sábado, 20 de abril de 2024

Sobre um acerto amor


Em um longo ensaio intitulado Os mitos do amor, ao analisar a história de personagens da Grécia antiga, deuses ou semideuses, Denis de Rougemont estuda a problemática desse sentimento determinante na formação do indivíduo. E escreve:

Eros, que era um deus para os antigos, é um problema para os modernos. O deus tinha asas, era encantador e secundário; o problema é sério, complexo e pesado.

Grande parte da produção artística de Chico Buarque – incluímos aqui canções, peças de teatro e romances – coloca diante de nós os delicados e complicados meandros do amor, comentados por Rougemont. Ciúme, alegria, tristeza, humilhações, súplicas, desprezo, tudo cabe aqui. Pela voz de Chico, por exemplo, canta o homem que observa a amada refletida nas vitrines da cidade, espalhando poesia pelo chão, alheia aos perigos para os quais ele a prevenira: “Te avisei que a cidade era um vão / [...] / – Não vai lá não”. Mas a mulher, triunfante, ignora olhares e súplicas, brinca de ser, multiplica-se, ri e se emociona no cinema, passeia pelas ruas indiferente a seu vigia, que recolhe restos de seu encanto espalhados pelo chão. Pela voz de Chico, o homem, deixado de lado, vê a amada que se vai, cujo corpo pede talvez outros amores. Vencido, tendo apenas o poema de sua agonia para lhe ofertar, o poema agora inútil, incapaz de competir com o esplendor da vida lá fora, ele se rende, aconselha: “Parte, [...] / Que a vida não espera / É uma primavera”.
Essa voz masculina chorosa, tantas vezes cantada pelo autor de “A banda”, pode também, mas raramente, se dizer insensível às dores de amor, que entretanto continua a sentir. Deixa de lado o tom de revanche e avisa: “Não vou lhe dar / O enorme prazer de me ver chorar” – e todos sabemos que ele vai chorar, sim, talvez entre os lençóis manchados.
As mulheres cantadas por Chico, sofridas ou felizes, são de um outro teor. Algumas, mesmo menosprezadas, resignadas, sabem construir para si um espaço de equilíbrio amoroso, realizando sozinhas o amor. Um pouco talvez aquilo que Rilke encara como o jeito feminino de cumprir o amor sem necessidade do amor total do outro. Aquela amada que conheceu uma hora inteira em que realmente existiu, experimentou o amor e nele encontrou refúgio, espaço, busca, pode até dispensar a presença do amado, como o fizeram Louise Labé ou Gaspara Stampa. A personagem de Chico prepara “Com açúcar, com afeto / [o] doce predileto” para o homem amado que não chega. Aceita até que ele encontre felicidade longe dela. E se satisfaz em beijar seu retrato.
Quase sempre a voz do artista canta a liberdade feminina recuperada após uma separação, a de quem conseguiu dar a volta por cima e reencontrou, de outro modo, a felicidade pessoal de outros tempos, assumindo uma nova condição de vida: esquece os sofrimentos do passado e se refaz. Sem queixas, sem atribuir culpa ao parceiro que a abandonou, conseguindo até ser delicada com ele. Trata-o afetuosamente por “meu bem”, ela que se tornou “bem demais”. Abre-lhe as portas da amizade e da casa que foi dele um dia:

Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim

E acrescenta, com um tom que não esconde um pequeno sentimento de revanche:

[...] quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

Na Ópera do malandro, comédia musical baseada na Ópera dos mendigos, de John Gay, autor do século XVIII, e na Ópera dos três vinténs, de Brecht e Kurt Weill, Chico põe em cena personagens de diversas classes sociais, sobretudo as chamadas subalternas, bicheiros, bandidos, mulheres da vida, vivendo o dia a dia da malandragem carioca, às voltas com as contradições do capitalismo moderno e do amor. Duran, proprietário de um bordel, diz ter “mil quatrocentas e trinta e duas funcionárias”, ajudado por Vitória, a esposa. Ele educa ou “investe” em Teresinha, a filha, para que ela seja recebida em altas rodas da sociedade, para que seja uma grande dama: “O que a gente aplicou nela é pra futura mulher de ministro de Estado, pelo menos”. Duran dirige seu negócio como um verdadeiro comerciante: paga salário mínimo, oferece carteira assinada, assistência médica e exige oito horas de trabalho. Um pai e um patrão duro, como o nome o sugere.
Mas eis que um dia Teresinha se rebela: mesmo envolvida pelos turbilhões da vida e do ambiente em que vive a família, consegue se impor, rompe com a autoridade do pai, escolhendo um marido ao seu gosto, um malandro que vive de falcatruas, Max. Teresinha sonha com uma vida pequeno-burguesa, sugere a Max uma casinha que é “uma graça”, no Cosme Velho, deseja ter luz elétrica, bonde na porta, telefone, policiamento por perto, num ambiente diferente daquele onde Max vive e lhe propõe viver. Escandaliza Duran, quando anuncia que se casou com Max, horroriza a mãe, que tenta inutilmente convencê-la do erro de tal casamento. Ousada, ela é peremptória. Chega a proclamar sem rodeios que está casada e emancipada. E acrescenta: “Vou viver do trabalho do meu esposo”. Quando Vitória, chocada, replica, ela ironicamente faz apelo à ideologia vigente na classe média. Vai viver do trabalho do esposo, como toda mulher decente. Fica implícito que ela se tornará igual às mulheres do mundo, sua mãe inclusive. Desconstrói em seguida a autoridade que a mãe busca exercer pela palavra: “Pode chamar de ladrão quanto quiser que eu nem ligo”.
Eu nem ligo.” Com essas palavras Teresinha se liberta da autoridade paterna e das pessoas que vivem ao seu redor, ou que apenas a conhecem. E se serve de outros argumentos que desqualificam as atividades financeiras de Duran, que empresta a juros de agiota, mora numa casa infecta da Lapa para melhor fiscalizar os negócios. Ante o espanto da mãe, ela faz apelo a lugares-comuns para justificar seu amor por Max: “O amor não tem fronteiras. O amor destrói barreiras. Só o amor constrói”.
A ideologia fala, pois, por ela e a justifica, num tipo de discurso que Vitória se apressa em desmentir, servindo-se de seu próprio exemplo: “se você ama uma pessoa, é lógico que não vai casar com ela”. A prova: seu casamento durou esses anos todos porque ela e Duran não se amavam.
Um dos momentos mais interessantes da Ópera do malandro, no que concerne à construção – irônica? contraideológica? divertida? inesperada? – de uma personagem feminina por meio de sua definição do amor, é certamente aquele em que Teresinha canta descrevendo o amado, as atitudes dele em relação a ela. E ela o faz ao lado de Lúcia: em contraponto as duas cantam, dividindo a cena, relatando quase de igual modo a descrição das suas relações físicas com o malandro. Até então o espectador ignorava a presença de Lúcia, que só agora aparece, revolucionando a ação dramática, o que levanta o interesse no desenrolar da história. Elas são rivais. Então sabemos que essa segunda personagem feminina também se considera esposa de Max.
Pouco antes da entrada de Teresinha em cena, Lúcia chega à delegacia onde Max se encontra preso e algemado. Ela descobriu que Max se casara e sua fala inicial atesta de sua determinação em disputar a preferência do malandro, insultando-o, e logo amansando a fala, ante as palavras melosas e enganosas do amado. Trata-o por “barba-azul de merda”, “canalha”, “veado”, “filho do cão”. Diz, antevendo o futuro, que vai aplaudir a cena de tortura que ele sofrerá dentro em pouco. A esse discurso exaltado, o malandro responde com apelos que fazem lembrar o amor e o carinho passados: “Lúcia, você se esqueceu do meu beijo”, “Você não tem dó da situação do teu marido?”. Para acalmar a mulher, lembra-lhe que está grávida e que o nervosismo é um perigo nos primeiros meses de gravidez. E pinta um futuro idílico, com a chegada do primogênito, o herdeiro, enquanto acaricia o ventre de Lúcia. O filho consolidará a união, será uma goma-arábica. Lúcia não se deixa enternecer, cobra uma quantia que Max lhe deve, deseja que morra e deixe viúva a rival. Segue-se um diálogo divertido em que os dois trocam insultos, mentem, atacam e se defendem, e que vai se encerrar com a chegada de Teresinha. “Mulher já não prima pelo intelecto”, diz Max, e acrescenta: “Quando tá com ciúme então, aí é que emburrece de vez”. Lúcia replica com o mesmo tom insultuoso: “Tô cagando [...]. Quero que você morra!”. Max amansa a mulher com abraços, reafirma sua paixão por ela e a elogia: “Quem já deitou contigo não esquece”.
É então que entra Teresinha, desprevenida. Desconhecia a existência da rival, que também não a conhece. Quando Teresinha se apresenta como “a senhora Max Overseas”, o tom das falas vai se elevar e os insultos se multiplicam, num crescendo que espicaça o interesse do espectador e o diverte, ele a quem o autor já deixou antever o quiproquó que se formará. Aqui as falas dos personagens se tornam curtas, pontuadas por ameaças, perguntas destinadas a fazer rir o espectador e esclarecer a situação das duas mulheres, entre elas e com relação a Max, o que torna mais eficaz e rápida a ação dramática:

LÚCIA: Ah, é? Andando com as putas de novo? Seu cachorro!
TERESINHA: [...] Max, você tá me ouvindo? Por que não olha pra tua esposinha?
LÚCIA: [...] Você nunca vai ver os cornos do teu filho, viu?
TERESINHA: Que filho?
LÚCIA: [...] Tá pensando que é chope?
[...]
MAX: Não exagera, tá?
[...]
LÚCIA: [...] Vai confessar ou não vai?

A disputa entre as duas mulheres vai se acirrando até que elas chegam ao argumento final e nisso finalmente elas coincidem, nas descrições do prazer que tiveram e têm nas relações sexuais com o malandro, moeda de troca entre os insultos e prova da importância que Max dá a uma e a outra. As falas vão alternar a evidência e o julgamento subjetivo:

TERESINHA: [...] O Max me protege.
LÚCIA: [...] O negócio do Max é aqui comigo.

Quando Lúcia ouve a rival falar de amor, evoca o que é para ela a maior prova de amor, do interesse do malandro por ela e do vigor sexual que ela consegue despertar nele:

LÚCIA: Te ama? Pois em mim ele dá cinco sem sair de cima.

Teresinha replica, as duas rivalizam em notações indicadoras da força que exercem seus corpos sobre o corpo do marido, com detalhes que divertem certamente a plateia:

TERESINHA: Comigo ele chora de prazer!
LÚCIA: Comigo ele rola no tapete!
TERESINHA: Comigo ele fica vesguinho...
LÚCIA: Comigo ele fala um montão de porcaria…

É então que a orquestra ataca a introdução da canção que as duas mulheres entoarão, alternadamente. Uma canção de amor, finalmente, em que a ternura implícita, a felicidade da plenitude física se diz, ora com sentimento e delicadeza, ora de modo grosseiro, como convém ao que o espectador espera da classe social a que pertencem as duas personagens. Sob a crueza de alguns detalhes, sente-se que pulsa algo mais sério, mais profundo, talvez, entre a troca de carinhos enunciada. Teresinha e Lúcia falam quase a mesma linguagem, denunciadora do prazer que dão e que recebem. Essa semelhança entre as duas, que as palavras corroboram, já se encontra nos dois primeiros versos de cada uma de suas falas:

O meu amor*
Tem um jeito manso que é só seu

O meu amor”. As duas assumem aqui ser possuidoras do homem. Conhecendo a grosseria do personagem de Max tal qual foi construído ao longo da peça, o espectador faz uma primeira constatação: é apenas no espírito das duas mulheres, levadas pela lembrança de momentos de amor, que o amor e o próprio Max se constroem. E que a relação sexual tem o dom de tornar delicado alguém que é normalmente bruto e enganador: o encontro do malandro com o corpo das duas mulheres o torna outro, manso, conforme enunciam. A primeira fala de Teresinha traz um laivo de emoção, sentimentalismo, que não encontramos no discurso de Lúcia. Teresinha fala de pele e de beijo calmo que chega até a alma. Só quando Lúcia mergulha em detalhes de suas relações com Max é que Teresinha vai mais longe, como se quisesse suplantar a rival, em descrições mais fortes. Lúcia fala de umbigo, mordidas, palavras indecentes, beijos na nuca, descreve movimentos envolvendo as coxas dos dois amantes. Teresinha replica, assinalando os beijos que Max lhe faz em partes de seu corpo, seios, ventre, sexo, que a deixam transtornada como acontece com a rival, servindo-se não de expressões banais e uma palavra como “maluca”, mas com uma expressão metafórica, mais rebuscada, portanto: “E o mundo sai rodando / E tudo vai ficando / Solto e desconexo”. Interessante notar o modo como Chico Buarque nos evidencia que, finalmente, as duas mulheres se valem e se unem, no gozo do amor sem pejo: as estrofes em que cantam juntas lembram ao espectador que a linguagem do amor é uma só, apesar das diferenças que caracterizam as pessoas.
A canção entoada por Lúcia e Teresinha é uma espécie de interlúdio que serve para fazer repousar o espectador, cansado talvez da velocidade com que fatos, diálogos rápidos e insultos se acumulam ao longo da peça. O que aqui acontece se passa igualmente em outros momentos, em que a voz do autor se enternece e nos enternece por meio de canções como “Doze anos”, “Teresinha”, “Pedaço de mim”. Ou ri e nos faz rir com outros textos como “Ai, se eles me pegam agora”. Fazendo-nos mergulhar em um certo momento da história da sociedade brasileira, Chico Buarque nos entrega com essa sua comédia musical um retrato do que fomos e do que somos, ao mesmo tempo em que coloca diante de nós toda a gama dos sentimentos contraditórios experimentados quando o amor e a paixão penetram no mais fundo dos indivíduos, qualquer que seja a classe social a que pertençam. Uma problemática comum a todos nós, sujeitos todos a nos tornar, um dia ou outro, joguetes daquele pequeno deus brincalhão de que fala Denis de Rougemont.

* Trecho da versão de “O meu amor” para a peça: Teresinha: “O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / E que me deixa louca / Quando me beija a boca / A minha pele toda fica arrepiada / E me beija com calma e fundo / Até minh’alma se sentir beijada // Lúcia: O meu amor / Tem um jeito manso que é só seu / Que rouba os meus sentidos / Viola os meus ouvidos / Com tantos segredos / Lindos e indecentes / Depois brinca comigo / Ri do meu umbigo / E me crava os dentes // As duas: Eu sou sua menina, viu? / E ele é o meu rapaz / Meu corpo é testemunha / Do bem que ele me faz”. Cf. BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. São Paulo: Círculo do Livro, 1978, p. 142-144.

Luzilá Gonçalves Ferreira, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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