quinta-feira, 29 de junho de 2023

As rãs | 5.


Minha tia havia chegado fazia tempo à idade de se casar. Mas ela ganhava seu próprio salário, ocupava função pública, comia grão comercial* e tinha uma origem familiar tão gloriosa que nenhum rapaz da aldeia nem sequer ousava pensar na possibilidade de pedir sua mão. Aos cinco anos, eu já ouvia com frequência minha tia-avó e minha avó conversarem sobre o casamento da minha tia. Minha tia-avó dizia, aflita: “‘Tia’,** veja só, Coração já está com vinte e dois anos. As outras moças dessa idade estão todas casadas, com dois filhos, mas Coração não recebeu sequer um pedido de casamento até agora. Como pode ser isso?”. E minha avó dizia: “Cunhada, para que tanta pressa? Uma moça como ela ainda vai se casar com um nobre, quem sabe, e virar imperatriz! Aí você vai ser sogra do imperador e entramos todos para a casa imperial, com certeza alguma benesse há de sobrar para nós!”. Minha tia-avó dizia: “Bobagem! Faz tempo que a revolução derrubou o imperador, vivemos na República Popular, quem manda agora é o presidente!”. Minha avó dizia: “Se é o presidente que manda, então vamos casar Coração com o presidente!”. Minha tia-avó dizia, furiosa: “Mas você, hein, está de corpo presente numa nova era e a cabeça ficou no passado, no tempo antes da Libertação”. Minha avó retrucava: “Não sou como você, passei a vida inteira nesta aldeia, você foi à Zona Liberada, foi a Pingdu”. Minha tia-avó dizia: “Nem me fale de Pingdu, falar desse lugar me dá arrepios! Fui sequestrada por aqueles demônios japoneses, o que passei lá foi um pesadelo e não um recreio!”. As duas cunhadas falavam e falavam até começarem a brigar. Minha tia-avó saía furiosa, como se nunca mais fosse voltar. No dia seguinte, estava ali de novo. Quando via as duas conversarem sobre esse assunto, minha mãe tinha de esconder o riso.
Lembro-me daquele fim de tarde em que a vaca lá de casa pariu um bezerro. Não sei se foi a vaca que imitou minha mãe, ou se foi o bezerro que seguiu meu exemplo: pôs primeiro uma perna para fora e ficou entalado. A vaca mugia desesperada, parecia sofrer terrivelmente. Preocupadíssimos, meu avô e meu pai esfregavam as mãos, batiam os pés, andavam em círculos sem saber o que fazer. A vaca é a menina dos olhos dos camponeses, ainda mais se pertence à coletividade e foi confiada aos nossos cuidados. Se morresse, aí sim estaríamos em apuros. Minha mãe chamou minha irmã num canto e disse a ela: “Filha, parece que sua tia já está de volta”. Minha irmã saiu correndo antes mesmo que ela terminasse a frase. Meu pai lançou à minha mãe um olhar atravessado: “Você não tinha nada que se meter nisso! Ela trabalha com gente!”. E minha mãe respondeu: “Gente ou bicho, a lógica é a mesma!”.
Minha tia e minha irmã chegaram juntas.
Assim que entrou pela porta, a tia explodiu: “Vocês querem me matar de cansaço? Já ando ocupada demais com gente e vocês ainda me chamam para cuidar de vaca!”.
Irmãzinha”, sorriu minha mãe, “quem mandou você ser da família? Quem mais podíamos procurar? Não dizem que você é um bodisatva de carne e osso? Pois um bodisatva ajuda todos os seres a atravessar o oceano da existência, socorre tudo que é ser vivo, a vaca pode ser um animal, mas também é um ser vivo, vai lhe negar socorro quando estiver à beira da morte?”
Cunhada”, disse minha tia, “ainda bem que você não sabe ler, se soubesse ler mais que duas cestas de palavras, quem é que poderia com você nesta aldeia?”
Mesmo que eu soubesse oito cestas de palavras, nem chegaria aos seus pés, irmãzinha”, respondeu minha mãe.
Minha tia ainda estava de cara amarrada, mas era evidente que a raiva tinha passado. Já estava escuro, minha mãe acendeu as lamparinas da casa, aumentou os pavios e levou tudo para o estábulo.
Assim que viu minha tia, a vaca dobrou as duas pernas dianteiras e ajoelhou-se. Vendo o animal nessa posição, minha tia desatou a chorar.
Todos nós choramos com ela.
Minha tia examinou a vaca e disse, misturando gozação e piedade: “Mais um que quer nascer pela perna”.
Mandou que a gente fosse para o pátio, receava que ficássemos muito impressionados com a cena. Ouvíamos a tia dar ordens em voz alta e imaginávamos nossos pais sob o seu comando, ajudando a vaca a parir. Era o dia 15 do calendário lunar, quando a lua assoma pelo sudeste e derrama no mundo um brilho imaculado. “Pronto, nasceu!”, gritou a tia.
Entramos empolgados no moinho, que servia de estábulo, e vimos ao lado da vaca um bezerrinho coberto de um líquido viscoso. “Que bom, é uma bezerrinha!”, disse meu pai, animado.
Minha tia se zangou: “Que estranho, quando a mulher tem uma menina os homens torcem o nariz, mas quando a vaca tem uma bezerra, ficam rindo de orelha a orelha”.
Meu pai falou: “Mas a bezerrinha quando crescer vai dar cria”.
E a gente? A menina quando cresce não vai ter filhos?”, questionou minha tia.
Mas aí é diferente”, disse meu pai.
Diferente como?”, ela perguntou.
Percebendo que minha tia se exaltava, meu pai encerrou a conversa por aí.
A vaca virou a cabeça e começou a lamber o líquido viscoso da bezerrinha. Sua língua parecia conter algum remédio milagroso, distribuía vigor por onde passava. Assistíamos à cena profundamente emocionados. Olhei minha tia pelo canto do olho, ela estava com a boca entreaberta e os olhos cheios de ternura, como se fosse ela que estivesse sendo lambida pela vaca, ou como se ela mesma lambesse a cria. Depois de ter sido quase toda lambida pela mãe, a bezerrinha se levantou, trêmula.
Fomos buscar bacia, água, sabão e toalha para minha tia lavar as mãos.
Sentada diante do fogão, minha avó atiçava o fogo com um fole. Minha mãe, em pé na frente do kang, abria a massa de macarrão.
Minha tia terminou de lavar as mãos e disse: “Estou morta de fome. Hoje vou jantar aqui na sua casa”.
Aqui é sua casa também, não é?”, respondeu minha mãe.
Pois é”, emendou a avó, “até parece que não comemos da mesma panela por tantos anos.”
Nisso, minha tia-avó gritou do outro lado do muro chamando a tia para comer. Minha tia gritou de volta: “Não posso trabalhar para eles de graça, vou comer aqui”. Minha tia-avó preveniu: “Sua tia vive na penúria, se você comer uma tigela de macarrão aí, ela vai se lembrar disso para o resto da vida”. Minha avó correu para o muro com o pau de atiçar fogo na mão: “Se está com tanta vontade, venha comer conosco. Se não quiser, volte para o seu canto”. Minha tia-avó desdenhou: “Não como dessa sua comida nem morta”.
Quando o macarrão ficou pronto, minha mãe serviu uma tigela bem cheia e mandou minha irmã levar para minha tia-avó. Só muitos anos depois fiquei sabendo que minha irmã, na pressa, tropeçou e caiu como um cachorro que despenca na merda, derrubou todo o macarrão e ainda quebrou a tigela. Para livrar a sobrinha-neta do puxão de orelha, minha tia-avó pegou uma tigela de sua cozinha, deu à minha irmã e mandou-a de volta para casa.
Minha tia é muito conversadeira, sempre adoramos ouvi-la. Terminada a refeição, sentou-se na beirada do kang com as costas apoiadas na parede e começou a desfiar seu repertório. Ela cruzou o batente de muitas casas, viu todo tipo de gente, ouviu muitas histórias. Quando contava um caso, não economizava nas cores fortes. Isso deixava sua narrativa tão envolvente quanto a de um contador profissional. No início dos anos 1980, assistíamos ao programa da contadora de histórias Liu Lanfang na televisão e minha mãe comentou: “Não é igualzinha a sua tia? Se ela não fosse médica, daria uma boa contadora de histórias!”.
A conversa daquela noite, mais uma vez, começou com o choque de inteligência e coragem entre minha tia e o comandante Sugitani em Pingdu. “Eu tinha sete anos naquele tempo”, disse ela, me lançando um olhar, “era mais ou menos do tamanho de Corre Corre quando fui levada para Pingdu com sua tia-avó e sua bisavó. Ao chegar lá, fomos trancadas num quarto escuro. A porta era guardada por dois enormes cães-lobos acostumados a comer carne humana. Quando viram a criança que eu era, lamberam os beiços. Sua tia-avó e sua bisavó choraram a noite toda, mas eu não chorei, encostei a cabeça e dormi até clarear o dia. Ficamos não sei quantos dias e quantas noites trancadas naquele quarto escuro, até que nos levaram para um pequeno pátio isolado onde crescia um pé de lilás. Ah, que perfume! Até fiquei tonta. Uma autoridade local chegou de túnica e chapéu para dizer que o comandante Sugitani queria oferecer um banquete para a gente. Sua bisavó e sua tia-avó só sabiam chorar, não se atreviam a sair do lugar. Aquele senhor então me disse: ‘Mocinha, tente convencer sua avó e sua mãe, diga a elas para não ter medo. O comandante Sugitani não tem intenção de fazer mal a vocês, ele só quer ficar amigo do dr. Wan Seis Vísceras’. Eu disse: ‘Vó, mãe, parem de chorar, de que adianta chorar? O choro vai fazer a gente criar asas? Vai derrubar a Grande Muralha?’. O cavalheiro disse, batendo palmas: ‘Falou muito bem, a mocinha é muito esperta, quando crescer será uma pessoa extraordinária’. Assim eu convenci as duas a parar de chorar. Acompanhando o cavalheiro, subimos numa charrete puxada por um burro preto e demos não sei quantas voltas. Entramos numa mansão com um portão imponente, duas sentinelas guardavam a entrada, à esquerda um pele-amarela,*** à direita, um soldado japonês. A mansão era muito comprida; passado o portão, atravessamos um pátio atrás do outro, parecia que nunca chegaríamos até o final. Por fim, entramos num pavilhão que tinha portas, janelas e divisórias finamente entalhadas, e poltronas feitas de sândalo. O comandante Sugitani, de quimono, segurava um leque dobrável, que abanava com elegância. Só de olhar já dava para saber que era uma pessoa educada. Disse algumas formalidades e nos convidou a tomar nossos lugares à mesa, uma mesa redonda, enorme, forrada com as melhores iguarias. Sua bisavó e sua tia-avó nem tinham coragem de tocar nos pauzinhos, mas eu não fiz cerimônia, fui logo devorando tudo o que aquele cachorro oferecia! Como os pauzinhos atrapalhavam, simplesmente comecei a usar a ‘colher anatômica’, pegava grandes bocados de comida com a mão e enfiava na boca. Sugitani segurava um cálice de bebida e assistia a tudo sorrindo. Satisfeita, limpei as mãos na toalha da mesa e senti o sono chegar. Ouvi a pergunta de Sugitani: ‘Senhorita, não seria ótimo se seu pai pudesse se juntar a nós?’. Arregalei os olhos: ‘Não seria, não’. Sugitani perguntou: ‘Por quê?’. Eu disse: ‘Meu pai é da Oitava Rota, você é japonês, a Oitava Rota luta contra os japoneses, não tem medo de que o meu pai lute com você quando chegar aqui?’.”
Minha tia levantou a manga da camisa para ver as horas. Naquela época, havia menos de dez relógios de pulso em toda Gaomi, e um deles era da minha tia. “Uau!”, exclamou meu irmão mais velho, a única pessoa lá de casa que já tinha visto um relógio de pulso. Ele frequentava o liceu número 1 do distrito e seu professor de russo, que havia estudado na União Soviética, usava um relógio de pulso. Quando terminou seu “uau”, meu irmão gritou: “Um relógio!”. Minha irmã e eu gritamos juntos: “Um relógio!”.
Minha tia fez cara de contrariada e puxou a manga de volta: “É só um relógio, para que tanto alvoroço?”. Seu deliberado pouco-caso só serviu para atiçar nossa curiosidade. Primeiro foi meu irmão mais velho que disse, sondando o terreno: “Tia, até hoje só vi um relógio de longe, o do professor Ji… a senhora me deixa dar uma olhada?”. Nós fizemos coro ao meu irmão: “Tia, tia, deixa a gente ver!”.
Minha tia disse, sorrindo: “Que bando de moleques, o que é que tem para ver num relógio velho?”. Mesmo assim, ela tirou o relógio e entregou-o a meu irmão mais velho.
Minha mãe, ao lado, advertiu em voz alta: “Cuidado com isso!”.
Meu irmão pegou o relógio com todo o cuidado, pousou-o na palma da mão para olhar e, em seguida, levou-o ao ouvido para escutar. Terminado o exame, passou o relógio para minha irmã, que olhou e passou para meu outro irmão. Ele deu uma olhada e nem teve tempo de encostar no ouvido porque o mais velho tomou o relógio dele e devolveu a minha tia. Senti uma pontinha de frustração e chorei.
A mãe ralhou comigo.
Minha tia disse: “Corre Corre, quando crescer, você irá longe, ainda vai se importar de não ter relógio para usar?”.
E alguém como ele vai usar relógio? Qualquer hora dessas eu vou desenhar um com tinta no pulso dele”, disse meu irmão.
Não se pode julgar alguém pela aparência, assim como não se pode medir o mar com uma caneca. Não é por ser feio que Corre Corre não terá chance de ser alguém na vida quando crescer”, disse minha tia.
Se até ele pode ser alguém na vida, então aquele porco no chiqueiro também pode virar tigre!”, disse minha irmã.
Tia, em que país foi fabricado? Qual é a marca?”, perguntou meu irmão.
É um Enicar feito na Suíça”, ela respondeu.
Uau!”, exclamou meu irmão mais velho, seguido pelo outro irmão e pela irmã.
Eu esbravejei, furioso: “Seus metidos!”.
Irmãzinha, quanto custa isso?”, minha mãe perguntou.
Não sei, ganhei de presente”, respondeu a tia.
Que amigo tem coragem de dar um presente tão caro?”, e observando a tia, minha mãe continuou: “Será que é o futuro tio deles, hein?”.
Já é quase meia-noite”, disse minha tia se levantando, “hora de dormir.”
Graças ao céu e à terra! A irmãzinha finalmente vai desencalhar!”, exclamou minha mãe.
Não vá sair por aí dando com a língua nos dentes, ainda não riscamos nem o primeiro traço do oito.**** Minha tia virou-se para nós e advertiu: “E eu esfolo vivo quem sair por aí falando bobagem, ouviram bem?”.
Na manhã seguinte, meu irmão mais velho, talvez com peso na consciência por não ter me deixado ver o relógio da tia, pegou uma caneta e desenhou um relógio no meu pulso. Ficou bem realista, lindo mesmo. E eu era todo zelo e desvelo por aquele “relógio”, cuidava para não o molhar ao lavar as mãos e, se chovia, escondia o braço. Quando a cor esmaecia, pedia emprestada a caneta do meu irmão para reforçar os traços. Assim o “relógio” durou uns três meses no meu pulso.

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* Expressão indicativa de status social; quem “come grão comercial” pertence à parcela da população que não precisa cultivar o alimento que consome (funcionários públicos, militares, médicos). [Todas as notas são do tradutor.]
** Era comum na forma de tratamento popular se dirigir aos familiares mencionando o parentesco em relação aos próprios filhos, e não o parentesco direto. Assim, uma mulher pode chamar seu marido de “pai da criança” e sua irmã ou cunhada de “tia da criança”, ou “tia”.
*** Soldado chinês aliado dos japoneses.
**** O ideograma de “oito” em chinês se escreve com dois traços diagonais à maneira de um V invertido. Dizer que nem foi feito “o primeiro traço do oito” significa que não há nada certo, nada definido.

Mo Yan, in As rãs

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