
Com cinquenta borrões de cores no rosto e nos membros: assim vos encontráveis ali, para meu espanto, ó homens do presente!
E com cinquenta espelhos ao vosso redor, que lisonjeavam e repetiam vosso jogo de cores!
Em verdade, não poderíeis usar máscaras melhores do que vossos próprios rostos, ó homens do presente! Quem poderia — reconhecer-vos?
Inteiramente inscritos com signos do passado, e com novos signos pincelados sobre esses signos: assim vos escondestes bem de todos os intérpretes de signos!
E, mesmo quando se é um escrutador de rins: quem ainda crê que tendes rins? Pareceis formados de cores e pedaços de papel com cola.
Todos os tempos e povos transparecem coloridos atrás de vossos véus; todos os costumes e crenças falam coloridos através de vossos gestos.
Quem entre vós retirasse os véus, capas, cores e gestos, manteria apenas o suficiente para espantar os pássaros.
Em verdade, eu mesmo sou o pássaro espantado que um dia vos viu nus e sem cores; e fugi voando, quando o esqueleto me acenou amorosamente.
Preferiria ser trabalhador diarista no mundo inferior e junto às sombras do passado! — mais gordos e robustos do que vós são os habitantes desse outro mundo!
Sim, isso é amargor para minhas vísceras, que eu não vos suporte nus nem vestidos, ó homens do presente!
Tudo de inquietante no futuro, e que um dia assombrou pássaros fugidios, é verdadeiramente mais familiar e tranquilizador do que vossa “realidade”.
Pois assim falais: “Totalmente reais somos nós, e sem crença nem crendice”: desse modo vos gabais, inflando o peito — ah, embora não tendo peito!
Sim, como poderíeis crer, ó homens sarapintados! — que sois pinturas de tudo aquilo em que já se acreditou!
Sois refutações ambulantes da fé mesma, e fratura de todo pensamento. Indignos de fé: assim vos chamo eu, ó homens reais!
Todos os tempos tagarelam uns contra os outros em vossos espíritos; e os sonhos e palavrórios de todos os tempos eram ainda mais reais do que é vossa vida acordada!
Sois estéreis: por isso vos falta fé. Mas quem tinha de criar sempre teve também seus sonhos proféticos e sinais dos astros — e acreditava na fé! —
Sois portões semiabertos, junto aos quais coveiros aguardam. E esta é a vossa realidade: “Tudo é digno de perecer”.
Ah, como apareceis à minha frente, ó estéreis, com tão magras costelas! E mais de um, entre vós, provavelmente o percebeu.
E falou: “Será que um deus, enquanto eu dormia, subtraiu-me algo? Em verdade, o suficiente para formar uma mulherzinha!
Admirável é a pobreza de minhas costelas!”, assim já falou mais de um homem do presente.
Sim, fazeis-me rir, homens do presente! E especialmente quando vos admirais de vós mesmos!
E ai de mim se não pudesse rir de vossa admiração, e tivesse de beber tudo de repugnante de vossas tigelas!
Mas eu vos tomo de maneira leve, pois tenho coisa pesada a carregar; e que diferença faz se besouros e vermes alados ainda pousam em minha trouxa?
Em verdade, ela não me ficará mais pesada por isso! E não me virá de vós o grande cansaço, ó homens do presente! —
Ah, para onde devo ainda subir com o meu anseio? De todos os montes lanço o olhar, em busca de pátrias e mátrias.
Mas terra natal não encontrei em lugar nenhum: errante sou em todas as cidades, e me acho de partida em todos os portões.
São-me alheios, e um escárnio para mim, os homens do presente, aos quais há pouco tempo me impelia o coração; e expelido sou eu de pátrias e mátrias.
Então amo apenas o país de meus filhos, ainda não descoberto, no mais distante mar: a ele ordeno que minhas velas busquem sem cessar.
Em meus filhos quero reparar por ser filho de meus pais: e em todo o futuro — por este presente!
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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