sábado, 21 de setembro de 2019

O planetas das peúgas rotas (trecho)

[…] A verdade é que nós somos sempre não uma mas várias pessoas e deveria ser norma que a nossa assinatura acabasse sempre por não conferir. Todos nós convivemos com diversos eus, diversas pessoas reclamando a nossa identidade. O segredo é permitir que as escolhas que a vida nos impõe não nos obriguem a matar a nossa diversidade interior. O melhor nesta vida é poder escolher, mas o mais triste é ter mesmo que escolher.

Caros amigos:

As palavras moram tão dentro de nós que esquecemos que elas têm uma história. Vale a pena interrogar a palavra “pessoa” e é isso que farei, de modo simples e sumário. A palavra “pessoa” vem do latim persona. Esse termo tem a ver com máscara, tem a ver com Teatro. Persona era o espaço que ficava entre a máscara e o rosto, o espaço onde a voz ganhava sonoridade e eco. Na sua origem, a palavra “pessoa” referia um vazio que era preenchido por um fingimento, o fingimento do ator que, tal como eu perante o traveller’s check, representava uma outra personagem. Veremos que não estamos longe dessa origem, em que nos escondemos por trás de uma máscara na encenação dessa narrativa a que chamamos “a nossa vida”.
Nas línguas do sul de África, a palavra “pessoa” é uma categoria particularmente interessante. Um linguista alemão notou no século XIX que muitas línguas africanas do Sul do Sahara diziam “pessoa” usando basicamente a mesma palavra: muntu, no singular, e bantu, no plural. Ele chamou a esses idiomas de “línguas bantus” e, por extensão, os próprios povos passaram a ser designados de “povos bantus”. O que é estranho porque, à letra, se estaria dizendo que existe um conjunto de povos ao qual se chama os “povos pessoas”. Recordo-me de um tocador de mbira, um camaronês chamado Francis Bebey que encontrei na Dinamarca. Perguntei-lhe se tocava música bantu e ele riu-se de mim e disse: “Meu amigo, os chineses são tão bantus como nós, os africanos”.
De qualquer modo, a ideia de pessoa em África tem origem diferente, e percorreu caminhos diversos da concepção europeia que hoje se globalizou. Na filosofia africana cada um é porque é os outros. Ou dito de outro modo: eu sou todos os outros. Chega-se a essa identidade colectiva por via da família.
Nós somos como uma escultura maconde uja-ama, somos um ramo dessa grande árvore que nos dá corpo e nos dá sombra. Distintamente daquilo que é hoje dominante na Europa, nós olhamos a sociedade moderna como uma teia de relações familiares alargadas. Como veremos, esta visão tem dois lados: um lado positivo que nos torna abertos e nos conduz àquilo que é universal; e um outro lado, paroquial e provinciano, que nos aprisiona na dimensão da nossa pequena aldeia. A ideia de um mundo em que todos somos parentes é muito poética mas pode ser pouco funcional.
Todos conhecemos o discurso do moçambicano comum: o governo é o nosso pai, nós somos filhos dos poderosos. Esta visão familiar do mundo pode ser perigosa, pois convida à aceitação de uma ordem social como se ela fosse natural e imutável. A modernidade está soprando nos nossos ouvidos algo muito diverso que obriga a um rasgão dentro de nós. Ao contrário dos pais, que não se escolhem, os dirigentes escolhem-se. A empresa e a instituição não são um grupo de primos, tios e cunhados. A sua lógica de funcionamento é impessoal e obedece a critérios de eficiência e rendibilidade que não se compadecem com compadrios de parentesco. Podemos usar sapatos com ou sem meias furadas. Difícil é vestir as peúgas depois de calçar os sapatos.
Temos de nos pensar num mundo em rápidas transformações. A velocidade de mudanças na sociedade moderna faz com que certas profissões se tornem rapidamente obsoletas. No Brasil, por exemplo, a computorização do sector bancário reduziu 40% dos empregos nos últimos sete anos. Isso implica mudanças dramáticas com impactos sociais graves. Estamos na crista da onda de mudanças que não são apenas tecnológicas. Os telemóveis são um exemplo de alguma coisa que deixou de ser apenas uma coisa, um simples objeto utilitário. Os telemóveis passaram a fazer parte de nós, tanto que, se nos esquecemos deles, ficamos vazios, desarmados, como se tivéssemos deixado em casa um braço que não sabíamos que tínhamos.
Esta sutil ocupação vai para além das nossas vidas privadas. O crime organizado, por exemplo, passou a ser comandado a partir das prisões. As notícias que se seguiram depois do julgamento do caso do assassínio de Carlos Cardoso mostraram-nos o que outros já sabiam: prisioneiro não é o que está dentro das paredes gradeadas, prisioneiro é quem não tem acesso ao telemóvel.
A própria noção de distância deixou de ser medida em termos de quilômetros. Queremos saber se para onde vamos há rede telefônica. O fim do mundo é onde não há cobertura de antena.
É verdade que as novas tecnologias não costuram os buracos na nossa roupa interior, mas elas ajudam a alterar as redes sociais em que nos fabricamos. Em muitas línguas africanas a palavra para dizer “pobre” é a mesma que diz “órfão”. Na realidade, ser pobre é perder as redes familiares e as de teias de aliança social. Mora na pobreza quem perdeu o amparo da família. Num futuro muito breve, o verdadeiro órfão é aquele que não dispõe de computador, telemóvel e de cartão de crédito.
Apesar de tudo, vivemos numa sociedade que tem uma característica muito curiosa: aqui se glorifica o indivíduo mas nega-se a pessoa. Parece um contra-senso, mas não é. Afinal, há distância entre estas duas categorias: indivíduo e pessoa. Indivíduo é um ser anônimo, sem rosto e sem contorno existencial. A história de cada um de nós é a de um indivíduo a caminho de ser pessoa. O que nos faz ser pessoa não é o Bilhete de Identidade. O que nos faz pessoas é aquilo que não cabe no Bilhete de Identidade. O que nos faz pessoas é o modo como pensamos, como sonhamos, como somos outros. Estamos, enfim, falando de cidadania, da possibilidade de sermos únicos e irrepetíveis, da habilidade de sermos felizes.
Um dos problemas do nosso tempo é que perdemos a capacidade de fazermos as perguntas que são importantes. A escola nos ensinou apenas a dar respostas, a vida nos aconselha a que fiquemos quietos e calados. Uma das perguntas que pode ser importante é esta: O que é que nos dificulta o caminho para transitarmos de indivíduos para pessoas? O que precisamos para sermos pessoas a tempo inteiro?
Não tenho a pretensão de apontar as respostas certas. Mas tenho a impressão de que um dos principais problemas, um dos maiores buracos na nossa peúga é pensarmos que o sucesso não é fruto do trabalho. Para nós o sucesso, em qualquer área, surge como resultado daquilo que chamamos “boa sorte”. Resulta de se ter bons padrinhos. O sucesso resulta de quem se conhece e não daquilo que se conhece. […].
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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