sábado, 17 de março de 2018

Canetti na cozinha

Sonho que Elias Canetti me convida para jantar. Recebe-me na cozinha, ele mesmo prepara a massa. Enquanto trabalha no molho, abrimos uma garrafa de vinho e conversamos. “Falo para seguir o método de Confúcio”, me diz. “Falar é uma maneira de desenhar nosso retrato espiritual.”
Digo que é uma pena que suas ideias se percam entre os vapores do carbonara. Ainda posso sentir o cheiro forte do toucinho. Canetti me encara. “Você tem razão. Devia ser possível dizer tudo em poucas palavras.” Suspira e continua: “Enquanto não se pode fazer isso, não há realmente o que dizer”. E, com o rosto borrado de fumaça, silencia.
Acordo. Encontro em minha cabeceira um exemplar de Sobre os escritores (José Olympio, tradução de Ivo Barroso), reunião de anotações e aforismos inéditos de Canetti, organizada por Penka Angelova e Perer von Matt. Eu o lia antes de dormir. Corro às notas dedicadas a Confúcio e a Heráclito; lá estão as frases que meu sonho, confusamente, repetiu.
Não é a primeira vez que sonho com frases. Semanas atrás, com a cabeça coberta por um turbante negro, Simone de Beauvoir me dizia em um pesadelo: “Não podemos jamais nos conhecer, só podemos nos narrar”. A frase me despedaça. Literalmente: pedaços de meu rosto – uma orelha, uma sobrancelha, a ponta do nariz – rolam para o chão. Acordo em pânico. É atordoante a ideia de que estamos condenados ao desconhecimento. Tudo o que nos resta, diz Simone, é inventar.
Mais calmo, folheio o livro de Canetti e esbarro em uma anotação dedicada a Chuang Tse, o discípulo de Lao Tse. Diz Chuang que os ventos são a maneira que o cosmos encontra para respirar. A vida é respiração. Penso nos vapores que nos envolviam em meu sonho: são a respiração da cozinha. Também nas anotações de Canetti, as ideias sopram.
Acredita Canetti que os pensamentos se parecem com as tempestades. Sopram e atordoam. Alguns filósofos nos dispersam: Aristóteles. Outros nos oprimem: Hegel. De alguns nos gabamos: Nietzsche. Outros nos fazem respirar – e aqui voltamos a Chuang Tse.
Escrevendo sobre Confúcio, Elias Canetti observa a força do impalpável – como a que se esconde nos tremores, nos suspiros e nas ventanias. O impalpável nos preenche. Compara: “Como se as lacunas nada mais fossem que as conhecidas dobras de trajes”. As palavras são uma prova definitiva disso. Nada mais impalpável que a palavra. E, no entanto, sem ela não existimos.
Também Canetti escreve como quem respira. Suas anotações nos sacodem e nos vergam. Não se pega o vento: ele não se deixa aprisionar. Canetti escreve como um poeta, com arroubos e fervor. Através de sopros – como um deus criador. Em plena desordem, sem nenhuma esperança de coerência. Ele mesmo diz: “Sem a desordem da leitura não existe o poeta”.
Severo, porém, esclarece: “Eu não sou poeta, pois não sei calar”. Seu livro desmente essa afirmação. Ele mesmo, logo depois, se corrige: “Mas muitas pessoas dentro de mim – que eu não conheço – calam. Suas irrupções eventuais me tornam poeta”.
Gosto da ideia de que o poeta é – para roubar uma expressão de Antonio Tabuchi a respeito de Fernando Pessoa – “uma valise cheia de gente”. No meio da noite, muitas vezes, e mesmo sem ser poeta, também acordo com esse falatório interior. Frases se movem dentro de mim. Durante o dia, silenciosas, elas serpenteiam. À noite, de repente gritam.
Lembra Canetti que somos filhos da tradição da ordem. No romance, exemplifica, a ordem começa com Flaubert. “Ali não existe nada que não tenha sido peneirado.” Ela atinge sua perfeição em Kafka. Mas é tudo muito precário. Canetti percebe em Kafka, o metódico, o sopro desordenado de Dostoiévski, o louco. É a respiração ofegante do escritor russo que sustenta a ordem kafkiana. É a desordem que, submersa, alimenta a ordem.
Prefere Canetti, por isso, os “poetas desordenados”. Que podem dormir dentro de grandes narradores, como Charles Dickens. Não esconde, porém, a contradição de que se alimenta: não existe escritor que ele ame mais que o duro Stendhal. Aprecia, em particular, sua ingenuidade: “Ele não se envergonha de nenhum dos sentimentos”. Em Stendhal, tudo está exposto.
Volto ao sonho da cozinha. Com delicadeza, Canetti manipula a pancetta picada, o creme de leite, a pimenta. Como Flaubert, ele aposta na dosagem dos temperos – que não passam, aliás, de brisas com que refrescamos os alimentos. “Temperos sopram a comida”, ele me diz no sonho.
É o que admira em Stendhal: a capacidade de suspirar. “Jamais abri alguma página sua sem me sentir leve e iluminado.” E completa, para que não o tomem pelo discípulo metódico que não é: “Ele nunca foi a minha lei. Mas foi a minha liberdade”.
Quando fala de sua predileção pelo silêncio, Canetti faz uma defesa da pausa e do recolhimento. Um escritor deve saber esperar. Como o cozinheiro que, paciente, aguarda que as cebolas dourem, também o escritor deve se conservar em compasso de espera, até que as palavras estalem.
Nas horas de silêncio, Canetti tomava notas – que agora tenho o privilégio de ler. Não para dizer, mas para que algo se dissesse. Na escrita, ele argumenta, o escritor é o último a saber o que diz. O próprio crítico (eu?) deve privilegiar a ignorância. Anota: “O crítico como ponte mnemônica, todos o entendem, mas ele não entende nada”. Não é fácil aceitar que o principal sempre escapa.
Com suas notas, Elias Canetti faz crítica literária. Mas criticar não é derreter um livro na gosma das leituras prévias, das teorias, das ideias prontas. “Há os que se entregam à língua para dissolvê-la”, Canetti diz. “E outros que estremecem ao tocá-la.” Não para mistificar as palavras ou tomá-las como sagradas. Mas para aceitá-las.
Tampouco para delas fazer um glacê, pois a língua deve sempre preservar a aparência dos assados sangrentos. Diz Canetti: “Ah, como tenho nojo das palavras intencionalmente enigmáticas!”.
Canetti aposta no poder fundador da palavra. A palavra não é um espelho, um bisturi, um objeto de decoração. Ela é – e isso deveria bastar. Afirma: “O que um poeta não vê não aconteceu”.
José Castello, in Sábados inquietos

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