segunda-feira, 6 de maio de 2024

Por uma existência plural: a "Violeira" e a migração feminina no imaginário brasileiro contemporâneo


Falando das grandes secas que assolaram o Nordeste no final do século XIX, Euclides da Cunha lembrava que a única preocupação dos poderes públicos, então, era eliminar das cidades os miseráveis que chegavam em bandos, doentes e famintos. “Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores” e mandavam aquela gente para a Amazônia, “expatriados dentro da própria pátria”, sem com eles enviar um só agente público, ou um médico. “Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem...”(1)
Mais de cem anos depois, a migração interna ainda é um problema mal resolvido no país. Mal resolvido mesmo em nosso imaginário cultural, do qual os migrantes continuam sendo banidos, seja por sua ausência dentro de representações artísticas que pretendem dizer do Brasil de hoje, seja por sua constante vitimização na cidade grande – a partir da construção de personagens migrantes que são tão exploradas, sofrem tanto nas metrópoles, que parecem estar ali apenas para, em missão didática, nos esclarecer que esse, definitivamente, não é o seu lugar.
O fluxo migratório no Brasil é intenso e coloca em movimento pessoas de todas as classes sociais. No entanto, apenas os pobres são vistos, e designados, como migrantes. Ou seja, o deslocamento das classes médias e das elites é entendido como algo natural e que não implica, necessariamente, em uma marca identitária. Marca que leva consigo o sinal de menos para aqueles que a transportam – especialmente se for uma mulher e estiver migrando sozinha, sem pai ou marido (uma realidade que, segundo as estatísticas, é crescente no país).
Buscar, em meio à nossa produção cultural, representações dessa mulher que não sejam preconceituosas ou marcadas pelo lugar-comum pode ser uma tarefa árdua, ainda mais se estivermos atrás de protagonistas, de mulheres que sejam agentes ativas do processo migratório. Afinal, as sagas da migração, seja ela interna ou externa, ainda são narrativas essencialmente masculinas – a história dos percalços do pai de família que migra e garante melhores oportunidades para seus filhos.
Mas, com certo esforço, é possível evocar, aqui e ali, algum exemplo bem realizado de mulheres migrantes que se contrapõem a essa imagem. Uma delas é a Violeira – personagem da canção com o mesmo nome, com letra de Chico Buarque sobre melodia de Tom Jobim –, que desde 1983 vive sua sina, sair do interior do Nordeste e atravessar o país para morar no Rio de Janeiro. Basta ligar o rádio em uma tarde ensolarada, pôr o disco para tocar em meio a uma reunião com os amigos, acessar o iPod no caminho de casa e ela volta a fazer sua jornada diante de nós, lá do sertão do Quixadá até Ipanema, desviando dos empecilhos e das raízes que lhe querem enxertar.
É uma viagem solitária, não na realidade social (em que, como já disse, acontece com uma frequência cada vez maior entre as mulheres), tampouco no interior da própria narrativa (a protagonista vai vivendo enquanto persegue seu sonho, encontra homens no caminho, tem filhos que vão sendo incorporados ao trajeto). É solitária no campo das representações artísticas, em meio aos discursos que possuem impacto na formação de um imaginário cultural. Imaginário esse que é constantemente acessado, como repertório de significados, cada vez que nos colocamos diante de um outro, daquele que não é costumeiramente “visível” no espaço social que habitamos.
Nesse sentido, a Violeira ganha força se aproximada de duas outras viajantes solitárias, que vivem em chãos bastante diferentes: a Macabéa, do romance A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, e a Hermila, do filme O céu de Suely (2006), dirigido por Karim Ainouz. São três trajetórias bem diversas: encontramos Macabéa já morando e trabalhando na capital carioca; Hermila, por outro lado, é vista em seus preparativos para a partida; só da Violeira acompanhamos o trajeto todo de ida para o Rio de Janeiro. São, as três, jovens, muito pobres, e absolutamente certas do que querem para suas vidas: morar na cidade grande.
Mas, para elas, esse não é um sonho fácil, afinal todo espaço é um território em disputa, seja ele inscrito no mapa social ou constituído numa narrativa. Daí o estabelecimento das hierarquias, às vezes tão mais violentas quanto mais discretas consigam parecer: quem pode passar por esta rua, quem entra neste shopping, quem pode contar a própria história, qual dessas histórias vai ser ouvida... A não concordância com as regras implica avançar sobre o campo alheio, o que gera desconforto e conflito, quase sempre muito bem disfarçados. Dentro desse jogo de forças, é importante observar como essas três narrativas incorporam em seu interior a tensão resultante do embate entre os que não estão dispostos a ficar em seu devido lugar e aqueles que querem manter seu espaço descontaminado. E não são poucas as forças que empurram as três protagonistas para fora do caminho.
Macabéa é construída como a personagem de um outro, Rodrigo S.M., que nos diz escrevê-la a partir do “sentimento de perdição” que captou no ar ao observar o rosto de uma moça nordestina na rodoviária. Desenhando-a para nós, Rodrigo dirá que ela é feia e suja, que sente fome o tempo todo, que é atoleimada, que não pensa, que não tem sonhos, que não faz seu trabalho direito, é um “parafuso inútil” na engrenagem. Por fim, ele a mata, a atropela, expulsando-a da narrativa e da cidade, como “um vago sentimento nos paralelepípedos sujos”.
Ainda assim, humilhada, silenciada, esmagada contra os paralelepípedos da cidade, a Macabéa que surge diante de nós é uma jovem que trabalha em um escritório como datilógrafa, que tem um namorado, que ouve rádio, lê jornais e revistas, vai ao cinema, ao médico, à lanchonete, à cartomante, anda, enfim, livre pelas ruas do Rio de Janeiro. Macabéa não nos parece infeliz, como insiste Rodrigo S.M. Ao contrário, é dona de sua vida e de seus passos, não deve satisfação a ninguém, não tem nenhuma autoridade masculina a quem se reportar. Não é a cidade que a destrói, a cidade lhe dá vida e espaço, quem a mata é seu autor, porque não sabe o que fazer com ela, porque acha que ela não cabe no mesmo lugar que ele.
Se Macabéa – ao contrário da Violeira, que fala em primeira pessoa – nos é contada por um outro, que sobrepõe sua própria imagem à dela, a Hermila de O céu de Suely aparece diante de nós sem sombras, de corpo inteiro – somos testemunhas de sua angústia. O filme começa com a moça voltando com o bebê para Iguatu, no sertão cearense, depois de uma temporada em São Paulo. O marido, que iria reencontrá-la ali, simplesmente não aparece e ela logo percebe que precisa ir embora daquele lugar. Sem dinheiro, e sem condições de consegui-lo, Hermila decide rifar o próprio corpo. Com o que arrecada, pretende ir o mais longe possível – no caso, Porto Alegre.
Em Iguatu, temos uma moça que é acolhida pela avó e por uma tia, que cuidam do seu filho, lhe dão casa, comida e afeto; uma moça que reencontra um antigo namorado, meigo e ainda apaixonado; uma moça que decide abandonar tudo isso, vendendo seu corpo para “migrar”. Ela corroboraria a ideia de que são jovens sem juízo e sem moral, prostitutas, enfim, que partem de seus chãos de origem em busca de sabe-se lá o quê. Mas não é essa a intenção do filme. Se encontramos ali os olhares acusadores, as ofensas e ameaças contra a jovem (incluindo a vergonha expressa pela avó e a possibilidade sempre presente de a polícia intervir), temos também a sua perspectiva, o seu olhar desconsolado para um lugar sem qualquer futuro para si. Ela nos é apresentada como uma pessoa que tem dignidade, que sabe o que quer e que tem pouca escolha para realizar seu sonho.
Se Hermila não diz o que espera da cidade para onde vai, ela também não anuncia o que a incomoda em Iguatu. Mas nós vemos – o isolamento do lugar, a falta do que fazer, os olhos de todos voltados sobre si, a pobreza e a feiura de um vilarejo que a câmera insiste em não idealizar. É que o filme não foi feito para julgar Hermila, mas para perguntar, a cada um(a) de nós, “o que você faria se estivesse em seu lugar?”. O que parece estar em discussão, portanto, é por que ela não teria direito de fazer tudo para ir embora dali. E a história termina com a jovem dentro do ônibus, partindo. Seu futuro está em aberto – o antigo namorado fica para trás (como todos os homens da Violeira) e não há sinal de nenhum Rodrigo S.M. a interceptar-lhe o caminho pela frente.
A Iguatu de Hermila serve, assim, para visualizarmos a Quixadá da Violeira, que não chega a ser descrita na canção. Da mesma forma que o trânsito de Macabéa pelas ruas do Rio de Janeiro pode nos dar uma dimensão dos passos futuros da Violeira (ou mesmo de Hermila na Porto Alegre aonde um dia vai chegar). As narrativas, portanto, complementam-se em suas diferenças, oferecendo, por exemplo, um antes e um depois possíveis para uma história feita quase que só de percurso. É na letra de Chico Buarque que acompanharemos, de fato, o trajeto migratório – e agora é a própria personagem quem nos conta sua história. É ali que encontramos a mulher que vai descendo do Nordeste em direção ao Rio de Janeiro. São anos de travessia, com encontros e desencontros, filhos que vão sendo gerados, vida que transborda, como os rios que ela navega.
Em quase metade da letra somos empurrados por uma narrativa que, se não segue sempre em frente (há idas e vindas no percurso da personagem), vai nos levar, junto com ela, à desembocadura da jornada: “Ver Ipanema / Foi que nem beber jurema / Que cenário de cinema / Que poema à beira-mar”. Não se trata, é claro, do fim do trajeto, porque o enfrentamento com as autoridades começa em seguida: “E não tem tira / Nem doutor, nem ziguizira / Quero ver quem é que tira / Nós aqui desse lugar”.
A hipótese de ser banida, de ter de voltar com os filhos para o sertão de Quixadá, é apontada por ela como um apagamento de sua história. Retornar seria desfazer ponto a ponto aquilo que faz dela quem é:

Será verdade
Que eu cheguei nessa cidade
Pra primeira autoridade
Resolver me escorraçar
Com a tralha inteira
Remontar a Mantiqueira
Até chegar na corredeira
O São Francisco me levar

Me distrair
Nos braços de um barqueiro sonso
Despencar na Paulo Afonso
No oceano me afogar
Perder os filhos
Em Fernando de Noronha
E voltar morta de vergonha
Pro sertão de Quixadá

Atravessar rios, perder os filhos, afogar-se – são metáforas para a ideia de anulação do trajeto. Voltar ao ponto de partida seria eliminar sua história, suas possibilidades (não só o passado, mas também o futuro): “Tem cabimento / Depois de tanto tormento / Me casar com algum sargento / E todo sonho desmanchar”.
Os versos finais, usados como refrão, reforçam o que foi dito na chegada à cidade, mas os termos mudam. Se antes o confronto possível é com a força da autoridade (o “tira” e o “doutor”), agora marca-se a disposição de enfrentar a força física: “Não tem carranca / Nem trator, nem alavanca / Quero ver quem é que arranca / Nós aqui desse lugar”.
Se Macabéa é a banida e Hermila a que volta para a cidade grande, a Violeira é aquela que se agarra e não vai embora. Há uma espécie de certeza de que esse é, sim, o seu lugar. A mesma certeza que podemos ver em Macabéa (quando Rodrigo S.M. sai da sua frente) ou em Hermila (não por suas palavras, mas por suas ações).
É atrás de novas oportunidades de vida que essas jovens migrantes vão. E o discurso moralizante e de controle das mulheres não as alcança, nem enquanto indivíduos, nem enquanto objetos da fala de um outro. “Reter o homem no campo” é o discurso – hoje já um tanto desgastado – de burocratas que não se dispõem a sair por um minuto sequer de suas confortáveis vidas urbanas. Boa parte do trabalho acadêmico ainda ecoa esse discurso, em que uma demanda acima de qualquer possibilidade de crítica (a necessidade de oferecer melhores condições de vida às populações do campo ou das pequenas cidades do interior) é contaminada por um viés de “contenção” que, em última análise, visa retirar a autonomia dessas pessoas. Vir para a cidade grande pode ser uma experiência emancipadora. E isso é ainda mais verdade para as mulheres.
Vale fazer um paralelo com o que Nancy Fraser observou sobre a mudança do trabalho agrícola familiar para o trabalho fabril assalariado, que a tradição marxista tende a definir simplesmente como “escravidão assalariada”. Se um camponês perde propriedade e autonomia ao se proletarizar, diz Fraser, é necessário pensar também na experiência de uma jovem que troca a “fazenda – com suas horas de trabalho indefinidas, supervisão paterna intrusiva e pouca vida pessoal autônoma – por uma cidade fabril, onde a intensa supervisão na fábrica era combinada com a relativa ausência de supervisão fora, bem como com a crescente autonomia na vida pessoal conferida pelo salário em dinheiro. Sob essa perspectiva, o contrato de emprego era uma liberação”(2). Da mesma forma, as migrantes talvez busquem, na balbúrdia e no anonimato da cidade grande, um espaço de liberdade.
A Violeira, como Macabéa ou Hermila, traz as marcas do Nordeste (em seus traços, sua pele, seu sotaque, suas lembranças), mas não pode ser identificada apenas por isso, porque, em seu trânsito pelo Brasil afora e pelas ruas do Rio de Janeiro, ela vai adicionando significados à sua existência, tornando plural sua identidade. Tanto é plural que nos pegamos, em algum momento, a partir de algum ângulo de nossa própria pluralidade, nos identificando com ela – o que não aconteceria se ela nos fosse apresentada apenas como a pobre migrante que a cidade grande engoliu. E é essa possibilidade de aproximação que causa estranhamento, que subverte o discurso hegemônico que fala sem parar dos perigos da cidade grande para as mulheres.
Ela certamente não é a representação de uma migrante nordestina, até porque os sonhos das inúmeras migrantes nordestinas não são iguais e não poderiam ser reduzidos a uma única experiência – redução que denota uma visão preconceituosa sobre as experiências de vida dos mais pobres. Ela é feita indivíduo, para que nos aproximemos de sua existência e percebamos as possibilidades por trás de cada jovem nordestina, ou cada jovem migrante.

(1). CUNHA, Euclides da. Obra completa, v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 276.
(a). FRASER, Nancy. “Beyond the master/subject model: on Carole Pateman’s The sexual contract”. In: Justice interruptus: critical reflections on the “postsocialist” condition. New York: Routledge, 1997, p. 230. (Tradução minha.)

Regina Dalcastagnè, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

Nenhum comentário:

Postar um comentário