terça-feira, 4 de outubro de 2022

O Lobo do Mar | Capítulo 14

Eu começava a perceber que nunca tinha dado às mulheres o seu devido valor. No que toca esse assunto, embora eu nunca tenha tido propensões sensualistas em nenhum grau considerável, essa era a primeira vez que me afastava tanto assim da atmosfera feminina. Minha mãe e minhas irmãs viviam ao meu redor e eu vivia tentando escapar delas, pois elas me distraíam com sua solicitude excessiva em relação à minha saúde e com suas invasões periódicas ao meu gabinete, ocasiões em que a confusão ordenada da qual eu tanto me orgulhava terminava pendendo mais para a confusão do que para a organização, embora tudo pudesse parecer muito bem arrumado para quem visse de fora. Depois que elas iam embora, eu não conseguia encontrar mais nada. Mas ah!, como a sensação da sua presença teria sido bem-vinda agora, com aquele frufru de saias que eu cordialmente detestava! Se eu voltar para casa um dia, tenho certeza de que nunca mais me irritarei quando elas estiverem por perto. Poderão me cobrir de cuidados e remédios a qualquer hora do dia e varrer, espanar e organizar meu gabinete quando bem entenderem, e eu me limitarei a reclinar a cadeira e observá-las, me sentindo grato por ter uma mãe e várias irmãs.
Tudo isso me fez pensar. Onde estão as mães desses vinte e poucos homens do Ghost? Parece-me antinatural e pouco saudável que esses homens fiquem totalmente separados das mulheres e andem em bando pelo mundo sem a companhia delas. Rudeza e selvageria são o resultado inevitável. Esses homens ao meu redor deveriam ter esposas, irmãs e filhas. Com isso, seriam capazes de manifestar brandura, afeto e compaixão. Ao que consta, nenhum é casado. Durante anos e anos, nenhum deles esteve em contato com uma boa mulher nem com a influência, ou redenção, que irradia com efeito irresistível dessas criaturas. Suas vidas carecem de equilíbrio. Sua virilidade, que em si já é uma característica bruta, foi superdesenvolvida. O outro lado de sua natureza, mais espiritual, ficou diminuído, ou melhor, atrofiado.
Eles formam um grupo de celibatários entrechocando-se com violência, mais calejados pelo embate a cada dia que passa. Às vezes parece impossível que tenha havido mães em suas vidas. É quase como se fossem uma espécie metade humana, metade animal selvagem, uma raça à parte para a qual o sexo não existe; como se eclodissem sob o sol como ovos de tartaruga ou viessem à vida de outra maneira igualmente sórdida. Uma raça que se refestela a vida inteira na brutalidade e na malevolência para no fim morrer da maneira odiosa como viveu.
Com a curiosidade animada por esse novo rumo de ideias, conversei ontem à noite com Johansen. Foram as primeiras palavras supérfluas que arranquei dele desde o início da viagem. Ele deixou a Suécia aos dezoito anos e está com trinta e oito agora, e nesse tempo todo não retornou para casa uma única vez. Tinha encontrado um habitante de sua cidade poucos anos atrás, numa pensão para marinheiros no Chile, e através dele soubera que sua mãe continuava viva.
Deve ser uma mulher muito velha, a essa altura — disse, espiando a bitácula com um ar pensativo e depois lançando um olhar severo para Harrison, que navegava um ponto fora da rota.
Quando foi a última vez que escreveu para ela?
Ele fez seus cálculos mentais em voz alta.
Oitenta e um. Não, oitenta e dois, né? Não. Oitenta e três. Sim, oitenta e três. Dez anos atrás. De um pequeno porto em Madagascar. Naquela época, eu estava no comércio. Sabe — ele continuou, como se falasse com a mãe ausente do outro lado do globo —, todo ano eu decidia voltar para casa. Então para que escrever? Faltava só um ano. E todo ano alguma coisa acontecia e me impedia de voltar. Mas agora sou imediato, e quando receber meu dinheiro em São Francisco, talvez uns quinhentos dólares, vou embarcar num veleiro e contornar o cabo Horn até Liverpool, onde poderei ganhar um pouco mais. E então pagarei a passagem de volta para casa. Ela nunca mais vai precisar trabalhar.
Mas ela trabalha agora? Que idade ela tem?
Uns setenta — ele respondeu. E então disse com orgulho: — No meu país, trabalhamos do momento em que nascemos até quando morremos. É por isso que vivemos tanto. Viverei até os cem anos.
Nunca vou esquecer essa conversa. Foram as últimas palavras que ouvi dele. Talvez tenham sido também as últimas que ele disse. Pois, quando desci até a cabine para me deitar, decidi que estava abafado demais para dormir lá embaixo. A noite estava calma. Tínhamos saído dos ventos alísios e o Ghost não avançava nem a um nó por hora. Então meti o travesseiro e um cobertor debaixo do braço e subi até o convés.
Quando passei diante de Harrison e da bitácula, que ficava instalada em cima da cabine, percebi que dessa vez ele tinha desviado três pontos da rota. Pensei que tinha adormecido e, visando poupá-lo de uma reprimenda ou coisa pior, falei com ele. Mas ele não estava dormindo. Seus olhos estavam arregalados, olhando fixo para alguma coisa. Parecia muito perturbado e não conseguia me responder.
Qual o problema? — perguntei. — Está doente?
Ele balançou a cabeça e, como se despertasse de súbito, recuperou o fôlego.
Melhor voltar para a rota, então — cutuquei.
Ele manejou um pouco o timão e vi a rosa dos ventos girar lentamente até nor-noroeste, mantendo-se na posição com leves oscilações.
Amontoei minha roupa de cama embaixo do braço e estava prestes a seguir meu caminho quando um movimento me chamou atenção e me fez olhar para a balaustrada da popa. Uma mão musculosa, pingando água, estava agarrada ao corrimão. Uma outra mão adquiriu forma na escuridão adjacente. Fiquei olhando, fascinado. Que tipo de visitante das trevas profundas se revelaria aos meus olhos? Seja lá o que fosse, estava subindo a bordo, escalando a corda da barquilha. Vi uma cabeça com os cabelos molhados e escorridos, e então apareceram os olhos e o rosto inconfundíveis de Wolf Larsen. Sua face esquerda estava vermelha com o sangue que escorria de um ferimento na cabeça.
Ele saltou a bordo com um movimento ligeiro e ficou parado em pé enquanto olhava de canto para o homem no timão, como se quisesse confirmar sua identidade e certificar-se de que não havia motivo para temê-lo. A água do mar escorria por seu corpo com gorgolejos que me distraíam. Quando veio em minha direção, me retraí instintivamente, pois a morte estava estampada em seus olhos.
Muito bem, Hump — ele me disse em voz baixa. — Onde está o imediato?
Balancei a cabeça.
Johansen! — ele chamou sem gritar. — Johansen!
Depois perguntou a Harrison:
Onde ele está?
O rapaz parecia ter recuperado a compostura e respondeu sem demora:
Não sei, senhor. Eu o vi partir em direção à proa faz pouco tempo.
Eu também fui em direção à proa. Mas, como pode observar, voltei por outro caminho. Como isso se explica?
O senhor deve ter caído por cima da amurada, senhor.
Devo procurá-lo na baiuca, senhor? — perguntei.
Wolf Larsen balançou a cabeça.
Você não o encontrará lá, Hump. Mas você serve. Venha. Esqueça essa roupa de cama. Deixe tudo aí mesmo.
Segui seus passos. Não havia movimentação alguma a meia-nau.
Aqueles malditos caçadores — ele praguejou. — Gordos e preguiçosos demais para aguentar quatro horas de vigia, os desgraçados.
Mas na extremidade do castelo de proa encontramos três homens dormindo. Ele os virou de lado e verificou seus rostos. Integravam a guarda do convés, e as regras do navio diziam que, em caso de tempo bom, a guarda podia dormir, com exceção do oficial, do timoneiro e do vigia.
Quem é o vigia? — perguntou.
Eu, senhor — respondeu Holyoak, um dos marinheiros de alto-mar, com um ligeiro tremor na voz. — Acabei de cair no sono, senhor. Desculpe, senhor. Não acontecerá de novo.
Viu ou ouviu alguma coisa no convés?
Não, senhor, eu…
Mas Wolf Larsen já tinha virado as costas, rosnando de raiva, e o marinheiro ficou esfregando os olhos, surpreso por ter escapado tão facilmente.
Sem barulho, agora — Wolf Larsen me avisou com um sussurro enquanto se abaixava na portinhola do castelo de proa e se preparava para descer.
Fui atrás dele com o coração disparado. Ignorava, na mesma medida, o que tinha acontecido e o que estava por acontecer. Mas havia corrido sangue e Wolf Larsen com certeza não tinha se jogado ao mar com a cabeça aberta a troco de nada. Além disso, Johansen havia desaparecido.
Era a primeira vez que eu descia no interior do castelo de proa e não esquecerei tão cedo a impressão que tive assim que firmei os pés na base da escada. Construído bem onde ficam os olhos da embarcação, o castelo tinha o formato de um triângulo e em seus três lados enfileiravam-se doze beliches. Não era maior que um dormitório da Grub Street (55), mas doze homens precisavam se amontoar ali dentro para comer, dormir e cuidar de suas vidas. O quarto que eu tinha em casa não era grande, mas podia comportar doze ou mesmo vinte castelos de proa como aquele, se levarmos em conta o pé-direito.
O odor era azedo e mofado, e percebi, na claridade baça da lanterna, que em todo pedaço de parede disponível pendiam botas de marinheiro, capas de lona e vestes de todo tipo, limpas e sujas, formando uma grossa camada. Elas oscilavam de um lado a outro com o balanço das ondas, farfalhando como árvores roçando um telhado ou parede. Em algum canto, uma bota pesada batia contra a parede a intervalos irregulares, fazendo um barulho alto, e, mesmo com o mar tranquilo daquela noite, ouviam-se um coro contínuo de madeiras e anteparas rangendo e ruídos abismais vindos de baixo do piso.
Quem dormia ali parecia não se importar. Eram oito, as duas guardas fora de serviço. O calor e o cheiro de suas respirações deixavam o ar espesso, e o barulho de seus roncos, suspiros e gemidos preenchia os ouvidos com os sinais conhecidos do repouso do animal humano. Mas estariam mesmo dormindo? E tinham estado dormindo? A investigação de Wolf Larsen era justamente essa, encontrar os homens que pareciam estar dormindo mas não estavam, ou que não tinham se deitado até momentos antes. E o procedimento a que recorreu me fez lembrar de um conto de Boccaccio (56).
Ele tirou a lanterna da armação em que estava pendurada e a entregou para mim. Começou pelos beliches mais próximos da proa, a estibordo. No de cima estava Oofty-Oofty, um esplêndido marinheiro canaca que tinha ganhado esse apelido dos companheiros (57). Estava deitado de costas e ressonava suavemente como uma mulher. Um de seus braços estava embaixo da cabeça e o outro estendido por cima do cobertor. Wolf Larsen pôs o indicador e o polegar no pulso do homem e contou os batimentos. O canaca despertou no meio da contagem com a mesma suavidade com que dormia. Seu corpo não realizou o menor movimento. Somente os olhos se moveram. Ficaram muito abertos, grandes e pretos, encarando-nos sem piscar. Wolf Larsen colocou o dedo nos lábios pedindo silêncio e os olhos se fecharam novamente.
No leito de baixo estava Louis, gordo, quente e suado, dormindo de maneira escancarada e laboriosa. Quando Wolf Larsen tomou seu pulso, ele se agitou com desconforto e arqueou o corpo, apoiando-se por um momento no quadril e nos ombros. Seus lábios se moveram e proferiram este enunciado enigmático:
Um xelim vale vinte e cinco tostões, mas olho vivo pras moedinhas de três pence, os taberneiros tentam passar como se fossem as de seis (58).
Em seguida, ele se virou para o outro lado com um gemido pesado e convulsivo, dizendo:
Chamam seis pence de tanner, e o xelim de bob, mas não sei o que é um pony (59).
Satisfeito com a sinceridade do sono de Louis e do canaca, Wolf Larsen prosseguiu para o próximo beliche a estibordo, ocupado em cima e embaixo, como pudemos ver à luz da lanterna, por Leach e Johnson.
Quando Wolf Larsen se abaixou para tomar o pulso de Johnson na cama de baixo, eu, que estava em pé segurando a lanterna, percebi que Leach ergueu a cabeça rapidamente para espiar o que se passava. Ele deve ter adivinhado o truque de Wolf Larsen e a certeza de sua eficácia, pois no instante seguinte arrancou a lanterna da minha mão e deixou o castelo de proa às escuras. Também deve ter pulado no mesmo instante em cima de Wolf Larsen.
Os primeiros ruídos foram os de um touro enfrentando um lobo. De Wolf Larsen vinha um longo berro enfurecido e de Leach um rosnado de desespero capaz de gelar os ossos. Johnson deve ter se juntado ao amigo imediatamente, o que sugeria que sua conduta abjeta e rastejante sobre o convés, nos últimos dias, era apenas um fingimento deliberado.
A luta no escuro me aterrorizou de tal forma que me encostei na escada, trêmulo e sem forças para subir. Fui acometido daquela náusea familiar, na boca do estômago, que os espetáculos violentos sempre despertam em mim. Dessa vez eu não podia ver, mas escutava os impactos dos socos, aquele pequeno ruído de esmagamento produzido pela carne golpeando a carne. Os corpos atracados iam caindo por cima de tudo, resfolegando e soltando gemidos curtos de dor.
Outros tripulantes também deviam estar envolvidos na conspiração para assassinar o capitão e o imediato, pois os sons indicavam que Leach e Johnson tinham ganhado reforços dos companheiros.
Alguém traga uma faca! — gritou Leach.
Acertem a cabeça dele! Esmaguem o cérebro! — clamou Johnson.
Depois do primeiro berro, Wolf Larsen não produziu mais ruído algum. Estava lutando pela própria vida, compenetrado e em silêncio. Tinha sido encurralado de forma implacável. Não tivera nem a chance de ficar de pé, e, apesar de sua força prodigiosa, tive a impressão de que não havia esperança para ele.
A violência com que lutavam deixou uma marca concreta em mim, pois fui atropelado pelos corpos engalfinhados e fiquei bastante machucado. No meio da confusão, porém, consegui me arrastar até um leito vazio na metade inferior de um beliche.
Todos juntos! Pegamos ele! Pegamos ele! — ouvi Leach gritar.
Quem? — perguntaram os que estavam realmente dormindo e ainda não entendiam o que os havia despertado.
O desgraçado do imediato! — foi a resposta astuta e meio sufocada de Leach.
A informação foi recebida com gritos de alegria e a partir dali Wolf Larsen teve sete homens amontoados em cima dele, pois creio que Louis não se envolveu. O castelo de proa parecia uma colmeia de abelhas atiçada por um saqueador.
O que está acontecendo aí embaixo? — gritou Latimer pela portinhola, receoso de descer e conferir com os próprios olhos o inferno à solta na escuridão.
Ninguém vai trazer uma faca? Por que ninguém traz uma faca? — Leach rogou no primeiro intervalo de relativo silêncio.
A quantidade de agressores acabou gerando confusão. Enquanto eles anulavam os próprios esforços, Wolf Larsen logrou atingir seu único objetivo, que era abrir caminho pelo chão até a escada. Apesar da escuridão total, consegui mapear seu progresso pelos ruídos. Somente um gigante poderia ter feito o que ele fez ao alcançar o pé da escada. De degrau em degrau, apenas com a força imensa dos braços, com o bando todo tentando puxá-lo de volta, ele foi erguendo o corpo até conseguir ficar em pé. Em seguida, foi galgando lentamente os degraus com as mãos e os pés.
A última parte eu vi, pois Latimer, que tinha finalmente buscado uma lanterna, fez a luz entrar pela portinhola. Wolf Larsen estava quase no topo, embora eu não pudesse vê-lo. A única coisa visível era a massa de homens acoplada a ele, contorcendo-se como uma aranha de muitas patas e balançando no ritmo constante da embarcação. Mesmo assim, com longos intervalos entre um passo e outro, a massa humana ia subindo. A certa altura, ela vacilou e quase caiu de volta, mas conseguiu firmar posição de novo e continuou a subir.
Quem é? — gritou Latimer.
Pude ver, nos raios da lanterna, seu rosto perplexo olhando para baixo.
Larsen — uma voz abafada saiu do meio da massa humana.
Latimer ofereceu sua mão livre. Outra mão se esticou e agarrou a dele. Latimer puxou, e o par de degraus restante foi vencido num pulo. Depois a outra mão de Wolf Larsen agarrou a borda da portinhola. Agora a massa balançava longe da escada, com os homens ainda presos ao oponente em fuga. Começaram a despencar um por um, à medida que eram bloqueados pela borda estreita da portinhola e chutados com força lá de cima. Leach foi o último a ceder, caindo do alto da escada e se estatelando de cabeça e ombros em cima dos companheiros esparramados pelo piso. Wolf Larsen e a lanterna sumiram, e fomos deixados na escuridão.

(55) Rua do distrito pobre de Moorfields, em Londres, que abrigava bares, prostíbulos e cortiços, onde se alugavam quartos a baixo preço.
(56) Giovanni Boccaccio (1313-75), escritor italiano e uma das maiores figuras do Renascimento. Sua principal obra é o Decamerão (1348-53), que inclui o conto a que London alude, no qual o rei descobre o amante da rainha usando o mesmo expediente que Wolf Larsen.
(57) “Canaca” é a designação genérica de qualquer ilhéu dos Mares do Sul, especialmente os havaianos e os polinésios. Deriva do vocábulo polinésio kanaka, que significa “humano”, “pessoa”. O apelido Oofty-Oofty, provavelmente onomatopaico, acrescenta um cunho racista na referência aos nativos que não falavam bem outras línguas. E é possível também que seja inspirado na personificação bizarra de Oofty-Goofty, o “homem selvagem de Bornéu”, encarnado pelo artista circense Leonard Borchardt, por volta de 1895, na Califórnia.
(58) As duas moedas eram quase idênticas em tamanho, daí a confusão.
(59) Gíria para indicar 25 libras. O personagem possivelmente desconhece o significado por ser uma quantia alta demais para sua condição.

Jack London, in O Lobo do Mar

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