sábado, 21 de setembro de 2019

O Velho Sussurro da Morte

Jack vendeu os cavalos e tornou a vagabundear, desencorajado mas não profundamente magoado. Uma noite, jogando cartas em Nevada City, ele foi até um beco para mijar, e viu um velho índio deitado, meio amassado contra o muro. Quando Jack se aproximou e se inclinou para ajudá-lo, notou que o homem fora esfaqueado diversas vezes e estava à beira da morte. Jack virou-se para procurar ajuda, mas uma mão de ferro agarrou-o pelo tornozelo.
Epa, compadre – disse Jack –, não fui eu quem fez isso aí, não. Tô indo buscá um médico.
O índio abanou a cabeça, mas largou seu tornozelo, fazendo sinal para ele se inclinar. Quando Jack se ajoelhou, o índio enfiou-lhe um pedaço de papel na mão e falou num sussurro sibilante e borbulhante, enquanto morria:
Beba isso. Sossega. Você vai viver pra sempre.
Jack abriu o papel dobrado. Era uma receita de uísque.
Não parece ter feito muito bem a você, não – disse ao cadáver do índio.
Mas algo nos olhos vítreos do morto o tocou e, sem olhar para outra carta naquela noite, Jack voltou ao quarto de hotel, fez as malas e foi para casa, para o rancho.
O uísque o ajudava a ficar quieto. Um gole do Velho Sussurro da Morte deixava a maioria dos homens de joelhos; dois produziam uma catatonia levemente alucinatória. A receita era de um destilado que, segundo Jack calculava, era quase 97% puro, a essência condensada dos vapores divinos. Ele se devotou a refiná-lo ainda mais. Jack nasceu durante os tempos da seca nas colinas do Kentucky, fora agraciado, por herança e sensibilidade, com a maestria nesse ofício e, com essa maestria veio o início da arte. Nos processos de fermentação e destilação, encontrou não somente metáforas que lhe satisfaziam o espírito, mas também um produto que o prolongava.
Viveu no rancho durante a década e uma seguinte. Entre a produção de 200 litros no celeiro e os afazeres diários da própria subsistência, passava o tempo livre sentado na varanda, bebericando os frutos da sua labuta, enquanto dava asa à sua imaginação. Chegou mesmo a fazer algumas viagens – sempre a pé – para visitar os vizinhos nas colinas das redondezas. A princípio, o que esperava era trocar seu uísque por outros prazeres, mas os vizinhos – na maioria criadores de ovelhas e muitos trabalhadores – não tinham seu gosto nem sua tolerância por bebidas altamente refinadas, se bem que a maior parte acabasse encontrando outros usos para o elixir. Usavam-no como combustível de tratores, como explosivos para toras de árvores e, diluído v uma gota em meio litro d’água–, no tratamento de quase tudo o que atacava o rebanho, de disenteria a vermes pulmonares. Com uma horta malcuidada, algumas galinhas, um pouco de caça e pesca, e uma renda razoável e regular proveniente dos jogos de pôquer que oferecia nas noites de sábado, Jake ia vivendo. Desenvolveu um sentido de suficiência altamente flexível. Quando o uísque era pouco, sempre conseguia juntar os ingredientes para fazer mais, e ignorava bonachonamente qualquer coisa que lhe parecesse além de suas necessidades de satisfação imediata. Conservava-se um homem de necessidade simples, e isso o ajudava.
Recebeu uma carta da filha. Ela escreveu pata lhe dizer que estava grávida e precisava de dinheiro. Mandou-lhe um cartão-postal como resposta:

Querida Gabe:
Case-se. Minhas mulheres se deram muito bem e, a não ser que você tenha ficado mais sem graça que um saco de beterrabas, tenho certeza que também se daria bem. Prazer ouvir que vou ser vovô. Me dê notícia do resultado e, se as coisas correrem mal, será bem-vinda por aqui, apesar de eu achar que você não iria gostar. Não posso ajudá-la com dinheiro porque não tenho muito.
Seu pai.

Levou quase a tarde inteira para escrever o cartão. Com exceção do nome que assinava nas notas para fichas, era a primeira vez que escrevia em quase 20 anos. A carta de Gabriela também era a primeira que recebia nesse mesmo intervalo de tempo ou, pelo menos, a primeira carta pessoal – havia envelopes do governo, ocasionalmente, mas não queria nada com eles e não podia pensar em coisa alguma que pudessem querer dele, portanto os jogava na lareira.
Jim Dodge, in Fup

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