segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 24


Entre as memórias mais nítidas de minha vida estão os acontecimentos transcorridos a bordo do Ghost nas quarenta horas que sucederam a descoberta de meu amor por Maud Brewster. Eu, que tinha passado a vida em lugares tranquilos apenas para me embrenhar, aos trinta e cinco anos, na aventura mais irracional que poderia imaginar, nunca experimentara tantos acontecimentos e emoções concentrados em tão pouco tempo. Apesar disso, não consigo deixar de ouvir uma vozinha dizendo que não me saí tão mal assim, levando tudo em conta.
Para começar, durante a refeição do meio-dia Wolf Larsen informou aos caçadores que de agora em diante eles deveriam comer na baiuca. Era algo sem precedentes em uma escuna de caça à foca, onde é costume informal que os caçadores sejam tratados como oficiais. Ele não explicou suas razões, mas o motivo era óbvio. Horner e Smoke vinham fazendo galanteios a Maud Brewster, o que era ridículo em si e inofensivo para ela, mas havia evidentemente desagradado a Wolf Larsen.
O anúncio foi recebido com um silêncio sombrio, embora os outros quatro caçadores tenham lançado olhares cheios de significado para os dois responsáveis pelo banimento. Jock Horner, sossegado como era, não esboçou reação, mas o sangue subiu à testa de Smoke de maneira nefasta e ele começou a abrir a boca para falar. Wolf Larsen o encarava, à espera, com um brilho metálico no olhar, mas Smoke acabou fechando a boca sem dizer nada.
Algo a dizer? — Wolf Larsen perguntou em tom agressivo.
Era um desafio, mas Smoke se negou a aceitá-lo.

Sobre o quê? — ele respondeu com uma inocência que desconcertou Wolf Larsen e fez os outros sorrirem de leve.
Ah, nada — foi a resposta frouxa de Wolf Larsen. — Só achei que gostaria de registrar alguma queixa.
Sobre o quê? — Smoke repetiu, imperturbável.
A essa altura, os companheiros de Smoke tinham aberto sorrisos largos. O capitão podia tê-lo matado, e não tenho dúvidas de que haveria sangue não fosse a presença de Maud Brewster. Aliás, foi também a presença dela que fez Smoke agir daquela forma. Ele era discreto e cauteloso demais para provocar a ira de Wolf Larsen numa situação em que essa ira poderia ganhar expressão mais forte que meras palavras. Temi que uma briga estivesse prestes a começar, mas a situação se resolveu facilmente com um berro do timoneiro.
Fumaça à vista! — o alerta entrou pela porta aberta da escada.
Onde está? — gritou Wolf Larsen.
Bem atrás, senhor.
Talvez seja um russo — propôs Latimer.
Essas palavras cobriram de ansiedade os rostos dos outros caçadores. Um russo só podia significar uma coisa: um cruzador [73]. Os caçadores, apesar de nunca terem mais que uma vaga ideia da posição do nosso navio, sabiam que estávamos perto dos limites do mar proibido [74], e o histórico de Wolf Larsen com a caça em áreas ilegais era notório. Todos os olhares se voltaram para ele.
Estamos em total segurança — Wolf Larsen assegurou-lhes, sorrindo. — Ninguém vai para as minas de sal dessa vez, Smoke. Mas vou dizer uma coisa, aposto cinco contra um que é o Macedonia.
Ninguém aceitou a aposta, e ele prosseguiu.
Nesse caso, aposto dez contra um que teremos problemas pela frente.
Não, obrigado — Latimer opinou. — Não me oponho a perder dinheiro, mas prefiro apostá-lo quando tenho alguma chance. Sempre temos problemas quando o senhor e esse seu irmão se encontram, e aposto vinte contra um nisso.
Houve um sorriso geral, ao qual Wolf Larsen também aderiu, e a refeição prosseguiu tranquilamente graças a mim, pois ele me tratou de maneira tão abominável dali em diante, com tanta zombaria e condescendência, que comecei a tremer de tanta raiva contida. Mas eu sabia que precisava me controlar para o bem de Maud Brewster, e fui recompensado quando os olhos dela cruzaram com os meus por um breve segundo e disseram com a clareza das palavras, “Seja forte, seja forte”.
Saímos da mesa e subimos para o convés, pois a aparição de um vapor era uma quebra bem-vinda na monotonia do mar em que flutuávamos, e a convicção de que se tratava de Death Larsen e seu Macedonia contribuía para deixar a situação ainda mais emocionante. O vento forte e o mar agitado que haviam surgido na tarde anterior perderam intensidade ao longo da manhã, de modo que era possível agora descer os botes para a caça vespertina. A caçada prometia render. Não havia sinal de focas desde o raiar do dia, mas agora estávamos nos aproximando do bando.
A fumaça continuava muitos quilômetros distante da nossa popa, mas nos alcançava com rapidez, quando descemos os nossos botes. Eles se espalharam e avançaram pelo oceano rumo ao norte. De vez em quando víamos uma vela baixar, escutávamos disparos e víamos a vela subir novamente. As focas estavam aglomeradas e o vento ia morrendo. Tudo favorecia uma boa caçada. Quando partimos para sotaventear o último bote a sotavento, encontramos o oceano forrado de focas adormecidas. Estavam em toda parte, numa quantidade como eu nunca tinha visto, em grupos de duas, três ou mais, deitadas ao comprido na superfície e dormindo alheias a tudo, como cachorrinhos preguiçosos.
Por baixo da fumaça que se aproximava, o casco e as estruturas superiores de um barco a vapor iam se avolumando. Era o Macedonia. Consegui ler o nome pela luneta quando o barco passou a cerca de um quilômetro e meio a estibordo. Wolf Larsen mirou a embarcação com um olhar selvagem enquanto Maud Brewster expressava sua curiosidade.
Onde estão os problemas que você previu com tanta certeza, capitão Larsen? — ela perguntou, animada.
Ele a encarou com as feições amenizadas pelo instante de diversão.
O que esperava? Que subissem a bordo e cortassem nossas gargantas?
Algo assim — ela confessou. — Caçadores de focas são tão novos e estranhos para mim, entende?, que não sei muito bem o que esperar.
Ele assentiu com a cabeça.
Sem dúvida, sem dúvida. O seu erro foi não ter sido capaz de esperar o pior.
Ora, o que pode ser pior que cortar nossas gargantas? — ela perguntou com uma surpresa um tanto ingênua.
Cortar nossos bolsos — ele respondeu. — Chegamos a um ponto em que a capacidade do homem para viver é determinada pela quantidade de dinheiro que ele possui.
— “Quem rouba-me o bolso, rouba-me uma ninharia” [75] — ela citou.
Quem rouba-me o bolso, rouba-me o direito de viver — veio a resposta —, ao contrário do que dizem os velhos provérbios. Pois rouba-me o pão, a carne e a cama, e ao fazê-lo põe minha vida em risco. Não há sopão nem pão velho suficientes para matar a fome de todos, sabe?, e, quando os homens ficam sem nada no bolso, o mais comum é que morram, e morram sofrendo bastante, a não ser que consigam encher o bolso bem rápido.
Mas não entendo por que acha que esse vapor está vindo atrás do seu bolso.
Espere e verá — ele respondeu amargamente.
Não precisamos esperar muito. Depois de ter ultrapassado a nossa linha de botes em vários quilômetros, o Macedonia desceu os seus próprios botes. Sabíamos que eles traziam catorze botes contra os nossos cinco (tínhamos perdido um deles com a deserção de Wainwright). Começaram a descê-los a sotavento do nosso último bote, continuaram em perpendicular à nossa rota e terminaram bem a barlavento do nosso primeiro bote do outro lado. Nossa caçada foi arruinada. Para trás não havia focas, e para a frente o bando era varrido pela fileira de catorze botes como se fossem uma grande vassoura.
Nossos botes caçaram nos quatro ou cinco quilômetros de água entre o local em que estavam e o ponto em que os botes do Macedonia tinham sido posicionados, e depois voltaram para o navio. O vento tinha se reduzido a um murmúrio e o oceano ia ficando cada vez mais calmo, o que criava condições ideais de caça que apareciam somente dois ou três dias em toda uma boa temporada. Uma porção de homens irados, que incluía remadores e pilotos, não apenas caçadores, se amontoou na lateral do barco. Todos estavam com o sentimento de terem sido roubados e praguejavam sem parar enquanto os botes eram içados, e, se pragas tivessem efeito, Death Larsen estaria perdido por toda a eternidade. “Morto e amaldiçoado por uma dúzia de eternidades”, disse Louis para mim com os olhos faiscando, enquanto terminava de fixar as amarras de seu bote.
Ouça o que dizem e veja se é difícil descobrir o que suas almas valorizam acima de tudo — disse Wolf Larsen. — Fé? Amor? Grandes ideais? O bem? A beleza? A verdade?
Eles tiveram o seu senso inato de justiça violado — disse Maud Brewster, participando da conversa.
Ela estava parada a três metros de distância, com uma das mãos apoiada no ovém principal e o corpo oscilando suavemente com o leve balançar do navio. Não tinha elevado a voz, e mesmo assim fiquei impressionado com seu tom límpido e sonoro. Ah, como era doce aos meus ouvidos! Mal ousava olhar para ela naquele momento, com medo de me entregar. Ela usava um gorro de menino na cabeça e seus cabelos, castanho-claros e arrumados em um penteado frouxo e volumoso exposto ao sol, pareciam uma auréola em volta do rosto oval e delicado. Ela estava encantadora e, além disso, tinha uma certa doçura espiritual, para não dizer sagrada. Meu antigo fascínio pela vida ressurgiu diante daquela visão esplêndida que o encarnava, tornando verdadeiramente ridícula e risível a explicação fria de Wolf Larsen para a vida e seu significado.
Uma sentimentalista — ele zombou —, como o sr. Van Weyden. Estes homens estão praguejando porque seus desejos foram afrontados. Isso é tudo. Quais desejos? Os desejos por um bom prato de comida e uma boa cama em terra firme, que um bom salário diário pode proporcionar. As mulheres e a bebida, a glutonice e a bestialidade que tão bem os expressa, o melhor que há dentro deles, suas mais elevadas aspirações, seus ideais, caso prefira. Essa exposição de seus sentimentos não é uma visão das mais bonitas, mas nos mostra como foram tocados profundamente, como seus bolsos foram tocados profundamente, pois colocar a mão em seus bolsos é colocar a mão em suas almas.
Você não parece estar se comportando como se tivessem colocado a mão em seu bolso — ela disse com um sorriso.
Então seria o caso de dizer que meu comportamento é atípico, pois colocaram a mão em meu bolso e em minha alma. Pelo preço atual das peles no mercado londrino e baseado em uma estimativa razoável da caça do dia, caso o Macedonia não tivesse estragado tudo, o Ghost acaba de perder mil e quinhentos dólares.
Você fala com tanta calma… — ela começou a dizer.
Mas não estou calmo. Poderia matar o homem que me roubou — ele interrompeu. — Sim, sim, eu sei, e este homem é meu irmão… mais sentimentos! Pff!
Seu rosto passou por uma mudança brusca. Sua voz ficou menos severa e cheia de sinceridade.
Vocês sentimentalistas devem ficar felizes, felizes de verdade, sonhando e achando as coisas boas, satisfeitos consigo mesmos porque pensam que algumas coisas são boas. Mas me digam agora, vocês dois: vocês me acham bom?
É bom olhar para você, em um certo sentido — avaliei.
Você tem todo o potencial para ser bom — respondeu Maud Brewster.
Pronto, aí está! — ele gritou com ela, um pouco irritado. — Suas palavras são vazias para mim. Não há nada claro, astuto ou definitivo no pensamento que você acaba de expressar. Não dá para pegá-lo com as duas mãos e olhar. Na verdade, não chega a ser um pensamento. É uma sensação, um sentimento, algo baseado em ilusões e de forma alguma um produto do intelecto.
À medida que continuava, sua voz voltou a ficar suave e ganhou um toque de confidência.
Sabe, às vezes fico pensando que eu também gostaria de ser cego para os fatos da vida e conhecer somente suas fantasias e ilusões. Estão erradas, completamente erradas, é claro, e são contrárias à razão. Mas diante delas a minha razão me diz, de maneira completamente equivocada, que sonhar e viver com ilusões é mais prazeroso. E, afinal de contas, o prazer é o salário que recebemos por viver. Sem o prazer, a vida é um ato imprestável. Trabalhar pela vida e não ser pago é pior do que estar morto. Quanto mais prazer sentimos, mais estamos vivendo, e os seus sonhos e irrealidades são menos perturbadores e mais gratificantes para vocês do que os meus fatos para mim.
Ele balançou a cabeça devagar, refletindo.
Questiono com frequência, com frequência, se a razão realmente vale a pena. Os sonhos devem ser mais plenos e satisfatórios. O prazer emocional é mais substancioso e duradouro que o prazer intelectual, e, além disso, você paga pelos momentos de prazer intelectual com a tristeza. O prazer emocional é sucedido apenas por uma fadiga dos sentidos, que se recuperam logo. Eu os invejo, eu os invejo.
Ele parou abruptamente, e então seus lábios formaram um daqueles estranhos e instigantes sorrisos.
Eu os invejo com o cérebro, percebam, e não com o coração. A minha razão me obriga. A inveja é um produto intelectual. Sou como o homem sóbrio contemplando os bêbados e desejando, com imenso pesar, estar bêbado como eles.
Ou como o sábio contemplando os tolos e desejando ser tolo como eles — ri.
Isso mesmo — ele disse. — Vocês são um par de tolos abençoados e falidos. Não possuem fato algum no bolso.
Mas gastamos com a mesma liberdade que você — contribuiu Maud Brewster.
Com mais liberdade ainda, pois não lhes custa nada.
E porque tomamos emprestado da eternidade — ela retrucou.
Se fazem assim ou pensam que fazem assim, dá na mesma. Gastam o que não têm, e em troca recebem mais por gastar o que não têm do que eu recebo gastando o que tenho, e que suei muito para obter.
Por que não troca a base da sua moeda, então? — ela perguntou em tom de provocação.
Ele a encarou por um breve instante, algo esperançoso, e então disse com pesar:
Tarde demais. Gostaria, talvez, mas já não posso. Meu bolso está cheio da velha moeda, e é uma questão de teimosia. Nunca vou conseguir reconhecer a validade de qualquer outra coisa.
Ele parou de falar e seu olhar ausente passou por ela e se perdeu no mar plácido. A velha melancolia primitiva tinha se abatido sobre ele com força. Ele tremia sob seu efeito. Tinha seguido a trilha de seu raciocínio até uma crise de tristeza e era de se esperar que dali a poucas horas seus demônios interiores estivessem despertos e agitados. Lembrei de Charley Furuseth e entendi que a tristeza desse homem era o castigo que todo materialista deve pagar por seu materialismo.

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[73] Navio de guerra, de porte médio, veloz e provido de armamentos de calibre médio, usado em explorações, escolta de comboios e na interceptação de navios mercantes de bandeiras inimigas.
[74] O mar de Bering, “proibido” porque os russos reivindicavam o direito exclusivo de caça e pesca nessa região marítima.
[75] Citação de Otelo, Ato III, Cena III, de Shakespeare: “Who steals my purse steals trash.”

Jack London, in O Lobo do Mar

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